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DESENVOLVIMENTO ONTOGENÉTICO DA CONSCIÊNCIA

2 O PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM: A CONCEPÇÃO

2.3 DESENVOLVIMENTO ONTOGENÉTICO DA CONSCIÊNCIA

A ontogênese vai tratar do desenvolvimento do indivíduo, no entanto não podemos compreender o homem singular descolado do universal, pois cada sujeito abarca a evolução da humanidade, se constrói na universalidade. Para se tornar humano precisa se apropriar do que foi historicamente construído pelas gerações anteriores, o que depende das circunstâncias de sua existência. Portanto, não

podemos compreender os sujeitos que moram no campo isolados de suas condições de vida e trabalho.

A psicologia soviética, segundo Luria (1990), defende a ideia de que a consciência é a forma mais elevada de reflexo da realidade; não é dada de imediato, mas é formada pela atividade, que tem a função de orientar o homem no ambiente. Então, enquanto as ações humanas transformam a realidade, a vida mental é fruto de atividades profundamente renovadas.

Os instrumentos usados pelos homens em sociedade para manipular o ambiente, além de produto de gerações anteriores que ajudam a formar a mente das crianças em desenvolvimento, também afetam essas formas mentais. Na criança em desenvolvimento, as primeiras relações sociais e as primeiras exposições a um sistema linguístico (de significado especial) determinam as formas de sua atividade mental. Todos esses fatores são decisivos para o desenvolvimento sócio-histórico da consciência. Novos motivos para a ação aparecem sob a forma de padrões extremamente complexos de práticas sociais. Assim são criados novos problemas, novos modos de comportamento, novos métodos de captar a informação e novos sistemas de refletir a realidade (LURIA, 1990, p. 23).

Nas pesquisas desenvolvidas por Luria evidenciaram-se fatos a respeito das formações de processos mentais, a saber: percepção, generalização e abstração, dedução e inferência, raciocínio e solução de problemas, imaginação, autoanálise e autoconsciência, e foi possível constatar a relevância do conhecimento sistematizado para o desenvolvimento das funções psíquicas superiores.

Luria mostrou, que a sistematização dos conhecimentos vai permitir que o sujeito passe do concreto ao abstrato; que consiga pensar sobre as coisas presentes na sua realidade imediata em categorias. Nesse caso, a escola tem um papel fundamental, porque é ela que vai possibilitar aos sujeitos pensar abstratamente, mas na medida em que permite estabelecer relações entre os conhecimentos singulares, isto é, no seu contexto sócio-histórico e agrupá-los de acordo com os conhecimentos universais. É por meio da linguagem que o processo de conhecimento se concretiza desde que se estabeleçam relações com a experiência vivida pelos sujeitos.

Leontiev nos mostra que o trabalho deve fazer parte do processo educativo, porque é fruto da comunidade e abarca um rol de experiências, valores e saberes que são constitutivos dos sujeitos. No caso dos sujeitos de nossa pesquisa, estamos

falando do trabalho no campo, com a terra, o que implica em relações sociais específicas, singulares, elemento mediador da formação do psiquismo.

Portanto, o trabalho é fator determinante no desenvolvimento do psiquismo, junto com o aparecimento da consciência. O desenvolvimento do trabalho surge com as atividades coletivas que subordinam e hierarquizam a ação do homem mediante o resultado esperado pela coletividade.

É uma atividade originariamente social, assente na cooperação entre indivíduos que supõe uma divisão técnica, embrionária que seja das funções do trabalho; assim o trabalho é uma ação sobre a natureza, ligando entre si os participantes, mediatizando a comunicação (LEONTIEV, 1978, p. 75).

Por conseguinte, as atividades desenvolvidas na condição de trabalho coletivo representam a atividade submetida às relações sociais desde a origem; o que significa que a atividade em interação entre os homens representa a base material objetiva da estrutura do ser humano. Uma ação de trabalho depende do

resultado consciente da atividade, que “supõe o reflexo dos objetos para os quais

ela se orienta, independentemente da relação que existe entre eles e o sujeito” (LEONTIEV, 1978, p. 81).

Vemos aí a importância do trabalho social na constituição do sujeito e, ao relacionarmos com nossa pesquisa, reforçamos a ideia de que o contexto sociocultural dos alunos e da comunidade é ponto de partida para o trabalho na escola. Se a escola tem como função instrumentalizar os sujeitos com conhecimentos científicos que permitam a compreensão do mundo, deve estabelecer por meio de estudos a relação entre as atividades de trabalho, desenvolvidas na comunidade, e o contexto mais amplo do mundo do trabalho.

Para Vigotski (1931, p. 19), a cultura, ao criar situações específicas de conduta, acarreta alteração da atividade das funções psíquicas superiores, fazendo com que o homem evolua criando novos níveis de comportamento.

O indivíduo em sua conduta manifesta de forma cristalizada diversas fases de desenvolvimento já acabadas. Os múltiplos planos genéticos do indivíduo, que incluem capas de distintas antiguidades, lhe conferem uma estrutura sumamente complexa e ao mesmo tempo em que servem como escada genética que une, através de uma série de formas de transição, as funções superiores do indivíduo com a conduta primitiva na ontogênese e

na filogênese. A existência das funções rudimentares confirma do melhor modo possível a ideia de estrutura «geológica» do indivíduo e introduz essa estrutura no contexto da história da conduta (VIGOTSKI, 1931, p. 42).

Vigotski aponta que o homem, no decorrer da história da humanidade, passou a empregar estímulos artificiais como suporte para a memória, o que segundo ele é impossível para os animais. Destaca, também, que o que diferencia o cérebro do homem do cérebro do animal é que o primeiro se refere ao cérebro de “um ser social e que as leis da atividade nervosa superior do homem se manifestam e atuam na personalidade” (VIGOTSKI, 1931, p.54).

Com a introdução dos estímulos artificiais o homem dá significados e estimula a criação de novas conexões cerebrais. Vigotski (1931, p. 55) afirma que o princípio da significação lança uma nova perspectiva sobre a conduta humana, uma vez que segundo este princípio “o homem é quem forma desde fora conexões no cérebro, o dirige e através dele governa seu próprio corpo. ”

Inferimos que a falta de acesso aos estímulos artificiais criados pela humanidade repercute na formação do psiquismo, atribuindo aos sujeitos uma situação precária de desenvolvimento mental. Neste sentido, entendemos que a classe hegemônica, ao praticar uma educação precária destinada à classe trabalhadora, reforça a situação de dominação, pois não permite o desenvolvimento das funções e habilidades psicológicas superiores, limitando as possibilidades de ação sobre a realidade.

A relação entre o uso de instrumentos27 e a fala, para Vigotski, interfere no

desenvolvimento de várias funções psicológicas, tais como, a percepção, as operações sensório-motoras e a atenção, destacando que cada uma pertence a um sistema dinâmico de comportamento. “[...] as conexões e relações entre funções constituem sistemas que se modificam, ao longo do desenvolvimento da criança, tão radicalmente quanto as próprias funções individuais” (VIGOTSKI, 2007, p. 21).

No processo de desenvolvimento geral do psiquismo, Vigotski (2007, p. 33) indica duas linhas qualitativamente diferentes quanto à sua origem: os processos

27

“O instrumento é o produto da cultura material que leva em si, da maneira mais evidente e mais material, os traços característicos da criação humana. Não é apenas um objeto de uma forma determinada, possuindo dadas propriedades. [...] é ao mesmo tempo um objeto social no qual estão incorporadas e fixadas as operações de trabalho historicamente elaboradas. O fato de este conteúdo social e ideal estar cristalizado nos instrumentos humanos, isso distingue-os dos instrumentos dos animais” (LURIA, 1979, p. 268).

elementares e as funções psicológicas superiores. Os processos elementares são de ordem biológica, determinados pela estimulação ambiental; enquanto as funções psicológicas superiores são de ordem sociocultural, tendo como característica essencial “a estimulação autogerada, isto é, a criação e o uso de estímulos artificiais que se tornam a causa imediata do comportamento”.

Conclui o autor que todas as funções psíquicas superiores decorrem de processos mediados, nos quais a utilização de signos é essencial para dominá-los e dirigi-los. “O uso de signos conduz os seres humanos a uma estrutura específica de comportamento que se destaca do desenvolvimento biológico e cria novas formas de processos psicológicos enraizados na cultura” (VIGOTSKI, 2007, p.34).

A utilização de signos como auxiliares na resolução de problemas é análoga à invenção e ao uso dos instrumentos, porém no campo psicológico. Tal analogia diz respeito à função mediadora que ambos exercem na atividade humana, no desenvolvimento da capacidade dos homens na sua utilização, na transformação do seu comportamento (VIGOTSKI, 2007).

A principal diferença entre o signo e o instrumento consiste no fato deles apresentarem diferentes maneiras de orientar o comportamento humano. O instrumento orienta o comportamento externamente, serve como condutor da influência humana sobre o objeto da atividade, de modo a transformar a natureza do objeto; em contrapartida, o signo representa um meio de atividade interna dirigido para o controle mental do próprio indivíduo.

O uso de meios artificiais – a transição para a atividade mediada – muda, fundamentalmente, todas as operações psicológicas, assim como o uso de instrumentos amplia de forma ilimitada a gama de atividades em cujo interior as novas funções psicológicas podem operar. Nesse contexto, podemos usar o termo função psicológica superior, ou comportamento superior com referência à combinação entre o instrumento e o signo na atividade psicológica (VIGOTSKI, 2007, p. 56).

As operações com a utilização de signos sofrem mudanças no decorrer do desenvolvimento da criança, passando a níveis superiores, uma vez que surge o que Vigotski (2007) chamou de processo de internalização, o qual consiste em reconstruir internamente uma operação que foi realizada externamente.

a) uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é reconstruída e começa a ocorrer internamente. [...] b) um processo interpessoal e transformado num processo intrapessoal. [...] c) A transformação de um processo interpessoal num processo intrapessoal é o resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento (VIGOTSKI, 2007, p. 58).

Cabe destacar a importância da utilização dos signos para o desenvolvimento da psicologia humana, pois, como explica Vigotski (2007), a internalização das formas culturais de comportamento, das atividades sociais historicamente desenvolvidas depende da reconstrução da atividade psicológica, a qual tem como base as operações com signos.

Para Luria (1980, p. 48), o processo de formação das capacidades específicas do homem e, consequentemente, de assimilação do mundo depende da utilização de instrumentos, que são produtos da cultura material. “Não se trata apenas de um objeto que possui determinada forma e que tem determinadas propriedades físicas. O instrumento é ao mesmo tempo objeto social em que se encarnou e afirmou o resultado histórico das experiências laborais ”.

Estabelecendo relação com nosso objeto de pesquisa – o ensino e

aprendizagem em escolas com turmas multisseriadas – indagamos sobre o

desenvolvimento de quais habilidades e funções psicológicas seu ensino vem provocando nos sujeitos. Nossas constatações permitem afirmar que os determinantes externos e internos limitam tal processo.

2.4. O PROCESSO DE ENSINO APRENDIZAGEM E A FORMAÇÃO DE