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A passagem do mundo real para o ficcional e vice-versa

PARTE III “SER OU NÃO SER EIS A QUESTÃO”

3.1 A passagem do mundo real para o ficcional e vice-versa

As contribuições da prática desenvolvida ao longo dos anos no Teatro do Dragão foram de extrema importância para o amadurecimento do trabalho realizado no coletivo, mas este se mostrou como interpretações e revisões do trabalho do ator como criador. E foram (e ainda são) pensadas, como um working in progress, em sua melhor adequação para as atrizes do coletivo – envoltas e prejudicadas não apenas pelo estigma em torno da doença mental, mas, também, pelos reflexos negativos, oriundos do uso da medicação psicotrópica:

enrijecimento muscular, fadiga, perda de memória, aumento de peso, falta de concentração, etc.

Pelos anos de prática teatral e as experiências teatrais realizada com usuários de Caps anteriormente, na formação do coletivo, tinha em vista que o trabalho com eles deveria se autogerir exclusivamente no corpo, sem o uso de textos fixos ou temáticas pré-concebidas. Este corpo possui atribuições sensoriais e reflexivas através dos estímulos teatrais, principalmente na criação do personagem – porque esse nos obriga a uma constituição corporal extra cotidiana – a estabelecer, destacar e interpretar traços da personalidade do ator, e, também, a fazer uma imersão muito forte na vivência do ator, o que me leva às ações antes não pensadas e que, senão pontuadas e destacadas corretamente, podem trazer prejuízos à personalidade.

Assim, em minha própria prática, sabia que precisaria sistematizar uma metodologia de trabalho que estabelecesse entrar e sair do mundo ficcional, de modo a delimitar de forma clara meu eu-ator e meu eu-personagem. Joel Birman (2003) e David Cooper (1978) vai dizer que a doença mental, muitas vezes, sugere um mecanismo de defesa, uma realidade paralela que precisa ser construída para que se estabeleça uma possível relação com o meio que estou vivendo. Dentre as discussões realizadas com a equipe do Caps, esse mecanismo seria de grande importância para evitar que as atrizes perdessem a relação ou o referencial com o real ou com o próprio eu, além de evitar o “ganho secundário” (conceito que explico a seguir) – uma atitude já observada por técnicos do Caps após a realização de oficinas de teatro (algumas nem mesmo realizadas por mim) – e, também, para estabelecer uma técnica e percepção da interpretação teatral.

No ano de 1901, Freud publicou “Fragmento da análise de um caso de histeria: a

paciente Dora”. Com 16 anos, além de possuir pensamentos patológicos – tinha uma relação obsessiva com o pai – possuía uma dor de garganta que aparecia e desaparecia espontaneamente. Acreditava que os motivos da doença da garota não estavam nos sintomas “físicos”. Com a continuidade e observação do seu caso, Freud introduziu os conceitos de ganho primário e secundário. Em psicanálise, ganho secundário é, então, sintomas que aparecem e parecem propiciar, para aquela subjetividade, vantagem pela condição de estar doente (o sujeito se torna objeto de cuidado do outro e, automaticamente, estabelece uma relação de compadecimento). Sobre o tal “ganho secundário”, era perceptível que, algumas vezes, uma participante, ao sair das oficinas teatrais, se tratava pela personagem falando em terceira pessoa, muitas das vezes para conseguir atenção, mas, também, para se livrar de tomar uma medicação ou ser repreendida por uma conduta inadequada.

Para evitar isso, fazíamos, no início e no final do ensaio, um trabalho bem sistematizado de entrar e sair do personagem, de modo a pontuar as fronteiras entre o ficcional e o real de forma clara e, assim, garantir uma imersão na construção do personagem que causasse “prejuízos” à personalidade, ou que trouxesse à tona aspectos íntimos das quais não conseguisse, ainda, fazer uma elaboração considerada positiva. Confesso que esse mecanismo pontuado em equipe, entendendo suas considerações e as acatando para o respeito pelo senso coletivo, sempre me causaram certo estranhamento, pensando em um movimento antipsiquiatria. O desejo não é o de impedir a apropriação de um recurso estético em prol da ordem médica, mas estabelecer uma discussão, inclusive com os próprios pacientes, para vasculhar sua subjetividade e saber o que o levou a fingir estar no personagem para fugir de tomar uma medicação ou ser repreendido? Fica aqui uma provocação ainda sem respostas, mas não poderia deixar de destacar um pensamento que vai à via contrária de uma constituição da técnica da existência, fazendo com que meu discurso se torne contraditório.

Outros estímulos também eram realizados para facilitar o trabalho. Assim, estabeleci estímulos visuais, auditivos e táteis para criar uma sincronização corporal que determinasse esse lugar, ou seja, da associação de estímulos sensoriais, criei uma movimentação corporal ou partitura que marcasse claramente as fronteiras de início e fim do trabalho teatral com as atrizes. Sobre o personagem a ser construído por cada uma, deixo claro que elas sempre foram livres para realizar qualquer escolha. A pergunta inicial do primeiro encontro era bem clara: Qual personagem gostaria de interpretar no teatro? Pude observar (no Coletivo Ser ou Não Ser e em outros trabalhos anteriores no CAPS) que essa frase aciona a escolha de uma persona que se aproximava do ideal do participante já trazendo em si aspectos bem importantes da sua própria subjetividade para o trabalho do ator. A partir daí, as ferramentas de criação eram: a memória das atrizes associadas a músicas, objetos cênicos, figurino e estímulos dados pela mediação teatral.

Sobre a importância do desejo como impulso inicial para a criação ao estudar os conceitos de Freud, faço uma aproximação desta realidade nos estudos da libido em seu livro “Introdução ao Narcisismo” (2010). Para Freud, existe em sua teoria da personalidade – grosso modo –, para contextualizar o conceito de libido, três dispositivos que a constitui: id,

ego e superego. No id, estão as pulsões, nossas inclinações mais elementares e é onde buscamos a satisfação acima de qualquer preço. O ego é o eu que me apresento socialmente, e o super ego é o detentor das normas e da moral dos grupos sociais nas quais estamos imersos. A formação da libido está entre o conflito de id e superego, ou seja, o campo do desejo se dá na associação dos aspectos psicológicos e emocionais. Freud (2010) caracterizou essa energia

como sendo a que move o sujeito na direção ao prazer, assim, o princípio do prazer é nosso maior motivador. Assim, as atrizes do coletivo imediatamente são levadas a escolha de personagens que representam o reflexo de seus desejos íntimos.

Figura 8 - Ensaio das atrizes do Coletivo Ser ou Não-Ser (CAPS - Ouro Preto, 2016).

Fonte: Arquivo pessoal

Figura 9 - Ensaio das atrizes do Coletivo Ser ou Não-Ser (CAPS - Ouro Preto, 2016).

Feita a escolha, era necessário pedir que estabelecessem um referencial a ser trabalhado, porque alguns personagens eram, algumas vezes, arquétipos por demais generalizados, por exemplo: uma bailarina e um palhaço. Para que tivéssemos um ponto de partida mais concreto (ou pré-texto), pedia que escolhessem, também, uma figura que representasse suas escolhas. Assim R. escolheu, por exemplo, não apenas uma bailarina, mas a bailarina do filme Cisne Negro (2010), dirigido por Darren Aronofsky e estrelado pela atriz Natalie Portman. Já D. escolheu um palhaço triste – fui até a internet e ela escolheu uma foto que o representava – justificando que, assim como ela, a personagem da foto “era triste, mas gostava de fazer as pessoas rirem”. As outras atrizes escolheram personas bem distintas e com suas histórias bem determinadas: Zé Pelintra e Cleópatra. A partir deste pré-texto, algumas características já vinham determinadas para o ensaio.

Para entrar nesse universo, o mecanismo estabelecido se dava da seguinte maneira: foram impressas fotos dessas personas que eram pregadas na parede na altura dos olhos de cada ator – como é possível ver nas figuras 8 e 9 – de frente para sua foto, o ator era levado a trocar de roupa e colocar algumas peças do seu figurino juntamente com a escuta de uma música – e escolhi uma música que particularmente gosto muito, cuja tradução é significativa – “Don´t let me be misunderstood”, da Nina Simone. Os benefícios da música para o estimulo é estabelecer um clima, muito usado no teatro, e eu sabia que uma música em outra língua não iria fazê-las dispersarem em sua letra, dando o aspecto que queria alcançar: concentração. Ao fim da música, elas começavam a andar pela sala, o que as ajudava a estarem prontas para iniciar os improvisos propostos no dia: um tema, uma situação, uma memória, a sugestão de alguma atriz, entre outros. Ao final do ensaio, elas faziam uma movimentação curta e repetitiva e ia diminuindo o ritmo até ficarem paradas e “voltarem a si”. Como a assimilação desse entrar e sair do personagem foi ficando mais necessária, tirei o estímulo visual da foto e a troca de roupa – que já era feita antes de iniciarmos o ensaio – mas, mantive a música para a concentração, a pedido das mesmas. A atriz T., que permanece no grupo, por exemplo, não consegue entrar no clima se não fizer o recurso da concentração com a música.

A cada fim de ensaio, estabelecíamos um diálogo para compartilhamentos, desde uma questão prática do ensaio, sensações que a prática tinha produzido no corpo ou de uma questão pessoal que desejassem verbalizar, mesmo não estando associada de imediato com o que havia sido praticado. Quando acontecia alguma situação considerada delicada, ou alguma alteração de humor, algum conflito, este era colocado em roda para uma possível conclusão coletiva, sem imposições ou juízos de valores. Tato que tinha que ter a todo o tempo e que, algumas vezes, saem mesmo do controle. Tivemos algumas poucas situações, mas ocorreram.

É importante dizer que as atrizes do coletivo têm, além do psiquiatra, um profissional da psicologia ou da terapia ocupacional que faz um atendimento terapêutico de escuta com datas determinadas ou da sua necessidade. Nesses atendimentos, o trabalho teatral e seu desenvolvimento vinham à tona para destacar percepções positivas ou negativas de sua prática para o tratamento delas, objetivo do Caps. O pré-requisito para a participação no coletivo era a indicação do psiquiatra, do psicólogo ou do terapeuta ocupacional responsável, além de o usuário estar em quadro considerado estável, o que lhe garantiria uma boa assimilação e resultados positivos da prática proposta, e sabíamos de riscos eminentes. Em seu texto “Que é

a casa da Palmeiras”, a psiquiatra Nise da Silveira discorre sobre o trabalho expressivo e a

terapêutica ocupacional e faz uma advertência:

Entretanto, se o ego está muito atingido, a utilização do trabalho com fins terapêuticos que envolvem característica do trabalho só convém a indivíduos capazes de manter corajosas e persistentes relações com o mundo externo. Teremos de ir ao encontro do doente nos pontos instáveis onde ele se acha ainda, a fim de ajudá-lo a fortalecer o ego de modo gradativo (SILVEIRA apud GULLAR, 1996, p. 84).

Confesso que considero estabilidade e instabilidade um aspecto muito abrangente de discussão e tênue dentro do desenvolvimento de qualquer trabalho cujo corpo nas suas instâncias psicofísicas está imerso, de um momento ao outro essas características podem se inverter. Mas, sim, considero e sei ser de extrema importância esse lugar em que o ego está consciente para fazer interpretações e crítica sobre si capaz de justificar as suas escolhas e atitudes, mesmo que essas sejam consideradas despadronizadas. Assim, juntamente com a equipe do Caps, o acompanhamento do trabalho era feito para estabelecer o bem estar físico e emocional de cada participante.

Quando o trabalho já estava melhor estabelecido pelas atrizes, tirei os ensaios da dependência do Caps, porque, além da interferência dos demais usuários que a todo o momento entravam e saiam do espaço onde trabalhávamos tirando a atenção das mesmas, dava a elas a constituição de uma autonomia. Esse era um dos aspectos também discutidos em equipe e que todos acharam ser benéfico para as atrizes.