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2 O PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM: A CONCEPÇÃO

2.6 PEDAGOGIA E MOVIMENTO SOCIAL

2.6.1 A Pedagogia do Movimento

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) apresenta iniciativas de construção de outro formato escolar, cuja prioridade é a formação do ser humano, com base na compreensão e problematização da realidade.

Para Caldart (2000, p. 199), o MST deve ser visto como sujeito pedagógico, pois a vida em coletividade, no âmbito dos acampamentos e assentamentos, atua na formação dos sujeitos. Suas práticas pedagógicas orientam-se por sua tarefa

histórica: “além de produzir elementos em terras antes aprisionadas pelo latifúndio,

também deve ajudar a produzir seres humanos, ou pelo menos resgatar a humanidade em quem já a imaginava quase perdida”.

O princípio educativo, para Caldart (2000), está no movimento, na possibilidade de transformar-se enquanto vai transformando a terra, as pessoas e a própria pedagogia; no conhecimento do mundo vinculado ao entendimento de que o movimento da realidade é constituído por relações que precisam ser compreendidas, produzidas ou transformadas.

Apesar do caráter formador do MST, a organização não propõe uma nova pedagogia, mas inventa “um novo jeito de lidar com as pedagogias já construídas na

história da formação humana. [...] põe em movimento a própria pedagogia”.

(CALDART, 2000, p. 208. Grifo do autor.)

Tal proposta está pautada em matrizes pedagógicas consideradas como as bases do processo de formação do ser humano: a pedagogia da luta social, a pedagogia da organização coletiva, a pedagogia da terra, a pedagogia da cultura e a pedagogia da história.

“A Pedagogia da luta social: é a vivência da luta que constitui a identidade do sem-terra, “trazendo a possibilidade da vida em movimento, onde o que hoje é de um jeito, amanhã pode ser diferente, ou até já estar mesmo de ponta-cabeça” (CALDART, 2000, p. 209. Grifo do autor.) São conquistas com luta social, e o estado de luta permanente é uma das estratégias pedagógicas mais marcantes do MST.

O estado de luta confronta e problematiza a realidade, o que implica num embate com as pedagogias tradicionais que, em lugar de problematizar ou pensar criticamente sobre a realidade, defendem uma postura de submissão e aceitação ao conhecimento veiculado na escola.

O que garante a continuidade do Movimento, ou da própria luta é a sabedoria de enraizar cada ação de ruptura na perspectiva da construção de uma outra ordem, ou de outros parâmetros do olhar da sociedade sobre si mesma. Cada ação precisa fazer pensar e não apenas destruir o que já existe; propor valores e não apenas contestar os que já estão propostos (CALDART, 2000, p. 211).

A dimensão pedagógica proposta pelo Movimento traz aprendizados importantes: o primeiro é de que nada é impossível de ser transformado; também há a necessidade de se produzir utopias, isto é, projetar um olhar para o futuro pautado na “convicção de que tudo pode ser diferente do que é”, de lutar também pelos direitos dos outros, construindo um sentimento de indignação frente às injustiças (CALDART, 2000, p. 213).

A Pedagogia da organização coletiva: Os sem-terra se mobilizam por meio da organização coletiva, construída na luta pela terra, e a organização coletiva, por

sua vez, corresponde também a um princípio educativo. “A coletividade sem-terra

educa à medida que se faz ambiente de produção de uma identidade coletiva processada através e em cada pessoa, ao mesmo tempo que para além dela” (CALDART, 2000, p. 217).

O enraizamento em uma coletividade, necessário para a formação humana, permite que os sem-terra sejam educados por esta coletividade. Sua organização apresenta pontos importantes, destacados por Caldart (2000, p. 217): uma disciplina coletiva, que implica na realização daquilo que foi combinado; uma unidade de ação, que faz com que todas as ações estejam em comunhão com as “linhas tiradas pelo Movimento em seu conjunto, traduzidas especialmente pelo processo de simbolização que as acompanha”; o coletivo como referência, ao mesmo tempo em que cada um ocupa um lugar de destaque na organização; a mística, que traz as raízes da vida na terra; as ações pautadas em objetivos, princípios e valores.

A coletividade em luta tem a família como comunidade primária, não separando gerações em tempos e lugares diferentes, o que justifica a presença de

crianças nas ocupações, no trabalho e em outras instâncias do Movimento. “A coletividade sem-terra é um acampamento, um assentamento ou uma escola. Mas também é tudo isto junto, e ao mesmo tempo, integrando pessoas e famílias que nem se conhecem mas têm laços de uma identidade em comum” (CALDART, 2000, p. 218).

O coletivo implica na noção de que nada se faz sozinho, o que resulta em formas diferenciadas de relações sociais que interferem na formação dos sujeitos, e vão na contramão das relações resultantes da sociedade capitalista, que apregoa o individualismo e a competitividade.

A Pedagogia da Terra: Sendo o MST um movimento camponês, não pode se afastar os sujeitos da sua raiz que é a terra, o trabalho na terra. Trabalho que, ao transformar a semente em um alimento, ensina que as coisas não nascem prontas, precisam ser cultivadas. Essa concepção repercute no aprendizado da paciência, da persistência e da resistência: não se pode apressar o tempo, é necessário trabalhar todos os dias e recomeçar sempre que for preciso, sem abandonar a terra. “Lutar pela terra é lutar pela vida em sentido direto, literal, sem mediações. A terra que se quer conquistar, é ao mesmo tempo o lugar de trabalhar, de produzir, de morar, de viver e de morrer [...] e também de cultuar os mortos [...]” (CALDART, 2000, p.223).

No entanto, na conjuntura atual há uma forte pressão contrária a construção da identidade camponesa:

Os sem-terra se educam no processo, de modo geral tenso e conflituoso, e transformar-se como camponês, sem deixar de sê-lo, o que quer dizer, buscando construir relações de produção (e de vida social) que já não são próprias do campesinato tradicional, de onde muitos dos sem-terra têm origem, mas que continuem vinculadas (econômica, política e culturalmente) à sua identidade (de raiz) camponesa. (CALDART, 2000, p. 224).

A questão para a qual a Pedagogia deve estar atenta é refletir sobre qual o papel do campesinato na transformação social, e sobre a construção dos processos educativos nas novas relações sociais de trabalho e produção.

A Pedagogia da Cultura: Há cultura na luta, na organização coletiva, na pedagogia da terra e da produção; na pedagogia da história, porque cultura refere- se ao processo de constituição de práticas sociais e experiências humanas que são constituintes do modo de vida.

[...] trata-se de compreender a intencionalidade do Movimento no processo através do qual ele próprio vai se transformando em cultura, ou em um movimento cultural que , ao se materializar em um determinado jeito de ser e de viver dos sem-terra, vai projetando (pela realização que é concreta, mas ainda fragmentada, dispersa e nem sempre consciente) um modo total de vida, que ao mesmo tempo que pode ser situado naquele distintivo crucial de um modo de vida da classe trabalhadora, tem as mediações específicas produzidas por esta coletividade em movimento (CALDART, 2000, p. 228).

O potencial educativo está na práxis, que envolve muito mais que uma simples reflexão sobre a ação, pois produz um modo de vida que, por meio da teorização, transforma uma ação em “saber, comportamento, postura, valor, símbolo, objeto” (CALDART, 2000, p. 229).

A Pedagogia da História: A dimensão da história nos possibilita refletir sobre a importância do estudo da história, sobre como o passado pode contribuir para a educação. Para o MST, há uma intencionalidade pedagógica que confronta a postura da sociedade atual na defesa do presenteísmo, porque o desvelamento do passado ajuda a pensar o presente, pela compreensão dos erros e projeção de acertos.

Enxergar cada ação ou situação particular em um movimento contínuo (ou descontínuo) entre passado, presente e futuro, e compreendê-las em suas relações e como parte de uma totalidade maior é uma das dimensões fundamentais da formação de sujeitos. É este olhar que ajuda a valorizar e ao mesmo tempo relativizar cada detalhe do dia-a-dia, cada pequena conquista ou derrota, mantendo claro o horizonte em que se referenciar para seguir lutando (CALDART, 2000, p. 235).

A memória do passado, pensada num âmbito maior, permite compreender que nada pode ser lembrado como algo isolado, mas vinculado às conjunturas que implicam em relações sociais e interpessoais constitutivas da história. Para o sem- terra, o cultivo da memória foi fundamental para a organização do Movimento. No entanto, Caldart (2000) destaca que o passado de luta não deve ser relembrado como algo que poderia ter sido diferente, mas pela escolha em mudar algo que parecia impossível, o que deverá servir como princípio educativo, porque outras situações precisam ser transformadas.

Segundo Mariano (2016), o projeto educativo do MST foi sistematizado pelo Setor de Educação do MST a partir das várias experiências e práticas educativas

desenvolvidas nos acampamentos e assentamentos, que resultaram numa série de documentos e cadernos que fundamentam a proposta político-pedagógica do MST.

Nos documentos organizados pelo MST fica evidenciada, conforme Mariano

(2016, p. 85), a preocupação com “a formação e desenvolvimento pleno do ser

humano, das diversas capacidades, o desenvolvimento omnilateral [...]”. Há também a proposta de outra forma de educação escolar, alicerçada em três aspectos fundamentais:

Uma estrutura organizativa, que envolva todos no processo de decisão, com gestão democrática, auto-organização dos estudantes, coletivos pedagógicos, direção coletiva e divisão de tarefas; b) a organização de ambiente educativo, entende que a escola toda educa, dessa forma propõe a organização de tempos educativos como aula, trabalho, oficina, esporte/lazer, estudo, reuniões. E a organização de espaços educativos: horta, jardim, oficinas, laboratórios, sala de leitura, espaços de convivências coletivos, entre outros; c) o trabalho como princípio educativo, que na escola, pode ocorrer nos chamados autosserviço, mas também fora da escola realizando em conjunto com a comunidade, objetivando a formação pelo e para o trabalho (MST, 2005 apud MARIANO, 2016, p. 86).

O novo formato de organização escolar confronta o modelo tradicional em vários aspectos: a escola tem uma atuação social que lhe permite acompanhar e não estar sempre atrás ou desvinculada das transformações sociais; o olhar para os sujeitos como construtores de saber, protagonistas e agentes de mudanças; o olhar para a infância não como tempo de preparação para a vida adulta, mas permitindo- lhe compartilhar as diversas instâncias que compõem a totalidade da vida humana; as realidades consideradas como conteúdo a serem problematizados e transformados em conhecimento científico, indo além do cotidiano para uma dimensão universal; o mais importante está na preocupação com a formação humana em contraponto a uma formação frágil, demandada pelos interesses da sociedade capitalista.