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A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA ATRAVÉS DO TRABALHO DO ATOR SOBRE SI

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Academic year: 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO INSTITUTO DE FILOSOFIA E ARTES CÊNICAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

PAOLA CYNTHIA MOREIRA BONUTI

A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA ATRAVÉS DO TRABALHO DO ATOR SOBRE SI

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PAOLA CYNTHIA MOREIRA BONUTI

A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA ATRAVÉS DO TRABALHO DO ATOR SOBRE SI

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto como requisito para a obtenção de título de mestre em Artes Cênicas.

Linha de pesquisa 1: Estética, Crítica e História das Artes Cênicas.

Orientadora: Prof.ª Dr. Luciana da Costa Dias

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Universidade Federal de Ouro Preto Instituto de Filosofia, Artes e Cultura

Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas Curso de Mestrado Acadêmico em Artes Cênicas

Paola Cyntia Moreira Bonuti

A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA ATRAVÉS DO TRABALHO DO ATOR SOBRE SI

Área de Concentração: Artes Cênicas

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AGRADECIMENTOS

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“Não há exemplos a seguir, e decerto não o meu. O que é necessário para uma pessoa, de modo nenhum o é para outra. Todos nós temos as nossas próprias loucuras, os nossos atalhos”.

- David Cooper

“A arte existe porque a vida não basta”.

- Ferreira Gullar

“O advir define-se para nós por um duplo movimento: de um lado a parte móvel do Sensível, processo dinâmico que conduz o sujeito para o futuro; do outro, a parte imóvel do Sensível, que acolhe o movimento da temporalidade por vir. A noção de advir circunscreve o lugar de encontro encarnado que atualiza o futuro no presente e contribui para dar sentido ao que era, até então, despercebido pelo sujeito”.

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RESUMO

Esta pesquisa objetiva investigar, através do trabalho do ator sobre si na construção do personagem e tendo, como ferramenta de criação, a memória emocional, de Stanislávski, a prática do teatro como instrumento de auto formação e autoconhecimento por possibilitar ao sujeito se colocar diante do personagem em uma relação de alteridade e, assim, alcançar uma perspectiva de auto cuidado na criação de uma estética da existência, termo cunhado por Michel Foucault. Ao longo da investigação, pôde ser observado que, tendo o personagem como porta-voz, é possível alcançar certo distanciamento crítico e uma análise daquilo que emergiu do inconsciente do ator para a construção da cena. Buscou-se, na metodologia autobiográfica, realizar o percurso de investigação-formação, em que o sujeito se insere em perspectiva epistemológica, ou seja, se torna detentor da investigação como ferramenta de legitimação da própria prática e da própria subjetividade através da trajetória pessoal, acadêmica e profissional. Finalizando, esta discussão pôde ser estendida ao meu trabalho no CAPS – Centro de Atenção Psicossocial de Ouro Preto, junto a portadores de transtornos psíquicos, cujos resultados também são discutidos nesta dissertação.

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ABSTRACT

This research aims to investigate, through the work of the actor on himself in the construction of the character and having as a tool of creation the emotional memory of Stanislavsky, the practice of theatre as a possibility of self-training and self-knowledge that enables the subject and the character in a relation of alterity, thus reaching a perspective of self-care in the creation of an aesthetic of existence, a term coined by Foucault. Throughout the investigation it has been observed that, having the character as spokesperson, it is possible to actor achieve a certain critical distance and an analysis of what emerged from each subject's unconscious for the construction of the scene. It was sought in the autobiographical methodology to carry out the research-training course where the subject is inserted in an epistemological perspective, that is, becomes the holder of the investigation as a tool of legitimation of the own practice and of the own subjectivity. Finally, this discussion could be extended to my work in the CAPS Ouro Preto with patients with psychic disorders, whose results are also discussed in this dissertation.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (Ouro Preto, 2006). ... 30

Figura 2 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (Ouro Preto, 2006). ... 31

Figura 3 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (Ouro Preto,2006) ... 41

Figura 4 - Edifício Dora (Mariana, 2013)... 44

Figura 5 - Edifício Dora (Mariana,2013)... 44

Figura 6 - Coletivo Ser ou Não-Ser (Apresentação no FAOP -Ouro Preto, 2016). ... 53

Figura 7 - Coletivo Ser ou Não-Ser (Apresentação no FAOP -Ouro Preto, 2016). ... 53

Figura 8 - Ensaio das atrizes do Coletivo Ser ou Não-Ser (CAPS - Ouro Preto, 2016). ... 57

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SUMÁRIO

A ARTE IMITA A VIDA OU A VIDA IMITA A ARTE? CONTEXTUALIZANDO O

CAMINHO DE PESQUISA... ... 11

PARTE I –“O LOUCO QUE HÁ EM MIM SAÚDA O LOUCO QUE HÁ EM TI!” 1 AUTOBIOGRAFIA: UM CAMINHO METODOLÓGICO ... 15

1.1 Meu Caminho ... 15

1.2 A autobiografia e seus reflexos para a formação pessoal e profissional do sujeito através da relação arte e vida ... 21

PARTE II - “A ARTE EXISTE PORQUE A VIDA NÃO BASTA” 2 O TRABALHO DO ATOR SOBRE SI: A ARTE DA VIVÊNCIA ... 29

2.1 A vivência do ator e seus reflexos: uma mulher marginal nas ruas de Ouro Preto ... 29

2.2 A memória emocional como recurso para um autoconhecimento ... 34

2.3 A relação de alteridade com o personagem ... 38

2.4 Demonstrações práticas da relação de alteridade com o personagem ... 39

2.4.1 Diários de bordo ... 41

2.5 A construção de um corpo biográfico... 50

PARTE III - “SER OU NÃO SER EIS A QUESTÃO” 3 O TRABALHO TEATRAL REALIZADO NO COLETIVO SER OU NÃO SER ... 52

3.1 A passagem do mundo real para o ficcional e vice-versa... 54

3.2 A vivência do trabalho do ator no coletivo e seus reflexos: estudos de caso ... 60

3.2.1 Caso 1: E ela fugiu com seu Patrick Schweizer... ... 61

3.2.2 Caso 2: A “Louca” e o Brio ... 66

PARTE IV - “EU VOU FICAR, FICAR COM CERTEZA, MALUCO BELEZA...” 4 A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA ... 74

4.1 Os conceitos das práticas de si em conversa com a prática teatral através da minha experiência ... 74

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CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 87

REFERÊNCIAS ... 90

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A ARTE IMITA A VIDA OU A VIDA IMITA A ARTE? CONTEXTUALIZANDO O CAMINHO DE PESQUISA...

A célebre frase: “a arte imita a vida”, do filósofo grego Aristóteles, um dos fundadores da filosofia ocidental, influencia diversas pesquisas no âmbito das artes nas relações entre arte e vida. Dentre o seu abrangente legado, destaco, aqui, os conceitos presentes na frase: arte (techné), natureza (physis) e imitação (mímesis). Não farei um aprofundamento dos mesmos a partir da obra Aristotélica, que é extensa, mas trarei autores influenciados por essa máxima, cuja reverberação influi nas relações entre arte e vida, assim como na investigação desta pesquisa. Através dos estudos de Alessandro Barrivieira, em “Poética de Aristóteles – tradução e notas” (2006), ressalto o conceito de mimeses a partir do seu pensamento, buscando compreender até onde é possível considerá-la como uma prática para se pensar questões existenciais do sujeito por estar associada à natureza e a arte. Segundo Barrivieira (2006), a natureza em Aristóteles seria um princípio interno à coisa que sofre a mudança, produzindo matéria e forma, em contraste com a técnica, que é um princípio externo à coisa que sofre a mudança. Assim, configurarei, aqui, a título de entendimento, a natureza sendo um princípio interno e o teatro (técnica), um princípio externo. Como a natureza, a arte tem que produzir matéria e forma, assim, pretendo realizar, ao longo desta dissertação, aproximações entre arte e vida através dos conceitos de teóricos do teatro e da filosofia, investigando a possibilidade de o teatro completar os efeitos da natureza em vista de um fim, que aqui se configura como um processo de autoconhecimento e ressignificação da “loucura”1. O que quero ressaltar e destacar é a reflexão feita pelo autor sobre a imitação, quando esta não somente reproduz a natureza, mas dá ao homem um mecanismo de auxílio contemplativo através da arte, para reproduzir ou vivenciar aquilo que a natureza não conseguiu lhe proporcionar (BARRIVIERA, 2006). Investigarei o papel da arte, principalmente para se pensar o sujeito contemporâneo e a produção de sua subjetividade para a busca de uma auto formação pessoal, acadêmica e profissional.

O presente estudo surge de uma hipótese específica que pretende ser respondida através de um diálogo investigativo das práticas teatrais que venho realizando como atriz, no

1Ao longo dessa dissertação as palavras “loucura” e “louco” virão acrescidas de aspas, isso será feito

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Teatro do Dragão, grupo de pesquisa em atividade há 12 anos, com sede em Mariana/MG, e, também, como mediadora teatral2 do Coletivo Ser ou Não Ser formado em 2015, por usuárias do CAPS 1 - Centro de Atenção Psicossocial em Saúde Mental -, na cidade de Ouro Preto/MG. O grupo Teatro do Dragão tem como característica essencial, em seu processo de trabalho, a inserção do ator como criador, assegurando a ele autonomia no processo de criação. E as práticas realizadas no Coletivo Ser ou Não Ser é uma interpretação dos estudos e práticas realizadas no Teatro do Dragão, em uma livre adaptação para indivíduos com transtornos psíquicos.

Antes mesmo de realizar essa pesquisa, observei que, trabalhando a criação do personagem pela técnica do improviso através das minhas memórias pessoais, foi possível constituir um mecanismo de autoconhecimento. Percebi que, uma vez não presa a um texto e às características pré-estabelecidas para a criação do personagem, e tendo como mote de criação o meu próprio eu, destaquei características da minha personalidade embutidas nas falas e ações dos mesmos. Dessa imersão no meu inconsciente3, em um processo criativo ao traduzi-lo em cena, e da interpretação dos escritos do diário de bordo desse processo de criação, foi possível criar uma relação de alteridade com o personagem, ou seja, ao transformá-lo em outro, criei um mecanismo singular de análise e investigação de mim mesma, porque foi necessário um distanciamento crítico para essa realização. Esse mecanismo permite a criação de um corpo biográfico4, que são processos práticos de uma subjetividade cognitiva que passa pelas vias do corpo, objetivando um processo de autoeducação, sobre o qual discorre Marie-Christine Josso (2012).

2Sinto-me mais à vontade com esse termo, o qual utilizarei nesta pesquisa, porque o trabalho desenvolvido com

as participantes do Coletivo Ser ou Não Ser se dá no formato colaborativo, em que todas trabalham juntas na elaboração do espetáculo. A partir do meu repertório e experiência, realizo a mediação ou orientação para a melhor execução dos nossos desejos comuns.

3 O conceito de inconsciente que trabalharei será a partir dos estudos de Carl Gustav Jung (1987, p. 58): “O

inconsciente pessoal contém lembranças perdidas, reprimidas (propositalmente esquecidas), evocações dolorosas, percepções que, por assim dizer, não ultrapassaram o limiar da consciência (subliminais), isto é, percepções dos sentidos que por falta de intensidade não atingiram a consciência e conteúdos que ainda não amadureceram para a consciência”.

4Em seu artigo “O corpo biográfico: corpo falado e corpo que fala”, Josso (2012, p. 23) diz que “Elaborar a sua

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Então, experienciando a construção do personagem, através da memória emocional

terminologia cunhada pelo ator, diretor e obsessivo estudioso das artes dramáticas, Constantin Stanislávski (2016), pude perceber que, para além da sua colaboração na elaboração estética do espetáculo, ela proporciona uma vivência física e psicológica única para o ator, em que as vozes e atitudes do personagem revelam traços desconhecidos, pouco explorados, outros pontuais da personalidade do ator, criando, assim, a ideia de uma estética da existência5, porque a interpretação partindo do real vira outra realidade quando transformada em cena. Ao investigar a constituição de uma estética da existência, quero, por meio do pensamento de Michel Foucault, trazer a discussão para se pensar a possibilidade de ressignificar o sujeito “louco” como um sujeito autônomo, ou seja, livre e detentor de sua verdade, visando uma possível diminuição de seus estigmas.

Amadurecendo minha prática teatral, percebo que a maneira de sentir a realidade é individual, ou seja, a mesma vivência pode ter aspectos diferentes para cada sujeito, deixando claro que o trabalho desenvolvido com as atrizes do coletivo torna-se uma extensão do meu trabalho de atriz no Teatro do Dragão, ou seja, um dispositivo positivo de autocuidado6, perpetuando a transformação do meu sujeito através da prática teatral, continuando, assim, meu processo de autoconhecimento. Através do trabalho das atrizes do Coletivo Ser ou Não Ser, pude perceber com mais clareza a relação de alteridade com o personagem que cria uma atmosfera de conforto e de segurança - uma vez que sou levada a crer que as atitudes e as falas não são minhas, estando imerso em situação ficcional – sendo assim, para a realização de um processo de autoconhecimento, foi necessária a minha intervenção como mediadora teatral. Os objetivos do coletivo não estão voltados para esse fim, o grupo foi idealizado como um mecanismo de criação de espetáculos teatrais para a promoção da inserção social. Aqui, ela é pontuada e destacada para demonstrar a influência e os reflexos da prática do ator sobre si, através da memória emocional para constituição de um mecanismo de autoconhecimento, sendo que a mesma realidade ainda em perspectivas bem diferentes se assemelha com a minha vivência teatral, desta forma, destacarei, também, a metodologia e os reflexos do trabalho do ator sobre si com as atrizes do Coletivo Ser ou Não Ser, fomentando a aplicabilidade da prática teatral destacada nesta pesquisa.

5 Fazer da própria vida objeto de uma tékhne, portanto, fazer da própria vida uma obra que (como deve ser tudo

o que é produzido por uma boa tékhne, uma tékne razoável) seja bela e boa – implica, necessariamente, a liberdade e escolha daquele que utiliza sua tékhne.

6 O conceito de autocuidado está presente nos estudos de Michel Foucault, no seu último trabalho, intitulado A

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Assim, através da apropriação das memórias dos diários de bordos elaborados por mim como atriz no Teatro do Dragão e como mediadora teatral no Coletivo Ser ou Não Ser, buscarei investigar os reflexos positivos e negativos das experiências teatrais, comprovando a possibilidade de constituição de uma estética para além do espetáculo, através dos estudos de A Hermenêutica do Sujeito (2010), de Michel Focault, além de se configurar como um mecanismo investigativo formativo7, através da metodologia autobiográfica, que me coloca como sujeito desta narrativa e objeto de pesquisa. Assim, os conceitos e teóricos aqui destacados realizam um diálogo transversal, no qual o eu narrativo, que é um recurso metodológico típico das pesquisas autobiográficas, se configura como um mecanismo autoformativo. Me coloco como objeto de pesquisa, reivindicando e legitimando minha própria prática e subjetividade na relação entre arte e vida através da minha formação acadêmica e profissional como mecanismo de saber.

O importante, ao realizar uma pesquisa autobiográfica, é dizer que o teatro se tornou um mecanismo potente e positivo de superação da minha “loucura”. E se minha história pessoal tem lugar nesta pesquisa, é a partir da sua hipótese, que trago como a pergunta norteadora do estudo: É possível o trabalho do ator sobre si ressignificar o “louco” como

sujeito de si ao constituir uma estética da existência?

7(...) Na pesquisa narrativa ou de histórias de vida como procedimento de recolha das fontes e também como

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PARTE I –“O LOUCO QUE HÁ EM MIM SAÚDA O LOUCO QUE HÁ EM TI!”

1 AUTOBIOGRAFIA: UM CAMINHO METODOLÓGICO

1.1 Meu Caminho

Caminante nao há caminho, o caminho se faz ao andar.

- Antonio Machado

Um dos pontos centrais da pesquisa autobiográfica é não separar vida e pesquisa, algo muito pertinente para a prática de uma atriz que busca seu autoconhecimento, seu próprio caminho de vida e suas próprias escolhas. Neste sentido, nada mais coerente que começar pelo meu próprio caminho, onde o imbricamento entre realidade, imaginação e interpretação se intercruzam através das minhas memórias, buscando a criação de sentidos pontencializadores para minha autoformação sobre a vida, a formação acadêmica e as escolhas profissionais.

Sou filha mais velha de Paulo Roberto Mateus Moreira e de Efigênia Regina Carvalho de Souza, nasci no mesmo dia que morreu Elvis Presley, 16 de agosto de 1977. Minha mãe me relata saudosista que meu Pai, ao me pegar no colo, falou: “morre um rei, nasce uma princesa”. Somos três filhos desta união. Nasci no bairro de Santa Efigênia, em Belo Horizonte, e, lá, vivi os primeiros 25 anos da minha vida. Não tenho muitas memórias da minha infância, a considero padronizada dentro dos aspectos de uma família de baixa-renda, que tinha a avó materna como figura central afetiva e financeira. Minha avó faleceu no dia02 de janeiro de 1993,e, ainda, depois de todos estes anos, ela faz muita falta. Me pego, muitas vezes, tentando resgatar memórias da infância: alguns episódios são bem claros, como, por exemplo, certa pré-disposição para o teatro. Lembro-me de várias participações em coroações e autos de igreja e algumas apresentações teatrais no ensino fundamental.

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sentada ao seu lado, gelei de cima a baixo. Ao ser confrontada sobre o destino de seu casamento, não tive condições maduras de manter a verdade, muito menos quis me tornar o motivo de ruína da sua vida, palavras ditas por ela. A minha omissão foi bem aceita, porque já vinha taxada como mentirosa e fantasiosa dentro da família, por ter inventado ficar doente quando o meu pai saiu de casa. Então, tudo não passou de em episódio infantil criado por uma mente que queria ver os pais novamente juntos, causando a discórdia da nova constituição familiar. E ele continuou me molestando, até que um dia eu o enfrentei, dizendo que iria ligar para o meu pai e chamar a polícia. Consegui pedir um trinco para o meu quarto, justificando estar crescendo e querer privacidade. E, daí para frente, a minha defesa era ser agressiva e estúpida com ele. Assim, meu estigma de ser “louca” inicia-se aos trezes anos, quando passo a ser uma criança má que criava constrangimentos no seio familiar – por várias vezes, escrevi e apaguei esta história no percurso desta escrita. Ao destacá-la, quero reafirmar que, após anos de terapia psicanalítica e outros métodos alternativos, esse acontecimento foi fundamental para instaurar minha formação subjetiva, ou seja, a minha formação como sujeito. Aqui, traço como a “loucura” perpassa pela minha vida, as escolhas acadêmicas e profissionais, a vinda para Ouro Preto, me constituir nesta cidade, desenvolver o meu trabalho teatral na RAPS

Rede Atenção Psicossocial de Ouro Preto. Então, falar sobre esse episódio traz reflexões, hoje, bem conscientes de tudo de positivo e negativo que ele me trouxe. E, de certa forma, foi o que me trouxe até aqui também, em um desejo enorme de resgatar a minha autoestima, meu papel de mulher, de sujeito social, de pesquisadora e de formadora de saberes. É com um grande orgulho que me intitulo, com certo humor negro, típico de pessoas que já passaram por poucas e boas: a louca fazendo pesquisa.

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profissionais futuras trouxeram muitas dificuldades na minha formação acadêmica e tentar superá-las é sempre um desafio muito grande para mim.

Retomando minha história, em 1995, resolvi buscar orientação médica e fiz isso com ajuda de amigas da escola. Assim, aos 18 anos, fui diagnosticada com transtorno bipolar. O ambulatório que fazia terapias coletivas foi destituído de seu lugar de origem, localizado na Regional Leste na Avenida dos Andradas, e não consegui resgatar os prontuários deste tempo. Fato é que cheguei a tomar alguns medicamentos associados à fluoxetina e seu uso diminuía consideravelmente o meu raciocínio e ações, e não somente nos primeiros dias considerados de adaptação, o mal-estar se estendia por meses. Sendo assim, ao longo da minha experiência, não me recordo de uma boa adaptação com medicações psicotrópicas. Iniciei uma busca de autoconhecimento corporal, emocional e espiritual, auxiliada, no máximo, pela psicanálise nesses momentos reflexivos.

A vida familiar foi seguindo sobre o estigma de mal-humorada, excêntrica e meu diagnóstico e tratamento sempre foi realizado de forma velada para evitar conflitos. E a vida foi caminhando. Aos 22 anos, iniciei o namoro com meu atual marido e minhas perspectivas se ampliaram, pela sua influência benéfica de me auxiliar a ter uma crítica melhor sobre mim mesma, correr atrás dos meus sonhos, como estudar, por exemplo. Foi com ele que, pela primeira vez, assisti a uma peça teatral, “O Moliére imaginário”, do Grupo Galpão, no Palácio das Artes. Foi uma paixão avassaladora, imediatamente desejei tanto um dia estar no lugar daquelas atrizes. Mas a vida seguiu seu curso sem grandes expectativas, trabalhando e cuidando da minha saúde quando essa se encontrava debilitada. Mas, aí, veio o que considero um divisor de águas: como forma de rebeldia, me inscrevi no vestibular em artes cênicas na UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto, onde passei em segundo excedente. Hoje, sei que queria quebrar as lembranças ruins do meu passado e da relação fragmentada com minha mãe, mas os resultados positivos desta decisão são transformadores. Assim, aos 25 anos, vim para Ouro Preto fazer artes cênicas sem ter feito teatro antes, sem saber nada a respeito, grávida, “louca” diagnosticada e com uma ajuda de custo de R$ 100,00 (cem reais) que meu Pai me dava mensalmente.

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por ser, este, um fator que também marcou a minha formação subjetiva até chegar à universidade. Sendo assim, ao entrar para a graduação, me sentia um “zero à esquerda” em todas as disciplinas, quase nada entendia, nunca tinha ouvido falar daqueles teóricos e suas práticas e sempre me perguntava o porquê de ter entrado por essa via.

Em 2004, retomei os estudos. A partir desse período, pude perceber uma virada significativa no meu modo de perceber e entender meus estados de consciência. Foi o meu regresso para as atividades acadêmicas do curso e, consequentemente, as práticas teatrais que me possibilitaram uma reflexão cuidadosa sobre mim. Da convivência em sala de aula, se deu a formação de um grupo teatral, o Otrâmite, em 2004, e, atualmente, Teatro do Dragão, sendo que, da formação original, permanecemos eu e a pesquisadora e diretora do grupo, Luciane Trevisan, que mantém viva e atualizada toda a pesquisa estética do grupo. Já realizava pequenas interpretações em cenas das disciplinas obrigatórias e, também, no grupo, identificando, assim, uma predisposição para atuação, o que me deixava extremamente envolvida pelo teatro. Foi a partir da prática teatral que todos os textos teóricos, até então complexos, tornaram-se claros, fazendo com que eu descobrisse a importância do trabalho sobre si, de Stanislávski, do teatro ritual, de Grotowisk, bem como a “loucura” e a (des) construção do corpo, em Artaud. Juntamente com essas descobertas, iniciei estudos informais sobre a “loucura”.

Em 2005, no V Festival de Monólogos e Música Original da UFOP, ganhei meu primeiro prêmio de atriz com a adaptação do livro de Hilda Hilst, O Caderno Rosa de Lori Lamby.O grupo levou, ainda, os prêmiosde melhor direção, iluminação e cenário.

Ao longo da graduação, fomos criando trabalhos em que nos arriscávamos na tentativa de incorporar, em nossas pesquisas, diversas linguagens e teorias, ocupando sempre o interesse pela criação do ator. Fizemos inúmeras experimentações que pudessem nos levar ao estado de criação atoral que queríamos. Entre muitos teóricos, artistas e afins, usamos de forma não ortodoxa o método denominado memória emotiva, do diretor, ator e teatrólogo russo, Costantin Stanislávski. Dentre muitas diferenças, a principal é que não trabalhávamos com textos prontos. Em 2006, realizei meu trabalho de conclusão de curso em interpretação,

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criação dos meus personagens, percebi que a liberdade de construção a partir da minha subjetividade emergia muitas questões das quais não queria saber sobre mim, destaquei traços da minha personalidade até então desconhecidos. Então, nessa prática que configurei como uma relação de alteridade com os meus personagens, desenvolvi um processo de autoconhecimento, ou seja, dando a eles um lugar de outro, realizei de forma bem peculiar um interpretação do meu eu.

Em 2008, finalizando minha graduação em Artes Cênicas na Universidade Federal de Ouro Preto, um novo ocorrido me fez buscar auxílio médico e, assim, dei início a minha relação com Caps. 1- Centro de Atenção Psicossocial em Saúde Mental de Ouro Preto, como paciente. Estava iniciando a circulação do monólogo “O Caderno Rosa de Lori Lamby”, meu filho Cauã estava com cinco anos, e precisei muito do auxílio do meu marido, no que fui correspondida, porém, familiares e vizinhos começaram a influenciá-lo, dizendo que minhas escolhas iriam fazer mal para nosso filho. Comecei a ser pressionada pelas escolhas profissionais que fiz. O meu filho sempre estava comigo nos ensaios e eu tinha todo o cuidado de levar comida, um edredom que pudesse colocá-lo deitado caso quisesse dormir e tantas outras coisas que as mães zelosas fazem, mas isso foi, cada vez mais, ganhando um aspecto negativo e a pressão só aumentava. Morávamos no Morro São Sebastião, um bairro em Ouro Preto que fica a 3 km da Praça Tiradentes, de uma subida muito, mas muito íngreme, eu estava levando o Cauã para o ensaio quando ele começou a pirraçar, não queria ir, eu poderia ter ficado com ele em casa, mas insisti e descemos os dois “ladeira a baixo”. Em um determinado momento – ainda pirraçando em meu colo – o coloquei no chão e pedi que andasse ao meu lado, a pirraça continuou agora no chão. Confesso que, nesse momento, fiquei com raiva e o tirei do chão com certa truculência, ele se jogou para trás em meu colo e, na época, eu estava com unhas enormes, e, na tentativa de não deixá-lo cair, minhas unhas pegaram fortemente em seu ombro na direção do pescoço, deixando um hematoma muito feio. Isso foi à gota d´água para eu ser julgada como uma péssima mãe e a prova dos reflexos negativos do teatro em minha vida. Iniciei um processo depressivo e fui procurar ajuda médica. Esse foi um novo episódio muito marcante nas investigações e questões que aqui proponho. Assim, no dia 19 de março de 2008, fui consultada no Caps 1 de Ouro Preto.

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errar. No prontuário, podemos ver uma supervalorização da agressão cometida, como se já tivesse ocorrido outras vezes, inclusive, escreve situações que não aconteceram. Tenho total consciência ao dizer isso, porque o atendimento e conduta realizada pela psiquiatra foi completamente diferente dizendo que a agressão carregava em si culpa e é obvio que me senti péssima após o episódio, nunca agredi meu filho, e se procurei ajuda médica foi pelo medo de perder a minha sanidade e colocar meu filho em risco. Porém, o mais importante para mim e que muda os aspectos da condução da minha vida e da minha formação subjetiva é que não foram caracterizados pela psiquiatra estados maníacos ou depressivos.

Desde 1995 até aqui, foi realizada uma longa caminhada no sentido de compreensão do transtorno bipolar, formas alternativas foram buscadas para sanar e entender o que se passava comigo. Uma busca árdua, sofrida, mas, principalmente, “superada” foi se aproximando ao longo dos anos e esse diagnóstico foi extremamente importante para isso. Mas e o diagnóstico anterior? Teria sido prematuro? Então o teatro, realmente, me ajudou na “superação” do “transtorno psíquico”? Eu não sou “louca”? A “loucura” foi produzida em mim? Não quero, em hipótese alguma, confrontar os diagnósticos médicos para um “antes” e “depois”, ou até mesmo constatar se me enquadro ou não em um CID (Classificação Internacional de Doenças), e muito menos denunciar a conduta deste profissional de psiquiatria que me atendeu. Ser diagnosticada ou não como “louca” não faz mais diferença na minha constituição de sujeito, até mesmo porque, desde aquele primeiro diagnóstico, convivendo com outras pessoas com transtorno, já tinha percebido que, se tinha algum tipo de transtorno psíquico, este estava longe de ser bipolaridade. Com o passar dos anos, sofri mais pelo estigma do que pela doença em si. A psiquiatra que fez meu atendimento no Caps 1 de Ouro Preto me indicou a psicanálise e o uso da fluoxetina. Fiz nova tentativa para tomar a medicação sugerida, mas, realmente, não me enquadro, o uso do medicamento atrapalha minha relação familiar e de trabalho. Assim, busquei formas alternativas para manter meu organismo funcionando bem física e emocionalmente.

Vinte dias depois dessa consulta e vendo os reflexos dos remédios, resolvo cancelar o retorno e proponho à coordenação do Caps 1 iniciar, de forma voluntária, um trabalho teatral com usuários. Por necessidade interna, me pediram para desenvolver o trabalho no Caps –ad – Centro de Atenção Psicossocial a usuários de álcool e outras drogas, e que tivesse um produto final como resultado das atividades teatrais. Ao longo de nove meses de trabalho, com dois encontros semanais de 02 horas, nasceu uma livre adaptação do conto original do

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Apresentamos em Ouro Preto, inclusive no Festival de Teatro do Projeto Manuelzão8. A partir desse trabalho, supus que o teatro poderia realizar com outros o que ocorreu comigo e continuei realizando atividades teatrais no Caps de forma voluntária. Tive, também, a oportunidade de entrar no quadro de funcionários através de dois processos seletivos simplificados da Secretária de Saúde da Prefeitura de Ouro Preto, onde o Caps está locado, com o cargo de Monitora de Oficina Terapêutica, cujas atribuições são o desenvolvimento de ações produtivas com atividades artesanais, sensoriais, corporais, dentre outras. Foram dois contratos de um ano e meio em intervalos de balões de dois anos e, nesse meio, sempre realizava algum trabalho com os usuários. Foi então que, em março de 2015, uma usuária me fez o convite para criar um grupo teatral e, assim, nasceu o Coletivo Ser ou Não Ser, com objetivo de realização de criação de espetáculosteatrais e sua circulação para a inserção social dos seus participantes.

Trazer minha história de uma forma tão intima e desnudada é uma forma de me aproximar das características da pesquisa (auto) biográfica que buscam traçar um percurso pessoal, social e profissional para o aprimoramento do sujeito, por considerá-lo em sua completude. Além de a abordagem ser considerada um movimento de investigação-formação, que se associa a uma tomada de consciência do sujeito pelo exercício de uma meta reflexão do ato de narrar, é como contar para si através da sua trajetória os conhecimentos adquiridos através da experiência (SOUZA, 2004). Aqui, propus uma visita a minha experiência de como a “loucura” atravessa minha personalidade e como ela contribui para as escolhas profissionais, além de aproximar a minha história da metodologia autobiográfica, pela qual a investigação aqui proposta na forma de narrativa realiza uma pedagogia da formação, em que o sujeito descobre, ao longo da sua trajetória dos fatos destacados, indícios para um autoconhecimento pessoal e profissional.

1.2 A autobiografia e seus reflexos para a formação pessoal e profissional do sujeito através da relação arte e vida

A escrita da narrativa remete ao sujeito uma dimensão de auto escuta, como se tivesse contando para si próprio suas experiências e as aprendizagens que construiu ao longo da vida, através do conhecimento de si (SOUZA, 2004, p. 72. Grifo do autor).

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A pesquisa autobiográfica possibilita uma apropriação da história pessoal através de uma narrativa memorial, tornando-se material de investigação-formação, e esta dupla função realiza uma dinâmica epistemológica entre sujeito e objeto de pesquisa, ou seja, o sujeito pesquisador e o sujeito da narrativa são o mesmo. Esse movimento o leva a uma ressignificação da própria história ao levantar situações de extremo significado para sua formação enquanto sujeito, ou, até mesmo, levantar situações que ainda não foram vistas, mas que se tornam possíveis através desta metodologia, na qual o sujeito se coloca como narrador ao se apropriar das suas memórias e tem como objetivo a autoformação do sujeito ao considerar aspectos de sua singularidade. Vislumbra, também, quebras de paradigmas com os modelos ortodoxos de pesquisa, nos quais o poder científico se dá através da racionalidade, porque insere a subjetividade como mote.

Gostaria, também, de investigar os reflexos da metodologia autobiográfica – que tem ampla abrangência na área da educação contemporânea, em específico, na formação de professores – como possível pedagogia para o ensino do teatro, nos moldes da educação não formal, para sujeitos com transtornos psíquicos, sobre reflexos da experiência que destaco nesta pesquisa através da influência dos estudos realizados por Elizeu Clementino de Souza (2004) e Marie-Christine Josso (2010).

Motivada por encontrar ressonâncias para relatar minha história pessoal, mas, também, pelo discernimento que essa pesquisa só poderia vir à tona através da minha experiência narrativa, porque os relatos aqui pontuados e destacados buscam, além de uma interpretação bem particular, investigar que a prática teatral através do trabalho do ator sobre si pode vir a ser um mecanismo de autoconhecimento como recurso pedagógico de autoformação, iniciei uma busca para encontrar autores e conceitos que dialogassem com os objetos propostos. Foi então que me deparei com o trabalho de Elizeu Clementino de Souza9, pesquisador pioneiro em pesquisa autobiográfica no Brasil. A partir daí, contemplei a possibilidade de desenvolvimento desta pesquisa em 1ª pessoa e de me colocar como objeto da mesma. Ainda esbarramos dentro dos programas de pós-graduação com as questões técnicas e metodológicas da pesquisa, onde o caminho se dá de forma tradicional e mecanicista, em que o objeto de

9 Professor efetivo do Programa de Pós Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do

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observação está fora com a alegação de que o distanciamento se faz necessário para uma boa crítica e melhor assimilação dos resultados. Por anos, o pensamento subjetivo foi considerado descartável. As pesquisas autobiográficas se inserem na educação contemporânea, onde o sujeito e suas subjetividades ganham legitimidade para o campo do saber.

Então precisava encontrar um campo de quebra de paradigmas para investigar as possíveis contribuições da história de vida vir a ser considerada como válidas para uma aproximação científica, ou como recurso pedagógico para se pensar a auto formação nas relações entre vida pessoal, acadêmica e profissional, assim como tem sido nas pesquisas autobiográficas desenvolvidas nos programas de pós-graduação da área da educação contemporânea, e foi assim que encontrei meu mote metodológico. Reforço ainda mais dizendo que os paradigmas aqui propostos se inserem através do mecanismo de pesquisa pós-positivista, que não rejeita o método cientifico, mas pensa em novas aberturas de saberes e suas bases estão pautadas no realismo ontológico, ou seja, as relações entre a natureza, a existência e a realidade do ser, a possibilidade e o desejo pela verdade objetiva- existem duas realidades: a objetiva que é aquilo que vejo a olho nu, e a subjetiva que são abstrações sobre algo. Os estudiosos desta vertente observaram que, para cada verdade objetiva, existem muitas mais verdades subjetivas, assim, foi necessário dar um corpo concreto para a subjetividade, porque o homem se baseia muito mais na verdade subjetiva que está estritamente relacionado à sua verdade, do que na objetiva, que é indiferente a ele, e por fim o uso da metodologia experimental que aqui se aplica a metodologia autobiográfica e a essa pesquisa, onde parto das minhas experiência e vivência (FORTIN, GOSSELIN, 2014). No entanto, a metodologia autobiográfica e sua inserção pesquisa ainda é muito recente no cenário brasileiro.

A utilização do termo história de vida corresponde a uma denominação genérica em formação e em investigação, visto que se revela como pertinente para a auto compreensão do que somos, das aprendizagens que construímos ao longo da vida, das nossas experiências e de um processo de conhecimento de si e dos significados que atribuímos aos diferentes fenômenos que mobilizam e tecem a nossa vida individual/coletiva. Tal categoria integra uma diversidade de pesquisas ou de projetos de formação, a partir das vozes dos atores sobre uma vida singular, vidas plurais ou vidas profissionais, no particular e no geral, através da tomada da palavra como estatuto da singularidade, da subjetividade e dos contextos dos sujeitos (SOUZA, 2006, p. 27).

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mesmo memorial, através do entrecruzamento da história de vida, história acadêmica e história profissional, “como meio de investigação e instrumento pedagógico, segundo Nóvoa (1988), para melhor compressão do sujeito que se coloca como objeto de pesquisa” (SOUZA, 2004, p. 15), cujo objetivo fim é investigar como a relação vida pessoal, formação acadêmica e profissional traçam estratégias para refletir, interagir e sentir os mecanismos de ação da formação do nosso sujeito, aqui em específico, o de docente. Em sua tese de doutorado, o pesquisador Souza (2006, p. 24) diz: “busco uma revelação das aprendizagens construídas ao longo da vida como um metacognição ou metarreflexão do conhecimento de si”. O pesquisador continua dizendo a importância desse recurso para extrair metodologias para o ensino de seus alunos, ou seja, ao investigar o percurso e as práticas utilizadas em campo de ensino, fortaleço aquelas que são caras para uma aprendizagem de qualidade e um revisar de outras que não alcançaram tais fins. Apesar de eu não ter escolhido, na graduação, o caminho da licenciatura e não ter buscado uma profissionalização nesta área, desenvolvi, ao longo dos anos, uma docência nos moldes de uma educação não formal, onde o trabalho em sua maior parte foi voluntário, dentro de uma instituição destinada a cuidar da saúde mental. Completa-se, esse ano, 10 anos de atividades teatrais desenvolvidas com sujeito com transtornos psíquicos e ainda estamos engatinhando nos enfrentamentos que essa prática se destina. Essa pesquisa é um ponta pé inicial para descortinar os reflexos positivos e até mesmo negativos da relação teatro e saúde mental dentro da nossa realidade e experiência. Existem trabalhos de destaque na relação entre teatro e saúde mental, dentre os quais podemos citar dois grupos com esse fim: o grupo teatral Sapos e Afogados, de Belo Horizonte, e Cia UEINZZ, de São Paulo, grupos com trajetórias há mais de 10 anos com circulação de espetáculos até no exterior.10 O importante aqui é destacar que a metodologia autobiográfica se insere no cenário das artes11 recentemente.

Para sistematizar uma pesquisa nos moldes biográficos, são utilizados diversos mecanismos, como relatos orais, diários pessoais, entrevistas, correspondências, dentre outros. E, nesta pesquisa, destacarei os diários de bordo dos meus processos de criação do personagem dentro do Teatro do Dragão e no Coletivo Ser ou Não Ser. Souza (2004) vai dizer que as narrativas expressas através de diários apropriadas na narrativa de pesquisa organizam e potencializam não somente a vida profissional, mas como a pessoal em um

10 Mais informações em: <https://www.facebook.com/saposeafogadosbr/> e

<http://www.pucsp.br/nucleode-subjetividade/ueinzz.htm>

11 Existe uma publicação recém-lançada em 2017 pelos organizadores Elizeu Clementino de Souza, Irene

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recurso formativo não somente para si como para os outros. Digo, então, que, mesmo antes da realização desta pesquisa, meu diário de bordo já exercia uma função de instrumento pedagógico, porque, a partir de uma leitura crítica dos meus escritos, mesmo que informalmente, percebia traços e características da minha personalidade embutidas nas falas e ações do personagem, e isso me proporcionou um autoconhecimento da minha subjetividade, sendo assim, já vinha, intuitivamente, realizando uma pesquisa investigativa formativa. Esse processo pedagógico, ao longo dos anos, estimulou o desejo e maturidade de querer ensinar a prática teatral para sujeitos com transtornos psíquicos, observando o seu impacto positivo para a auto expressão corporal e psicológica.

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acabou formulado conceitos de identidade e normalidade, segregando sujeitos que fugiam desta ordem (FOUCAULT, 2013).

Foucault (2010) diz que exercitar a subjetividade de forma livre é ter uma experiência de si, porque a experiência que efetua uma subjetividade promove modos historicamente singulares de se realizar a experiência de si (modos de subjetivação), assim, a necessidade de Foucault, ao final de sua obra, mesmo tendo anteriormente declarado a morte do sujeito ao retomar a importância da subjetividade como um recurso singular contra os saberes e poderes, é sua força de resistência que cria uma nova episteme, ou seja, no contexto histórico onde o sujeito se insere se constituí novos paradigmas para se pensar os saberes científicos em um modo autônomo de existência.

Através do pensamento de Foucault (2010; 2013) e das características da autobiografia destacadas nos estudos do professor Souza (2004; 2006) na relação entre sujeito e tempo histórico, argumento que as relações estabelecidas pelo meu corpo (subjetividade) com tantos outros corpos, que, aqui, destaco o corpo acadêmico, o psiquiátrico e o teatral me permitiram chegar até aqui ciente de como a “loucura” atribuiu aspectos negativos e positivos para meus modos de subjetivação e investigar se essa experiência se faz pertinente para um processo além de autoformativo existencial se aproxima de uma formação profissional não formal em que o teatro se torna uma prática potente para levar o ator a um autoconhecimento, principalmente na experiência aqui destacada com sujeitos com transtorno psíquico. Essa é a primeira justificativa em caráter particular atribuída ao presente estudo: dizer que, ao me permitir vivenciar uma experiência de resistência do saber e poder psiquiátrico, instaurei um mecanismo de subjetivação para a ressignificação da “loucura”, buscando formas alternativas para os reflexos negativos do uso de medicamento psicotrópicos e não aceitando o diagnóstico de transtorno bipolar, ou seja, ao me aproximar da confirmação sobre os reflexos do estudo de Michel Foucault, realizei um modo de vida.

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ampliação “da esperança das políticas de subjetividades”, em que a quebra com a racionalidade ortodoxa científica é necessária para projetar

(...) pegadas simbólicas, experiências e afetos vividos e sentidos criam espaços para interpretar aspectos de itinerários subjetivos e coletivos que, via reflexão sensível (ou sensibilidade reflexiva), podem ser transformados em aprendizagem (...) explorar, aprofundar e propor formas de compreender como vida, arte e educação traçam, desmancham e redesenham nossos jeitos de conceber, pensar e agir e sentir enquanto fazemos (nossas) histórias. (SUÁREZ, 2015 apud MARTINS; SOUZA; TOURINHO, 2017, p. 14).

Assim, os saberes produzidos se dão sempre em mecanismos relacionais no encontro de corpos afins ou não para a constituição da história. Retomando a tese do pesquisador Souza (2004), quando destaca o itinerário de formação acadêmica, pessoal e profissional com as relações na formação de docentes como recurso para levantar e investigar os mecanismos que constituíram o que eles são, o que serão, e o que querem ser no campo educacional, quero traçar uma trajetória no mesmo viés educacional e educativo destacando 03 (três) períodos de grande importância – em uma conjunção de investigação-formação, a saber: 1) a minha inserção na graduação, onde qualifico a prática teatral como pesquisa; 2) o meu trabalho de atriz no Teatro do Dragão, onde adquiri, através da prática do ator, um processo de

autoconhecimento e “ressignificação da loucura”; 3) o exercício prático teatral com os usuários de saúde mental, que se configurou, ao longo dos anos, como minha escolha profissional. Posso dizer, então, que essas três instâncias me proporcionaram aspectos similares ao de uma formação e auto formação pelo viés educacional abordado pela metodologia autobiográfica?

Através da tomada da subjetividade, que, nas pesquisas da narrativa de si, tem objetivos heurísticos e fenomenológicos de abordagem, tanto em Foucault (2010) quanto em Souza (2004), é dito da ruptura com o pensamento cartesiano. No campo das artes da cena, já vemos, também, ressonâncias no livro de Narciso Telles, “Pesquisa em artes cênicas: textos e temas” (2012), com objetivos de romper fronteiras das pesquisas com abordagens subjetivas para “instalar parâmetros que permitam a análise da criação no contexto da própria criação, sem comparações com parâmetros outros que não os próprios determinados pela obra ou processo” (ALEIXO, 2002 apud TELLES, 2012, p. 08)12. Esses movimentos considerados experimentais, que abordam uma nova relação entre o investigador e seu objeto de estudo,

12 Citação de Fernando Aleixo, ator e professor do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade

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vieram de uma vertente de pensamento quebrando paradigmas autoritários na condução do saber, da necessidade de promover outros métodos de investigação e de se ter outros mecanismos para pensar a ciência, principalmente nas artes da cena. Motivada por realizar essa inserção, me senti impulsionada através do último periódico da Revista Brasileira de Pesquisa (Auto) Biográfica, de agosto de 2017, na qual está publicado o artigo “Estado da arte da pesquisa (auto) biográfica: uma análise do portal de periódicos capes”, de Oliveira, Ramos e Santos. Os autores realizam um mapeamento da produção do conhecimento no campo da pesquisa autobiográfica e fazem uma chamada no fim do seu estudo:

Ou seja, necessitam de mais movimentos no caleidoscópio, para que possamos conferir outros arranjos e imagens sobre o estudo deste artigo; como sugestão pode-se ampliar a área do conhecimento para além do campo da educação, procurando como tem se configurado o campo da pesquisa autobiográfica com a saúde, a administração, a literatura, as artes, entre outros (OLIVEIRA; RAMOS; SANTOS, 2017, p. 464).

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PARTE II - “A ARTE EXISTE PORQUE A VIDA NÃO BASTA”

2 O TRABALHO DO ATOR SOBRE SI: A ARTE DA VIVÊNCIA

Neste capítulo, descrevo minha prática teatral desenvolvida no Teatro do Dragão através da vivência do trabalho do ator sobre si, tendo como mote de criação a memória afetiva, termo usado aqui no Brasil pela influência das traduções inglesas, mas que, nos manuscritos diretamente do russo, aparece como memória emocional. Isso será feito tomando como base o livro Stanislávski: vida, obra e sistema (2016), dos autores Aimar Labaki e Elena Vássina. Essa prática me permitiu criar uma relação de alteridade com o personagem, ou seja, o transformando em outro, observei, através das suas características e ações, nuances da minha personalidade. Por isso, digo que desenvolvi e me aproximei da constituição de um

corpo biográfico (JOSSO, 2012), onde os meus modos de subjetivação foram percebidos nas falas e ações do personagem, me aproximando de um mecanismo de autoconhecimento. Essas observações se deram através da leitura e crítica dos meus registros do processo de criação feitos em diários de bordo. A cada novo processo de criação, mais me aproximei de uma prática pedagógica de autoconhecimento, mesmo que informalmente, e o único objetivo era me aproximar de uma realidade, como na frase de Ferreira Gullar que intitula a segunda parte desta dissertação.

2.1 A vivência do ator e seus reflexos: uma mulher marginal nas ruas de Ouro Preto

Na época de Stanislávski, os espetáculos eram apresentados nos palcos italianos tendo o texto como mola propulsora para a construção do personagem. Na contemporaneidade, a prática teatral foi experimentada em novas possibilidades de espaços e estéticas para a criação dos espetáculos. O importante no sistema criado por Stanislávski é criar um diálogo com seus conceitos e trazer a luz pistas onde há prática na vivência do ator: “onde há a verdade, a fé e o “eu existo” inevitavelmente nasce à vivência verdadeira, humana (e não atoral)” (LABAKI; VÁSSINA, 2016, p. 309). Ou seja, investigar para além do espetáculo através da vivência do ator, onde a imersão na construção do personagem permite a construção de uma realidade psicofísica para aproximação de si. O espetáculo Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (2006) foi o terceiro trabalho realizado no Teatro do Dragão e foi, também, o meu TCC – Trabalho

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A história central do espetáculo se passava através do drama de uma mãe com o nome de Luneta (feita por mim), mulher pobre que sonhava em ser cantora, apesar de não saber cantar, engravidou por descuido ao relacionar-se com um homem casado e via no filho um entrave para as suas relações e conquistas, mas nunca teve coragem de abandoná-lo. Por sua vez, Cleiton Rogério, também ambicionava ser famoso e seu sonho era ser jogador de futebol, mas o estigma sanguíneo não o deixou, além de ele ser um grande perna de pau. Assim, não viu outra forma de conseguir dinheiro fácil que não fosse pelo envolvimento com o tráfico de drogas, contraindo uma dívida como o dono da boca, o Macu, colocando sua sobrevivência em jogo. Deste triângulo, a trama se desenrolava. Luneta e seu filho se aventuram na busca do “jeitinho brasileiro” de conseguir o dinheiro para pagar a dívida, através da ajuda de pares comuns, políticos, lideranças religiosas, santos devotos e até do apresentador de programa Sílvio Santos, tendo em seu encalço sempre a figura opressora de Macu.

Figura 1 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (Ouro Preto, 2006).

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Figura 2 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (Ouro Preto, 2006).

Fonte: Arquivo pessoal

Pelas influências da estética cinematográfica de Glauber Rocha e seu manifesto “A estética da fome” (1965), a proposta de criação do espetáculo realizada por Luciane Trevisan, diretora e pesquisadora do grupo, era a de criar um espetáculo com traços bem brasileiros, no qual os personagens e seus dramas trouxessem a tona questões da nossa sociedade: a própria miséria, a desigualdade social, o fascínio pelo futebol, as influências e consequência do tráfico de drogas, a intervenção da televisão nas formas de opinião e na conduta do povo, a diversidade religiosa, os reflexos da política, dentre outros. Além disso, pretendia realizar um trabalho nas ruas e em espaços alternativos, e que esses influenciassem e contribuíssem para o trabalho de criação do ator; colocar o ator em vivências de criação do personagem, onde esse fosse inserido dentro da rotina e dia-a-dia da cidade; criar alegorias que representassem as qualidades e mazelas brasileiras a partir das influências do trabalho de Glauber Rocha.

A narrativa e dramaturgia do espetáculo foram construídas em três atos, o objetivo era proporcionar aos espectadores a sensação de tempo-espaço das tragédias gregas. Eles eram realizados em três lugares e horários distintos ao longo de um dia.13

O grande barato deste trabalho, para nós, atores, foi perceber que, em determinado momento da trama, ficção e realidade se fundiram - porque os personagens foram tão

13 A trama começava na feira da barra de legumes, frutas e verduras - ao mesmo tempo em que ela acontecia.

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incorporados e aceitos pela cidade e seus moradores que, ao sair nas ruas e mesmo não estando mais vestida no figurino da Luneta, era tratada como ela, e isso se configurou como uma realidade favorável de comunicação entre espectador ator, muito parecido com os atores do TAM, através do trabalho de vivência do ator, onde “literalmente nosso sentimentos e desejos interiores emitem raios que saem por nossos olhos, por todo o corpo, e que envolvem as outras pessoas com sua corrente” (LABAKI; VÁSSINA, 2016, p. 309), e isso se configura com uma excelência na interpretação. Outra experiência muito potente foi a imersão dos atores, que ficavam ao longo de todo o dia do espetáculo imerso na realidade ficcional, ou seja, os atores não saiam dos personagens no intervalo dos atos, continuavam vivendo a realidade de um dia. E, também, essa experiência se aproxima da vivência do ator estabelecida por Stanislávski, quando destaca as características desse trabalho, em que inseria “tarefas do ator mesmo, como ser humano, análogas ás tarefas do papel” (LABAKI; VÁSSINA, 2016, p. 306).

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A construção da personagem Luneta se desdobrava em alegorias que fazem parte do inconsciente coletivo brasileiro, que “corresponde ás camadas mais profundas do inconsciente, aos fundamentos estruturais da psique comuns a todos os homens”(SILVEIRA, 1997, p. 64), através das figuras de um pai de santo, uma pastora evangélica, um apresentador de TV e uma cantora prostituta decadente.A psiquiatra Nise da Silveira (1997), baseada nos estudos de Carl Gustav Jung14, diz que, como seres humanos, possuímos uma anatomia comum, ou seja, a psique possui um substrato comum e, a esse substrato, Jung deu o nome de

inconsciente coletivo. E, portanto, dentro de uma interpretação psicológica ele “é a expressão psíquica da identidade da estrutura cerebral, independente de todas as diferenças raciais” (SILVEIRA, 1977, p. 66). O inconsciente coletivo brasileiro representado no espetáculo

Myzéryazz se dava através das alegorias que são “representações figuradas de objetos ideais ou materiais” (SILVEIRA, 1997, p. 66). Esta abordagem de criação vem, também, das influências da estética de Glauber Rocha, onde o diretor criou, através dos personagens dos seus filmes, uma identidade alegórica nacional. Um aprofundamento melhor destas características pode ser realizado através do texto “Alegorias do Desenvolvimento” de Ismail Xavier (2012)15.

O que quero ressalvar no parágrafo anterior é que o teatro não somente promoveu um desenvolvendo da minha formação subjetiva, mas também ampliou a minha inteligência intelectual. Ainda sem nenhuma preocupação formal, acadêmica e profissional, comecei a fazer pesquisas informais como os acima mencionados: estéticos, filosóficos, culturais e teatrais, traçando estudos que viriam a se tornar os meus objetivos profissionais, além de iniciar estudos sobre a “loucura”. O trabalho teatral realizado sobre a direção da Luciane Trevisan nos obrigava não somente a uma imersão profunda em nós mesmos, mas a uma ampliação de nossos conhecimentos intelectuais. Assim, o espetáculo Myzéryas Buzzinezz

(2016) foi um divisor de águas, porque, a partir dos reflexos físicos, psicológicos e intelectuais, fui ganhando cada vez mais autonomia nas minhas escolhas na lida com a “loucura”, me conduzindo para as minhas escolhas e caminhada profissional. Concluo, também, que a prática narrativa, através da memória, me permitem aproximar a cada nova criação de capítulo um percurso pedagógico daquilo que fui, que sou e quero me tornar (SOUZA, 2004).

14 Psiquiatra e psicoterapeuta suíço que fundou a psicologia analítica, criador de conceitos como inconsciente

coletivo, self, anima e animus, dentre outros.

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2.2 A memória emocional como recurso para um autoconhecimento

Aqui farei um diálogo entre minhas práticas teatrais e os conceitos de memória emocional, investigando que a construção do personagem através do trabalho do ator sobre si proporciona uma aproximação de si, ou seja, da própria subjetividade.

Em cada novo processo de construção do Teatro do Dragão, os atores, juntamente com a direção, destacam temas ou personas norteadores para a criação - todas as abordagens de temas e possíveis novas configurações de personalidade do personagem que quis realizar me foram abertas para a exploração ao longo desses anos. Os limites do trabalho sempre foram respeitados e estabelecidos pela direção, éramos conduzidos a dizer quando algo, supostamente, infringisse nosso estado físico e emocional. Sempre tivemos a segurança do olhar atento da Luciane quando estávamos trabalhando nas ruas ou na sala de ensaio, sempre estava correndo atrás de atores mais afoitos para assegurá-los o seu bem estar e, quando algo pudesse sair do controle, falava um sonoro e enérgico: Parou. As cenas durante o processo de criação do espetáculo foram construídas através do improviso, que é uma “técnica do ator que interpreta algo imprevisto, não preparado antecipadamente e inventado no calor da emoção”. (PAVIS, 1999, p. 205). A maior parte dos espetáculos teatrais criados no Teatro do Dragão

foi criada a partir da técnica do improviso, ao invés de se basear em uma dramaturgia pronta. Antes de o processo ir para as ruas, trabalhei em salas de ensaio tendo como material para criação, além da memória emocional, estímulos externos como: uma música, uma peça de roupa, etc. Todo esse material passa a ser agregado ao trabalho de construção do ator, nada é perdido, mas vai sendo incorporado no repertório do personagem. Munidos desses materiais, em sala de ensaio, éramos estimulados por uma circunstância dada pela direção para vivenciá-la o mais próximo da realidade, e muitos atores que já passaram pelas experimentações do Dragão foram surpreendidos por essa imersão profunda, na qual a vivência era, de fato, colocada a cabo.

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perseguia nas ruas quando eu estava indo para a aula, sempre me xingando e dizendo que queria tirar a comida da boca dos filhos dela. Uma vez, tentei abordá-la, dizendo não ser a Luneta, e que essa era um personagem de teatro, mas não adiantou. Ficção e realidade tinham uma linha muito tênue e acredito que, devido a esse tipo de imersão da vivência do ator, através da criação do personagem, foi possível realizar uma aproximação e crítica da minha personalidade, porque tínhamos que lidar com situações de fato reais ao nos relacionarmos com os moradores da cidade, os feirantes da barra, os trabalhadores da padaria, bares e outros estabelecimentos comerciais onde tínhamos que responder como seres reais fazendo com que nossas ações e atitudes também fossem reais. E, a cada novo ensaio, conseguia permear entre realidade e ficção sem confundir as duas. Mas, tinha, também, cada vez mais clareza crítica à realidade ficcional, trazia para minha realidade uma percepção cada vez mais clara dos traços da minha personalidade.

Outro momento interessante dessa linha tênue entre realidade e ficção foi quando a direção nos propôs uma circunstância realista e de maior aproximação com os moradores da cidade. Fizemos um laboratório - já estávamos bem próximo da apresentação do espetáculo e os personagens já se encontravam bem construídos, conseguíamos sair com mais facilidade dos imprevistos que a rua nos causava, como o caso anteriormente relatado. Fomos a um forró na Água Limpa, um bairro de Ouro Preto bem próximo à Igreja do Rosário. A noite era regada ao som de Juninho e Paquinha - dupla carimbada nos bailes da redondeza - e era certa a lotação de público. O bar não era grande, o que nos permitia uma aproximação muito íntima com as demais pessoas que ali estavam e, chegando lá, novamente houve a identificação e rápida imersão daquelas figuras. Dançamos, rimos - até bebemos, com moderação, é claro - sem perder o foco da investigação do trabalho do ator. Em nenhum momento foi questionado se aquilo era teatro ou não, ou alguma suspeita daquelas figuras serem consideradas falsas. Dancei a noite inteira com um senhor bem mais velho - dava a entender que era bem disputado pelas mulheres pela sua habilidade na condução da dama - e como eu era novidade naquele salão, ele ficou me levando de uma ponta a outra, exibindo seus dotes através da minha personagem. Perguntou sobre a minha história e sem pestanejar falei que me chamava Luneta, que queria ser cantora e que tinha um filho envolvido no tráfico. Ele chegou a me dar conselhos e até quis me prestar ajuda, dizendo conhecer um advogado. Ao fim da noite falei com ele que se tratava de uma investigação teatral e ele disse um sorridente tudo bem.

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minha realidade, posso dizer que essa sensação foi a mais próxima de um ideal de natureza preconizado por Stanislávski, quando diz “que o primeiro sentimento criador é estimulado pela essência da vivência, e o segundo, pela beleza da forma que a expressa” (LABAKI; VÁSSINA, 2016, p. 137). Então, posso dizer que, depois de meses incorporando e vivendo a realidade da Luneta, a sua criação estava bem próxima desta concretude.

A cada nova circunstância proposta pela direção, nos solicitavam, assim como Stanislávski propunha a seus atores, “a acreditar muito sinceramente na possibilidade concreta desta vida na própria realidade: é preciso habituar-se a ela até o ponto de sentir que esta vida alheia é sua” (LABAKI; VÁSSINA, 2016, p. 296). Mas, aqui, quero demonstrar que, quanto mais entrava no mundo ficcional da Luneta, mais próxima de mim eu me encontrava. A psiquiatra Nise da Silveria (1997, p. 79) diz que a persona “são recortes tirados da psique. E, numa certa medida, a persona representa um sistema útil de defesa, poderá suceder que seja tão excessivamente valorizada a ponto de o ego consciente identificar-se com ela”.

Aqui, em particular, está falando da persona - sobre as influências psicanalíticas de Jung - que se dá pela construção da máscara social como mecanismo de defesa nas relações. Por vezes, criamos corpos dóceis e frágeis simulando certa passividade, que, ao estímulo vindo do inconsciente, essa máscara cai, ou seja, nas palavras de Silveira (1997, p. 79-80): “o indivíduo funde-se então com os seus cargos e títulos, ficando reduzido a uma impermeável casca de revestimento. Por dentro não passa de lamentável farrapo, que facilmente será estraçalhado se soprarem lufadas fortes vindas do inconsciente”. Comigo, posso dizer que o processo se deu de forma inversa, não criei uma máscara para criar uma defesa social, mas, a partir da construção de uma persona (personagem) dentro do teatro, adquiri, através dela, uma relação de alteridade que me aproximou de um reconhecimento de características da minha personalidade que precisavam ser trabalhadas, e, também, para viver uma realidade estética onde a vida em si não bastava, assim, criei um modo de vida para vivenciar os reflexos da “loucura” de uma forma mais leve.

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Silveira, assim, se dedicou através do trabalho com a pintura e a argila a identificar os aspectos da personalidade de seus pacientes no Hospital Psiquiátrico de Engenho de Dentro/RJ, incentivando-os a expurgarem suas emoções e afetos no ato de pintar e moldar, ou seja, por meio da interpretação da criação artística produzida, destacava traços das personalidades dos seus pacientes. Por que a psiquiatra diz que é preciso ter estímulo externo para emergir o inconsciente? Porque nosso inconsciente pessoal, aquele que pertence ao indivíduo “são traços de acontecimentos ocorridos durante o curso da vida e perdidos pela memória consciente; recordações penosas de serem relembradas (...)” (SILVEIRA, 1997, p. 64). Era necessário, então, criar mecanismos para acessar o inconsciente, onde estão enraizadas nossas questões mais íntimas e, na grande maioria das vezes, desconhecidas.

(40)

2.3 A relação de alteridade com o personagem

A personagem trazia reflexos do meu inconsciente para posturas que deveria ter diante da vida e, assim, ia, cada vez mais, assimilando as minhas questões de conflito. Todo esse processo só foi possível por ter desenvolvido, com os personagens, uma relação de alteridade,

em que ficava cada vez mais claro e crítica às características pertinentes da atriz e as da personagem, ou seja, colocar o personagem no lugar de outro não criou o mesmo mecanismo que a persona estabelece na nossa personalidade, tinha clareza do que era dela, e do que era meu, e esse mecanismo foi se aproximando de um mecanismo de autoconhecimento. Como o acesso ao inconsciente não se dá de uma de forma espontânea, é preciso criar condições para que ele venha à tona (SILVEIRA, 1997). Percebi que, ao ser levada à vivência do ator na criação do personagem, em uma aproximação de realidade paralela – claro que com plena

consciência, sendo possível sair deste lugar a cada vez que me era solicitado – começava a vislumbrar aquilo que Stanislavski estabeleceu e percebeu através da mesma, que essa experiência empírica leva “o artista busca material espiritual em sua alma e também nas experiências de vida que acontecem ao seu redor e na natureza” (LABAKI; VÁSSINA, 2016, p. 294).Assim, fui adquirindo habilidades técnicas para entrar nessa realidade paralela, sem causar prejuízos a sua personalidade, ou se confundir com o mesmo. Mas, ao mesmo tempo, criei habilidades estéticas existenciais pelas quais o autoconhecimento foi possível, uma vez que essa imersão me aproximava da minha própria natureza e dos meus mecanismos de constituição dos modos de subjetivação. Desse modo, desenvolvi, através da relação de alteridade com a personagem, uma habilidade bem particular que defendo como positiva para me aproximar da constituição de uma estética da existência.

Imagem

Figura 1 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (Ouro Preto, 2006).
Figura 2 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (Ouro Preto, 2006).
Figura 3 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol  (Ouro Preto,2006)
Figura 5 - Edifício Dora (Mariana,2013)
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