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A ORGANIZAÇÃO SOCIAL DA CIÊNCIA CONTEMPORÂNEA

Discorrer sobre a ciência contemporânea não é tarefa trivial. Escolher os marcos históricos a serem abordados tornam a tarefa mais árdua. Entretanto, um recorte precisa ser feito para situar o leitor na discussão sobre o crescimento da produção científica que culminou com o dilúvio de dados. Face ao exposto, esse capítulo procurar abordar de forma sucinta quais as mudanças que ocorreram no processo de fazer pesquisa no mundo, bem como o panorama da pesquisa científica atual.

Assim, a partir do entendimento de que a ciência é socialmente construída em função da relação entre cientistas e a sociedade, e que há um processo de transmissão do conhecimento produzido pelo cientista para outros cientistas e demais membros da sociedade, esta tese optou por acomodar a teoria sob o fenômeno de produção da ciência, desde as associações científicas que impulsionaram a publicação periódica sobre o conhecimento científico então produzido, até os dias atuais. Em razão desse marco histórico, será delineada a evolução da ciência no que diz respeito ao aumento exponencial da publicação científica, o protagonismo da internet no processo de comunicação científica e, mais recentemente, ao fenômeno de dados coletados em grande escala.

Entende-se que o princípio básico do fazer ciência inclui comunicar os resultados da pesquisa realizada para a validação de seus pares. Ou seja, a palavra ‘comunicar’ em si já traz à tona os processos de comunicação científica, objeto de estudo da Ciência da Informação, trabalhados por Solla-Price (1976), Garvey (1979), Ziman (1984), Muller (1995), Meadows (1999), dentre outros autores.

As origens da ciência moderna se encontram na Inglaterra do Século XVII (ALFONSO- GOLDFARB, 1994; SOLLA-PRICE, 1976). Nesse período, a ciência não precisava de grandes

justificativas. Quando sofria ataques sua resposta estava sempre voltada para o futuro e não para o passado.

De acordo com Caribé e Mueller (2010), a literatura cientifica revela que as primeiras academias e a divulgação da ciência surgiram no Século XVII. Os cientistas que iniciaram essas academias comunicavam seus resultados de pesquisa por meio de cartas (no inglês, Letters). Isso porque essas cartas se confundiam com a correspondência comum e na época não eram abertas pelo governo, o que evitava serem alvo da Inquisição. Essas cartas enviadas às Academias deram origem aos primeiros periódicos científicos.

A restauração da monarquia7 em Londres fez com que pequenos grupos se reunissem para debater questões filosóficas. Essas reuniões, em um momento posterior, tornaram-se mais regulares e oficiais, fato esse que levou à formação da Royal Society em 1622, que desde seu início interessou-se pela comunicação científica e, portanto, dedicou-se à coleta e análise de informações importantes sobre pesquisas em andamento. Assim, enquanto alguns membros viajavam para obter informações, outras pessoas foram selecionadas no exterior para fazer parte da nova sociedade. O volume de correspondência entre os membros da Royal Society logo passou a ser um problema de difusão da informação, o que culminou com a necessidade de se fazer uma publicação impressa com as cartas recebidas classificadas como mais importantes. Com isso, em 1665, foi criado o periódico científico Philosophical Transactions (MEADOWS, 1999, p. 5-6).

Movimento semelhante deu-se na França. Meadows (1999, p. 6) relata que em 1665 “Denis de Sallo começou um periódico dedicado a publicar notícias sobre o que acontecia na Europa” – o Journal de Sçavans, considerado o percursor do periódico moderno em humanidades.

De acordo com Meadows (1999), no início, a formação de sociedades ocorreu lentamente, mas, no Século XVIII, acelerou-se bastante. Esse fato permite afirmar-se que se aumentou o número de cientistas, também houve incremento no número de pesquisas realizadas e, por fim, o aumento do número de publicações produzidas.

A respeito do assunto, Solla-Price (1976) teoriza sobre a pequena ciência e a grande ciência (little science e big science), argumentando que a transição de uma para a outra foi gradual. O autor (SOLLA-PRICE, 1976, p. 3) defende a ideia de que “se um seguimento

7 Em 1649, auge da Guerra Civil Inglesa, Carlos I foi executado no Palácio de Whitehall. Seu filho, Carlos II foi

proclamado pelo parlamento escocês como Rei da Grã Bretanha e Irlanda. Porém, a proclamação foi dada como inválida em função de um estatuto aprovado no parlamento inglês. Nesse período, a Inglaterra tornou-se uma república liderada por Oliver Cromwell. A morte de Cromwell em 1658 resultou em uma crise política que culminou com a restauração da monarquia em Londres.

suficientemente amplo da ciência for medido de alguma forma razoável, o modo normal de crescimento é exponencial”.

Há um consenso, na literatura, de que a Segunda Guerra Mundial acabou por institucionalizar a ciência, em particular, devido ao modo como os Estados Unidos (EUA) utilizaram-se da pesquisa científica durante o conflito. Sobre assunto, merece destaque o relatório de Vannevar Bush, publicado em 1945 – Science the Endless Frontier. No relatório, Bush defende que o Estado deve se responsabilizar pelo desenvolvimento científico do país, pois a pesquisa propicia avanços tecnológicos.

Assim, a ciência era vista como uma forma de propiciar o bem estar público, combater as enfermidades, promover a segurança nacional, gerar emprego e viabilizar o crescimento industrial. Em consonância com a tese de autonomia científica de Merton (2013), a ingerência do Estado não deveria ser tolerada, cabendo à comunidade científica a autonomia, o controle e o direcionamento de suas atividades. Na percepção de Schwartzman (2001), esse modelo ficou conhecido como Modelo Linear da Ciência.

A partir do Pós-Guerra e início da década de 1970 percebe-se uma ciência ainda autônoma, mas com maior regulação do Estado. Além disso, a visão positiva da ciência, bem como da tecnologia, passa a coexistir com os efeitos negativos que elas podem gerar no mundo. Como exemplo, citam-se a degradação do meio ambiente e o aumento das desigualdades sociais. Também são exemplos de aspectos negativos o enclausuramento e a fragmentação do saber (MORIN, 2010), ou a ainda a industrialização da vida (BORGMANN, 2006; MORIN, 2010). Nesse ínterim, os resultados das pesquisas começam a ser questionados sob a perspectiva de um retorno para a sociedade.

O período de guerras sempre foi marcado por grandes descobertas científicas. Após a Segunda Guerra Mundial o mundo se deparou com a Guerra Fria, um momento de grandes avanços na tecnologia espacial em função da disputa entre Estados Unidos e a antiga União Soviética na corrida para chegar à lua. Mas não foi só a área espacial que se beneficiou dos investimentos feitos em pesquisa nessa época. Os Estados Unidos, no auge da Guerra Fria, tinham interesse em desenvolver uma rede de computadores que ligasse pontos estratégicos para o país, tais como as bases militares e os centros de tecnologia. Essa rede de comunicação deveria ser desprovida de um controle centralizado para resistir a um possível ataque nuclear. Assim, se houvesse perda de uma parte da rede, o seu funcionamento não ficaria comprometido. A Rand Corporation, organização situada em Santa Mônica, Califórnia, e ligada ao governo americano foi a responsável pelo conceito tecnológico que deu origem à Advance Research Project Agency Network, mundialmente conhecida como ARPANET. A rede teve

sua primeira versão disponibilizada em 1969 com apenas quatro pontos, mas cresceu como uma colônia bacteriana (ERCILIA, GRAEFF, 2008; RHEINGOLD, 1996).

O que acelerou a utilização da ARPANET pelo meio acadêmico foi a comunicação mediada pelo computador (CMC), por meio das mensagens eletrônicas (e-mail). O sucesso de utilização da rede levou à criação da TELNET em 1974. Apenas na década de 1990 a rede ganhou reconhecimento fora do meio acadêmico, momento em que foi lançado o primeiro provedor de acesso discado à Internet dos EUA. Em 1991 a criação do sistema de hipertexto –

World Wide Web por Tim Berners-Lee, à época bolsista do CERN, acabou por facilitar a

navegação pela web. O fato, atrelado ao desenvolvimento do primeiro programa navegador (browser) popularizou a Internet (CUNHA, 2004; ERCILIA, GRAEFF, 2008; RHEINGOLD, 1996).

A Internet modificou a forma de interação entre as pessoas e, na visão de Castells (2003, p. 7) tornou-se a espinha dorsal da sociedade contemporânea, “a base tecnológica para a forma organizacional da era da informação – a rede”.

Hey e Trefethen (2005) argumentam que o advento da internet trouxe a possibilidade de os pesquisadores acessarem recursos armazenados em diferentes lugares, por meio de sites, provendo um ambiente de pesquisa e-science robusto e útil, onde diferentes grupos podem combinar suas atividades de pesquisa. Como exemplo, os autores citam o e-Science Project on

Integrative Biology8, com um orçamento de £ 2,3 milhões, para desenvolver um laboratório virtual para pesquisa de câncer e doenças do coração. O projeto foi liderado pela Universidade de Oxford e envolvia outras quatro universidades britânicas, além da Universidade de Auckland na Nova Zelândia.

Na Universidade de Oxford, o professor Denis Noble liderava as pesquisas no âmbito de modelos de comportamento elétricos das células cardíacas. Enquanto isso, na Nova Zelândia, Peter Hunter do Departamento de Bioengenharia da Universidade de Auckland, liderava estudos pioneiros sobre modelos mecânicos de batimentos cardíacos. Portanto, ambos os grupos desenvolviam pesquisas em nível mundial, cada um com sua especialidade. A relevância de ambos os projetos tornou emergente conectar os dois grupos de pesquisa em uma organização científica virtual. Essa organização virtual era de acesso restrito aos pesquisadores envolvidos no projeto e permitia que os mesmos tivessem acesso a recursos computacionais e aos supercomputadores britânicos (HEY; TREFETHEN, 2005).

É nesse contexto que surge um novo tipo de ciência, colaborativa e dependente de uma infraestrutura tecnológica. Nas palavras de Hey e Trefethen (2005, p. 819), “a necessidade de auxílio para organização, registro e pesquisa dos dados está se tornando aguda”.

No âmbito do big data, a ciência colaborativa tem seu marco inicial com o Projeto Genoma Humano. Tapscott e Williams (2007) consideram que o Projeto Genoma Humano representou um divisor de águas. Afinal, as indústrias farmacêuticas pararam com as suas tentativas isoladas de mapear o genoma e passaram a apoiar colaborações abertas (open-

science). A experiência deste projeto representa o resultado final de grande concentração de

esforços públicos e privados em prol da informação genética do ser humano. Outros grandes exemplos de colaboração são: a) as iniciativas do CERN de descobrir a partícula da vida – uma partícula subatômica que poderia ser o bóson de Higgs; b) o Projeto Netuno do Observatório Oceânico EUA-Canadá; c) o Projeto de Celeste Digital Sloan dentre outros. Todos esses projetos têm em comum o enorme volume de dados coletados por sensores especializados.

Essas iniciativas que envolvem o compartilhamento de recursos e a infraestrutura tecnológica acabam por ser realizados em diferentes instituições, que, por sua vez, podem estar em distintos países. Esse fato, em conjunto com a facilidade de acesso à informação contribuiu para uma internacionalização e virtualização da ciência.

Cordeiro et al. (2013, p. 13) com fundamento em Kuhn (1962 apud KUHN, 2009) consideram que “o ato de fazer ciência passou por significativos aprimoramentos e refinamentos em sua metodologia de trabalho, incluindo [um] novo ferramental lógico- matemático, novos instrumentos de observação e novos paradigmas de estruturação do pensamento científico”.

As infraestruturas tecnológicas necessárias para apoiar os projetos supracitados buscam apoio na tecnologia de grid computacional. De acordo com Góes et al. (2005), em meados da década de 1990, inspirados pelo sistema de energia elétrica e o desejo de alta performance computacional, como, por exemplo, um supercomputador, impulsionou

[...] o desenvolvimento de uma nova infraestrutura computacional pelo acoplamento de recursos distribuídos geograficamente com bases de dados, servidores de armazenamento, redes de alta velocidade, supercomputadores e aglomerados para solucionar problemas de grande escala (GÓES et al., 2005).

Hey e Trefethen (2005, p. 819) argumentaram àquela época que “infelizmente as versões atuais de grid provem apenas uma pequena parte das funcionalidades requeridas para a colaborações e-science”.

A partir do exposto, entende-se que são características da e-science a pesquisa colaborativa, produzida por uma equipe multidisciplinar, que coleta uma grande quantidade de dados, em diferentes lugares. Tais características impulsionaram para o chamado dilúvio de dados que precisam ser gerenciados para viabilizar sua preservação e posterior recuperação.

Essa nova mentalidade de compartilhamento do dado em prol de uma pesquisa colaborativa retoma o ethos científico proposto por Robert Merton. Sem adentrar na polêmica da interação ciência, universidade e indústria, intensificada após a década de 1950 e sem adentrar na teoria de ciência pós-acadêmica proposta por Ziman (2000), cabe ressaltar que o compartilhamento de dados abertos online está em sintonia com o conceito de comunism9o do ethos mertoniano.

É nesse cenário de comunismo dos dados científicos que merece ser destacada a Declaração de Berlin sobre acesso livre ao conhecimento nas ciências e humanidades que expõe:

A internet transformou radicalmente as realidades práticas e econômicas da difusão do conhecimento científico e do patrimônio cultural. Pela primeira vez na história, a Internet oferece-nos a possibilidade de constituir uma representação global e interativa do conhecimento humano, incluindo o patrimônio cultural e a garantia de acesso mundial. [...] redigimos essa declaração para promover a Internet como o instrumento funcional ao serviço de uma base de conhecimento científico global e do pensamento humano, e para especificar medidas que os responsáveis políticos, os institutos de investigação, as entidades financiadoras, as bibliotecas, os arquivos e os museus devem considerar.

A respeito das formas de evolução da produção científica, ou mesmo da colaboração entre pesquisadores propiciada pela internet, Sales (2014, p. 20) argumenta que

é preciso se valer de todos os artifícios da trazidos pelo advento da tecnologia para fazer com que a comunicação científica siga para além de um documento simples. O novo padrão de produção de conhecimento científico, baseado na geração intensiva de conjunto de dados, demanda tipos inéditos de publicações que consigam integrar dados de toda natureza e publicações tradicionais de formas digitais, criando um novo gênero de publicação web.

Se nos primórdios da ciência moderna, a sociedade se preocupou com o armazenamento dos dados científicos primários, registrados em cadernos pessoais, bem como com a preservação dos resultados das pesquisas publicados em artigos de periódicos e livros, o momento é propício para a sociedade se preocupar com a gestão dos dados científicos coletados

online, de forma a garantir o acesso a futuras gerações de pesquisadores.