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ENTRE ROSTOS, OLHARES E FACES DA HISTÓRIA

3.2. Rosângela Rennó: colecionadora e alegorista

Quando Rennó desloca sua práxis da esfera lírica e intimista dos anos iniciais de sua produção, situados na década de 1980 — em que fotografias e negativos doados por círculos sociais que lhes eram mais próximos (de familiares e amigos) configuravam suas obras (de dimensões bem inferiores às selecionadas para esta pesquisa) —, em direção à década de 90 e à esfera pública, convocada no interior dos espaços expositivos de instituições de arte — valendo-se de abordagens em que despontam fortes indícios de uma consciência social ou política mais acentuada quando de sua investigação artística dos arquivos da Novacap (empresa oficial responsável pela construção da capital) e do Museu Penitenciário Paulista (no extinto Complexo Carandiru) —, ela transporta de uma esfera a outra práticas envolvidas no ato de colecionar, que é o substrato sobre o qual versa o papel do colecionador autêntico apresentado por Walter Benjamin no livro ―Desempacotando minha biblioteca — Um discurso sobre o colecionador‖ (1931).

Quando Benjamin se coloca a narrar as recordações que lhe saltam à memória durante o processo de manipulação dos livros de sua biblioteca, lembra- se dos álbuns de figurinhas que herdou de sua mãe, o que o leva a afirmar:

[…] a herança é a maneira mais pertinente de formar uma biblioteca. Pois a atitude do colecionador em relação aos seus pertences provém do sentimento de responsabilidade do dono em relação à sua posse. É, portanto, no sentido mais elevado, a atitude do herdeiro. Assim, a transmissibilidade de uma coleção é a qualidade que sempre constituirá seu traço mais distinto. (BENJAMIN, 1987, p.234)

Esse componente deixa transparecer sua relação íntima com as coisas do mundo, que lhe suscitam a história do objeto que manipula no momento de sua apreciação, como se estivesse a revisitar o passado, daí seu cuidado em transmitir

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o objeto para as gerações futuras. Em entrevista, Rosângela Rennó comenta algo que muito se aproxima desses procedimentos intimistas do colecionador:

Todo meu trabalho sempre nasceu da observação e do manuseio dos materiais. As questões que vem e são elaboradas e evoluem em função desse contato íntimo e do entendimento da natureza. O aprendizado se faz pelo material, via observação e manipulação.25

O sentido de propriedade que Benjamin descreve ao longo do texto como uma peculiaridade do colecionador autêntico não deve ser confundido com a especulação financeira realizada em torno de um objeto, muito propensa em ambientes como aqueles dos leilões. Neste segundo caso, a competição entre participantes ávidos para sustentar imagem de poder (denominados pelo autor como colecionadores profanos) faz com que vejam no objeto colecionável apenas uma mercadoria, a esfera de intimidade e conhecimento citada anteriormente é assim aniquilada.

Para Benjamin, a importância da posse do objeto dá-se no nível de nomeação das coisas do mundo pelas crianças, ou seja, desencadeia o conhecimento deste pela palavra; pode também servir como impulso para uma busca ou viagem em cujo percurso cidades podem ser reveladas — especialmente neste ponto, Imemorial parece ser o resultado de uma viagem virtual por Brasília, potencialmente capaz de nos conduzir a outras faces de sua história —; e, principalmente, a posse vem como promessa de renovação: ―renovar o mundo velho — eis o impulso mais enraizado no colecionador ao adquirir algo novo‖. (BENJAMIN, 1987, loc. cit.).

Não por acaso, seu texto foi escrito para causar a impressão de que sua voz e ações ocorrem no presente. Esta intenção de simular, através do texto, a ideia de que suas palavras passadas estão se renovando no agora, à medida da leitura realizada pelo leitor, é declarada logo de início: ―Estou desempacotando minha biblioteca. Sim, estou [grifo meu]‖ (BENJAMIN, 1987, loc. cit.). Afinal, escrever livros era, para ele, a melhor maneira de colecionar livros, e daí é possível inferir que aqueles que os leem também estão a colecioná-los.

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Partindo destes comentários de Benjamin podemos alcançar os operários mortos que construíram Brasília. Na proposta de Imemorial coincidem duas funções desempenhadas pela artista ― o ato de colecionar e de transmitir memória ―, concretizadas quando Rennó se apropria de uma parcela das fotos das fichas cadastrais dos trabalhadores da Novacap e as torna visíveis no espaço expositivo. Realiza, assim, o gesto do colecionador que exige um duplo impulso, de conservação e de destruição. Ao duplicar parcela do arquivo e retirá-la de seu contexto comum (de certa forma destruindo-o) para recontextualizá-la no interior da instituição de arte, ou seja, destinando-a a um público.

Aqui, a herança que cita Benjamin não deve ser unicamente concebida como uma questão de ordem genética, mas compreendida enquanto responsabilidade para com o destino das imagens dos trabalhadores. A artista, afeita a esta espécie de consciência social, resgata do isolamento do arquivo tais imagens, realizando a configuração da obra de modo a responder ao rosto do Outro (seja este o sujeito retratado ou o espectador). Essa capacidade de resposta é o que o filósofo Emanuel Lévinas (1982, p.79) denomina responsabilidade ética.

É importante esclarecer que Rennó atua como alegorista e como colecionadora. Em ―[O Colecionador]‖, tópico do livro Passagens de Benjamin, o autor explica a diferença entre estes dois polos: o colecionador busca uma afinidade específica e única nos e através dos objetos, o que os torna insubstituíveis (os reúne em torno deste propósito, como que a almejar um todo coerente), já o alegorista vê nos objetos do mundo uma natureza diversa, elementos que podem significar outra coisa, ter sentidos ocultos (ele não almeja a totalidade, porque concebe o mundo sempre como já fragmentário). Embora contraditórios, estes dois componentes podem ser verificados na postura de Rennó, por intermédio de sua atividade artística, pois Benjamin esclarece que, a despeito das diferenças, o mais importante é saber que ―em cada colecionador encontra-se um alegorista e em cada alegorista encontra-se um colecionador‖ (BENJAMIN, 2007, p.245). A coleção do colecionador nunca está completa e, portanto, é fragmentária, o alegorista que coleta e dispõe dos objetos do mundo

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neles enxergando outros sentidos o faz por intermédio do impulso passional do colecionador.

3.3. Instalação ou Site discursivo? Viajando pelo espaço mitopoético de