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E OLHAR CONTEMPORÂNEO: A OPACIDADE DA DESAPARIÇÃO

1.3. Memória e modos de ver: aparelho fotográfico e o „Bloco Mágico‟ de Freud

Como pressupostos teóricos da pesquisa que desenvolvo acerca de certas obras de Rosângela Rennó, é relevante citar, neste ponto, as constantes associações metafóricas do aparelho fotográfico ao aparelho psíquico presentes nos escritos de Sigmund Freud, dentre as quais a figura do bloco de notas mágico e o funcionamento do palimpsesto nele descrito é essencial, pois alia-se a dimensão visual/fotográfica à escritural, duas instâncias empregadas nas produções de Rennó.

Em ―Uma nota sobre o ‗Bloco Mágico‘‖ (1925 [1924]), Freud explica que estamos constantemente desconfiados de nossa memória, o que nos faz buscar dispositivos técnicos que a suplementem, daí as anotações em papel, em lousas, a utilização de câmeras fotográficas (no caso, por conta do período em que o texto foi escrito, ele se referia a meios analógicos para obtenção de fotografias). Em alguns casos, esses traços podem ser constantemente revisitados, desde que seja possível reconhecer o lugar onde a lembrança que se busca foi depositada, outros não tem uma permanência tão durável, persistindo sobre o suporte o tempo necessário para que sirvam a um interesse imediato, como é o caso da lousa. Ele acaba encontrando um dispositivo peculiar para explicar seu entendimento do aparelho perceptivo, o bloco de notas mágico. Freud assim o descreve:

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O Bloco Mágico é uma prancha de resina ou cera castanha- escura, com uma borda de papel; sobre a prancha está colocada uma folha fina e transparente, da qual a extremidade superior se encontra firmemente presa à prancha e a inferior repousa sobre ela sem estar nela fixada. Essa folha transparente constitui a parte mais interessante do pequeno dispositivo. Ela própria consiste em duas camadas, capazes de ser desligadas uma da outra salvo em suas duas extremidades. A camada superior é um pedaço transparente de celuloide; a inferior é feita de papel encerado fino e transparente. Quando o aparelho não está em uso, a superfície inferior do papel encerado adere ligeiramente à superfície superior da prancha de cera. (FREUD, 1996, p.256)

Quando se escreve sobre a superfície do celuloide — mediante a pressão de um estilete que não o rasga — o material usado para ―traçar‖ o pressiona e também à fina camada de papel translúcido que está sob ele, situando-se em uma região intermediária. A parte inferior deste papel é encerada e toca a prancha de cera nos pontos onde há pressão do estilete. Durante este contato os sulcos então adquirem formas escriturais escuras que nos são visíveis. Para fazer com que as formas desapareçam e o dispositivo possa novamente receber inscrições, basta ―desconectar‖ a região encerada do papel translúcido em contato com a prancha de cera. As inscrições anteriores não podem ser recuperadas, ou seja, o caminho inverso não é possível (como permitem os softwares de computador na recuperação de arquivos e etapas de um procedimento), mas auxiliam o autor a explicar como funciona o aparelho perceptual dos humanos: o celuloide funciona como ―um escudo protetor‖ que não retém os estímulos, mas diminui sua intensidade, filtrando seu impacto e tornando-os mais sutis para a estrutura posterior (a delicada camada de papel) que retém os estímulos momentaneamente. Assim ele explica que ―os traços permanentes das excitações recebidas são preservados em ‗sistemas mnêmicos‘ que jazem por trás do sistema perceptual.‖ (FREUD, 1996, p.256)

Ao levantar o celuloide e a folha de papel translúcido encerado é possível notar, sob determinados ângulos de incidência de luz, que, à semelhança de um palimpsesto, as formas escritas permanecem quase imperceptíveis na superfície da prancha de cera, de modo que o dispositivo fornece traços permanentes

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(porém não reprodutíveis a partir de seu interior, pois a inversão do processo não é possível aqui), além da função comum de um bloco de notas normal.

Freud realiza uma comparação, em que a prancha de cera exerce aqui uma proximidade com o inconsciente, que se localiza por trás deste ―sistema bifacetado‖ explicado acima. A aparição e a desaparição das formas escriturais, possíveis pelo movimento de ―conexão‖ e ―desconexão‖ entre o sistema bifacetado e a prancha encerada é o que permite a aparição e a desaparição da consciência no processo da percepção. Interessante notar como esta explicação se aproxima da práxis de Rennó em Hipocampo, em que as alternâncias luminosas funcionam como um sistema descontínuo, no qual os textos alocados nas paredes aparecem e desaparecem aos sujeitos-espectadores, o que determina a circulação e a recepção de informações/imagens.

Outras associações metafóricas entre fotografia e aparelho psíquico são efetuadas por Freud, essa correspondência técnica que ele estabelece provavelmente fundamenta-se na necessidade que temos de recorrer às ―próteses de memória‖, o que acaba interferindo em nossa percepção do mundo. Em um dos casos, ao analisar o texto Introdução à psicanálise deste autor, Philippe Dubois expõe as relações que Freud estabelece entre as atividades inconsciente e consciente. Freud, neste caso, relaciona equivocadamente a fase inconsciente à imagem (fotográfica) negativa — quando esta deveria ser dirigida às imagens latentes do ―filme não revelado‖ — e a fase consciente à imagem (fotográfica positiva). Dubois esclarece o equívoco sem se esquecer de dar o devido reconhecimento ao pensamento do autor, pois não se trata de uma abstração de fácil chegada:

Freud mistura as noções de imagem latente e de imagem negativa, embora, como sabemos, ele distinga claramente no conjunto [do aparelho psíquico] três fases: a do inconsciente (o que seria a imagem de latência propriamente dita da imagem fotográfica; nesse estádio não existe estritamente nada a ver, nem sabe-se o que foi inscrito ali), a do pré-consciente (a imagem está ali, mas ―negativa‖, semivisível, invertida em seus valores, pouco reconhecida, ainda não revelada, tenebrosa) e a do consciente (a imagem positiva, final, luminosa). (DUBOIS, 2004, p. 324)

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É possível verificar que Dubois descreve sua interpretação das fases do aparelho psíquico associando-lhes as instâncias da imagem fotográfica (vinculada a processos analógicos, fotoquímicos) como se esta fosse o próprio dispositivo psíquico, não se remetendo ao aparelho fotográfico como um todo. Minha análise, no entanto, toma como ancoragem as instâncias da imagem fotográfica (tanto analógica, quanto digital) no interior do aparelho fotográfico — que associo ao psíquico e aos aparelhos ideológicos — a partir de aproximações que estabeleço entre a caixa preta de Flusser, a estruturação da obra (Hipocampo - 1995) da artista e sua inscrição na contemporaneidade, e o espaço expositivo, para que as relações discursivas entre a memória e o fotográfico como locus da crítica se tornem palpáveis.

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CAPÍTULO 2