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Texto de Arguição do Prof Dr Etienne Samain sobre Cicatriz, de Rosângela Rennó

TEXTO DE ARGUIÇÃO DE ETIENNE SAMAIN – CICATRIZ

1. A pele como a película são lugares de inscrições

Ora, inscrições sobre finas superfícies epidermicas acima das quais se imprimem muitas coisas: o vermelho de um batom, pinturas corporais, escarificações, tatuagens...

Ora, finas superfícies cobertas por camadas de sais de prata, que a luz impressiona, queima, marca, impregna de sombras e de luzes.

A pele e a película são, ao mesmo tempo, lugares de passagem (diria, ritos de passagem) e lugares de revelações

É uma evidência quando se trata da película, este negativo impressionado pela luz, que necessita de todo um ritual laboratorial para se tornar um positivo, uma fotografia, ou seja a revelação de uma inscrição (pré-contida)

Parece-nos talvez menos evidente, que a pele seja, também, um lugar de passagem e de revelação. No entanto, sabemos que o azul escuro de um hematoma em torno do olho é o índice de que um golpe foi dado; da mesma maneira, como médico, posso me inquietar ante uma mancha preto/violeta que se alastra sobre a perna de meu paciente: pode ser o sintoma de uma gangrena. No que me diz respeito, diria que as rugas, os franzidos sobre o meu rosto denunciam, proclamam, revelam o meu envelhecimento... mas muito mais ainda: são as marcas de uma história escrita debaixo da minha pele. E volto, desta maneira, às tatuagens, inscrições como já disse, mas também, memórias e lembranças que afloram, palavras daqueles que não podem dizer algo diferente. As tatuagens são mágicas tão velhas quanto o mundo e, metaforicamente, deveríamos talvez aproximá-las daquelas que nossos ancestrais deixaram sobre as paredes das cavernas. O homem das cavernas é sempre presente em algum

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lugar de nós e Paul Valery tinha talvez razão quando escrevia: ―O que há de mais profundo no homem, é a sua pele‖ (A Idéia fixa).

Você teve acesso a um conjunto de aproximadamente 3000 negativos de imagens de detalhes de tatuagens, a cerca de 2000 prontuários médicos dos quais foram selecionados cerca de 300. Teria gostado de encontrar na primeira parte de sua tese maiores desenvolvimentos sobre questões como a da identidade judiciária e da memória do encarcerado, sobre a linguagem das tatouagens nesse meio. Você reconheceu o muito importante livro de Christian Phéline (L’image accusatrice), você menciona os trabalhos de Cesare Lombroso, de Alphonse Bertillon sobre a fotografia judiciária, você remete evidentemente a Michel Foucault (Vigiar e punir. O nascimento da prisão). Eu sei que um projeto artístico, para se fundar, não precisa necessariamente de todas essas idas e vindas dentro do campo das ciências humanas, mas o seu projeto é, também, um projeto acadêmico. Neste sentido, podia merecer mais do que uma contextualização dos dados à base de seu ―livro de artista‖. O mundo de hoje pede, penso, uma atenção redobrada a esta passagem e cruzamento necessário entre as ciências e as Artes.

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Iniciei a leitura visual e verbal de seu trabalho, Rosangela, no decorrer da semana passada. Isso para lhe dizer que, faz pouco mais de uma semana, que ele está presente, vive dentro de mim, que ele está trabalhando inconscientemente o meu imaginário, cava nos arquivos da minha memória.

Na noite de segunda para terça-feira passada, fiz um estranho sonho que muito me comoveu e que, penso, lhe devo. Não contarei esse sonho pois ele é meu, apenas um pedaço reencontrado na minha memória.

...Um quarto, uma sucessão de rostos, rostos dos meus pais, do meu irmão mais velho, da minha irmã gêmea, closes geralmente, fotografias. Uma história

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também, uma ação simbólica que vivia: o desdobramento da minha corporeidade...

(Uma pequena parêntese). No primeiro volume de seu ―livro de artista‖, Rosangela Rennó nos introduz ao projeto artístico que apresentará no segundo volume. É um texto corrido onde ela destaca em negrito sete palavras: ―opacidade‖, ―horror‖, ―dor‖, ―desejo‖, ―perda‖, ―horror da guerra‖, ―transubstanciação‖. Nasci em 1938.

Volto ao sonho e à primeira palavra no horizonte da qual acordei ―Transubstanciação‖. ―Transubstanciação‖ é um conceito eminentemente teológico. Na liturgia da Igreja católica, sabemos que existe um ritual central, a Eucaristia, a missa, a ―celebração eucarística‖. Sem entrar nos detalhes, esse ritual de comunhão culmina no momento em que o celebrante debruça-se sobre um pedaço de pão, uma hóstia branca que segura entre os seus dedos e pronuncia essas palavras, outrora ditas por Jesus, na última ceia, junto aos seus amigos discípulos, pouco antes de morrer: ―Este é o meu corpo, que é dado por vós: fazei isto em memória de mim‖. A transubstanciação é assim a mudança da substância de um simples pão para a substância do corpo do cristo, uma mudança mediatizada por um dito, mediatizada por meio de palavras.

Existe algo paralelo no seu trabalho artístico, Rosangela, que é, também, penso, uma celebração e uma transubstanciação sui generis. Tenho quase que a convicção – mas isso você terá que me dizê-lo- que você construiu principalmente o seu livro de autor, partindo de páginas brancas. Sobre essas outras hóstias, esses pequenos outros sudários (porque, na língua francesa pelo menos, existe atrás da imagem da hóstia, a da vítima), você não pronunciou palavras; você (re)escreveu textos– esses breves memoriais, noticiários contemporâneos, arrancados, escolhidos no seu arquivo universal. E foram esses textos que convocaram sua memória (e a nossa, depois) para reencontrar nas fotografias de

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presos tatuados, anônimos, perdidos nos silêncios de Carandiru, rostos que deviam permanecer vivendo no meio de nós, presenças transubstanciadas.

Disse essas coisas para lembrar outras: a escrita é um bloco de memória: memória de sons e de palavras e, mais profundamente ainda, memória de odores, de cheiros, de imagens perdidas na noite dos tempos. Fazer uma arqueologia da escrita significa apreender a descer na espessura das camadas de significações que a compõem: não apenas palavras mas, mais arcaicamente ainda imagens primitivas, sem as quais a escrita não poderia ter nascido. Se posso, hoje, escrever a palavra mar, é porque, primeiro, um dia ,faz muito tempo, vi o mar, cheirei o mar. Foram necessários, muitos anos, para poder dizer o seu tão pequeno nome e, muitos outros anos, ainda, para conseguir escrever as três hastes da sua primeira lettra, esse ―m‖ em forma de ondas.

Gostaria, Rosangela, de lhe oferecer uma última reflexão que me proporcionou seu belo e denso trabalho. No seu livro de artista, você elegeu entre o seu prólogo (um texto) e o seu epílogo (uma fotografia) 31 outros textos e 33 outras fotografias. Todas as suas fotografias são fotografias de tatuagens sobre corpos masculinos. A maioria de seus textos, desta vez, remetem a figuras femininas (a mãe, a sociedade, uma virgem, uma menina desaparecida, crianças...). Você vai além. Em dois casos, você nos apresenta um texto (que remete claramente a uma figura feminina) que se perde na brancura total da página oposta... e você diz: ― O leitor não precisa ver impressa no jornal a imagem da mater dolorosa ou ver novamente a fotografia de Kim coberta de Napalm, uivando de dor numa estrada do Vietnam. Ele já tem arquivado em sua memória; basta abrir, adaptar e rever‖. Estou me perguntando, Rosangela, se a memória masculina funciona da mesma maneira que a memória feminina, se a primeira não precisa mais de signos visuais (estátuas, monumentos, tatuagens) para acordar, quando a segunda abandona–se e se descobre na interioridade da letra, na interioridade de um silêncio, de uma página branca, de uma leitura branca, na interioridade desta Câmara Clara na qual Roland Barthes queria renascer.

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Não se contempla sua obra, Rosangela, sem sofrer, sem se questionar, sem se perguntar. Na encruzilhada da morte e da vida — nossa única certeza —, na encruzilhada do esquecimento e da memória reencontrada, resta-nos um pequeno instante: o de viver ainda.

Meus agradecimentos a você, ao Professor Peñuela, a todos esses amigos.

Etienne Samain

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Questionários Enviados Para a Artista e