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A preocupação das/os docentes com as técnicas de ensino e com os resultados das aprendizagens que deverão ser apresentados, assim como já foi assinalado, prepondera sobre as ideologias presentes nos conteúdos selecionados. Paradoxalmente, esta é a ideologia exercida e não percebida pelos/as “guardiões/ãs” do saber. Também já foi debatido que os modelos educacionais causam um forte impacto nestas condutas de ensino tecnocrático. Estes, por sua vez, trabalham na constituição de corpos dóceis, adotando estratégias disciplinares e

disseminando as desigualdades de gêneros pela inculcação - verbal ou não verbal - de características distintas para meninos e meninas. A começar pela técnica disciplinar, Foucault (2013) proclama que

A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode-se fiar em seu superpoderio; é um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente. (p. 164).

Esta estrutura escolar sustenta a nossa base ideológica capitalista, e predispõem desde as condições físicas do ambiente até os mecanismos que corroboram para a dicotomia de papeis, iniciando pelos anos de formação do indivíduo, dos quais refletirão novamente na sociedade, ao mesmo tempo em que se absorve dela. Louro (1997) constata que

Da arquitetura aos arranjos físicos; dos símbolos às disposições sobre comportamentos e práticas; das técnicas de ensino às estratégias de avaliação; tudo opera na constituição de meninos e meninas, de homens e mulheres - dentro e também fora da escola (uma vez que a instituição “diz” alguma coisa não apenas para quem está no seu interior mas também para aqueles/as que dela não participam). (p. 91).

É importante que possamos tecer críticas sobre o que lemos, bem como fazer associações, estabelecer comparações, realizar inferências para, só então, extrair destas leituras suas reais intenções de comunicação/inculcação. Além disso, elas podem conter mais de um propósito, sendo um aparente e outro implícito. Como visto nesta pesquisa, a perspectiva psicanalítica elaborou teorias sobre os contos que repousaram, sobretudo, nos benefícios a nível psíquico que eles podem gerar. Porém, inocentá-los de seus impactos a nível social pode ser reflexo da invisibilidade para com as formas sutis de injustiças perpetradas pelas escolas. De acordo com Bettlheim (1980) o ideal é que se deva

Contar um conto de fadas com uma finalidade específica que não seja a de enriquecer a experiência didática que, na melhor das hipóteses, fala à mente consciente da criança, ao passo que um dos grandes méritos desta literatura é atingir diretamente o inconsciente da criança (p. 189).

Assim, os ideais vão sendo transmitidos e perpetuados, em geral, pelas mulheres, que são as representantes oficiais da carreira de magistério, constituída enquanto o seu lugar tipicamente “natural”, pois simboliza a extensão da “dona do lar”, uma vez que continua a

frente da responsabilidade de educar as crianças. E ao assumir este encargo, cabe a ela manter a organicidade social, visto que, mesmo as meninas destoantes de suas funções “naturais” precisam conservar as características femininas de seu sexo.

Já que se entende que o casamento e a maternidade, tarefas femininas fundamentais, constituem a verdadeira carreira das mulheres, qualquer atividade profissional será considerada como um desvio dessas funções sociais, a menos que possa ser representada de forma a se ajustar a elas. Em seu processo de feminização, o magistério precisa, pois, tomar de empréstimo atributos que são tradicionalmente associados às mulheres, como o amor, a sensibilidade, o cuidado, etc. para que possa ser reconhecido como uma profissão admissível ou conveniente. (Louro, 1997, p. 96 grifos da autora).

A unilateralidade dimensional situada no biológico que foi atribuída a mulher é um fator histórico, associado ideologicamente às suas condições sociais de mulher. Esta ideologia fez com que a sua auto-percepção fosse prejudicada e apenas parcialmente construída, incorrendo em danos patológicos – sem serem - ou ao conformismo. Heloneida Studart (1974) alega que estas condições justificam a ida de muitas mulheres aos analistas em um dado momento da história.

Um grande número de mulheres que pode pagar se torna cliente dos analistas. Tomadas de uma angústia imprecisa, elas sofrem de nada. O que sentem, realmente, é a ausência de objetivos. Estão reduzidas a uma dimensão apenas: o seu papel biológico (sendo perecível). (p. 24).

Talvez isto explique o fato de que os arquétipos dos contos não lhes causem nenhuma indignação, e que estas inquisições não passem de meras especulações. Se elas internalizaram estas diferenciações de forma naturalizada, é porque “... Tais construções são reflexos de socialização de gênero que vão concretizando-se em meninos e meninas” (Souza, 2006, p. 74), portanto, desde as suas constituições de criança.

Ao se dirigir novamente a Bettlheim (1980), constatamos que, para ele, o tempo defendido para a assimilação dos contos seria para surtir o efeito psicológico dos conflitos internos, sem necessitar de discussão. Porém, entendemos que, sem discussão, estes efeitos também podem cristalizar comportamentos tidos como modelos do que é ser homem e mulher.

Quando os contos de fadas estão sendo lidos para crianças em salas de aula ou em bibliotecas durante a hora da estória, as crianças parecem fascinadas. Mas com frequência elas não recebem nenhuma oportunidade de meditar sobre os contos ou reagir de outra forma; ou

eles são amontoados imediatamente com outra atividade, ou outra estória de um tipo diferente lhes é contada, o que dilui ou destrói a impressão que a estória de fadas criou. (p. 75).

Não raramente, ouvimos mulheres fazerem referências aos príncipes encantados, quase sempre que ainda estão por chegar. Estas frases foram interiorizadas e refletem na realidade, pois revelam as projeções de perfeição lançadas sobre os parceiros aos quais procuram. A mídia e outros meios de comunicação também contribuíram para a veiculação destes contos, e mesmo as versões mais modernas ainda conservam elementos estereotipados. Mendes (2000) diz que “O fato de Branca de Neve, Cinderela e Bela Adormecida estarem entre as personagens mais amadas deve-se também, com certeza, aos filmes de Disney e sua propaganda por meio de discos, livros e álbuns de figurinhas.” (p. 137).

Guimarães (1995) também lembra que “O professor e a professora são modelos de “homem” e “mulher”, ao realizarem suas atividades com os alunos, embora nem sempre se sintam comprometidos com a Educação Sexual.” (p. 100). E no tocante aos gêneros, acrescenta que “Como são sexuados e assumem papeis “masculino” e “feminino”, não importa se com maior ou menor correspondência à estereotipia social – são modelos sexuais.” (p. 100).

Sem contar que algumas versões são consideradas “fortes” no sentido de aludir para a sexualidade precoce e, portanto, são excluídas das leituras.

O que pode parecer estranho é que a educação, como instituição social, seja ambivalente acerca do papel que o conhecimento da sexualidade deve ter no currículo. Essa ambivalência tem a ver com a própria definição de sexualidade. Se a sexualidade é concebida como práticas genitais, então a preocupação volta-se para como e quando tal conhecimento deve ser ensinado, Mas se a sexualidade pode ser vista como a base da curiosidade, a força que nos permite elaborar e ter ideias, bem como o desejo de ser amado e valorizado à medida que aprendemos a amar e a valorizar os outros, então o conteúdo da discussão torna-se bastante aberto e é produzido durante todo o tempo do processo educativo. Defendo que a sexualidade não seja considerada como um tópico separado a ser desenvolvido, mas sim como as condições para viver a aventura de produzir ideias, teorizar sobre questões referentes ao amor e à perda do amor, assim como observar as amplas questões vinculadas ao amor. (Britzman, 1998, p. 162).

Da mesma forma, quando se estreita o campo da sexualidade para refletir sobre as questões concernentes aos gêneros é comum a confusão emitida pelas/os docentes que, mesmo com os avanços das pesquisas, ainda seguem - intuitivamente ou não - a tradição cultural. Diante da provocação de Suplicy et al (2000), verifica-se que

Durante muito tempo acreditou-se que, associadas à conformação biológica, havia outras características típicas do comportamento de homens e mulheres: atividade ou

passividade; objetividade ou sensibilidade; razão ou emoção. Constatáveis na maioria dos homens e mulheres, seriam tais características “naturais”? (p. 59).

Devido a esta percepção docente, pois é dela que estamos falando, facilita-se a inserção dos contos de fadas de maneira irrefletida, acrítica e binária. É interessante ressaltar que nem sempre estas condutas se alojam em decisões curriculares prescritivas, pois encontram sua eficiência no currículo oculto, que se define por meio da “... Experiência cultural, dos valores e dos significados trazidos do seu meio social de origem e vivenciados no ambiente escolar.” (Libâneo, Oliveira & Toschi, 2007, p. 363).

E assim, o intento ideológico capitalista se funde exitosamente. De acordo com Andrée Michel (1988).

Agindo segundo estereótipos sexistas, o espírito humano funciona de maneira binária, atribuindo às mulheres qualidades e fraquezas que são negadas aos homens, ao mesmo tempo em que estes se vêem cumulados de qualidades e defeitos que são negados às mulheres. Inútil acrescentar que, nesta distribuição de estereótipos sexistas entre ambos os sexos, a balança é desigual: os homens recebem muito mais valores positivos (coragem, inteligência, auto- afirmação, competência profissional, gosto pelo perigo e pela aventura, espírito de iniciativa e eficiência). Já as mulheres são representadas como seres desprovidos destas qualidades, ditas “viris”, surgindo como pessoas dotadas de qualidades consideradas “femininas” e supostamente ausentes nos homens. (p. 3).

Neste sentido, Figueiró (1995, p. 47) alarga esta reflexão reportando-se ao passado para declarar que “Quanto à história da sexualidade, sua compreensão nos tem feito ver que ela tem sido reprimida e controlada, ao longo dos séculos, pela Igreja, pela medicina, pelo Estado, pela escola e, também, pela família”. A autora continua alegando que “O que é mais agravante ainda é que o próprio indivíduo tem internalizado essas forças negativas e vem exercendo sobre si próprio a auto-repressão, sem ter consciência disso.” (Figueiró, 1995, p. 47).

Diante da fala de Lúcia Afonso (1995, p. 16), também é possível se atentar para a postura muito comum da/o docente em ignorar a curiosidade sexual da criança, tentando “... Reprimir de forma branda, ao mesmo tempo impedindo comportamentos e transmitindo valores”.

Frente ao exposto, a urgência em inserir a temática da sexualidade no contexto escolar consiste em garantir que os direitos iguais a homens e mulheres e o tratamento equânime previstos em lei se efetivem, pois os fortes laços culturais que nos aprisionam a modelos de

ensino androcêntricos e sexistas ainda nos impedem de assistir a este feito. Figueiró (1995) afirma que para isto acontecer

É fundamental estar bem com sua própria sexualidade, porém esta conquista não se dá isoladamente, ou seja, o indivíduo consigo próprio ou com seu parceiro; nem tampouco se dá alienado de uma cultura. Pelo contrário, a vivência pessoal da sexualidade é influenciada, contaminada, afetada pelas conquistas ou entraves que vêm emergindo da contínua construção da mesma pela cultura na qual estão inseridos os indivíduos. (p. 107).

Para tanto, Leão (2009) reforça que “Há necessidade de uma formação eficaz para abordar tal temática e trabalhá-la profundamente para reduzir o embrião que gera ao pregar estereótipos sexuais.” (p. 92). Com isto, possivelmente se mitigaria os conceitos e valores arraigados, que estão mais amarrados a tradições do que ao princípio de igualdade e equidade de gêneros.

Portanto, é imprescindível que se invista na formação docente, pois somente oferecendo condições de refletir sobre questões de sexualidade e relações de gênero, a/o professor/a poderá rever suas concepções e valores, além de conquistar a autonomia necessária para identificar conteúdos sexistas numa simples e “ingênua” literatura infantil, como é o caso dos contos de fadas. Ana Maria Faccioli Camargo e Cláudia Ribeiro (1999) complementam dizendo que “A competência do profissional da educação implica, dessa forma, enxergar o processo educativo sob uma perspectiva multidimensional, considerando a internalidade e a comunicabilidade de suas próprias experiências.” (p. 51).

4.5 A metodologia de ensino e os contos de fadas: um repensar sobre a prática docente