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4.3 A formação docente e os contos de fadas

4.3.1 Formação Inicial

No início deste capítulo, foram apresentados diferentes modelos educacionais definidos por Corazza (2005), dos quais a autora denominou de “tempos históricos”, dividindo-os em três categorias.

Ao relacioná-los com as abordagens de educação sexual, é possível traçar um fio condutor que leva estas a se identificarem com aqueles, revelando a visão de mundo, as concepções ideológicas, políticas, religiosas, morais, estéticas, enfim, os valores e tradições de um tempo marcado historicamente.

Como o intuito da discussão é inserir as relações de gêneros no contexto da instituição escolar, esta aproximação de paradigmas se faz necessária para que não se realizem interpretações equivocadas ou desarticuladas.

Na área da sexualidade, Mary Neide Damico Figueiró (2014) aponta quatro abordagens: a religiosa (tradicional/liberadora), médica, pedagógica e política ou emancipatória. Sintetizando cada uma delas com base na própria autora, serão apresentadas na mesma ordem.

... A abordagem religiosa tradicional é a formação do cristão, e o sexo é vinculado ao amor pelo parceiro, ao casamento e à procriação. A vivência da sexualidade está condicionada à submissão às normas religiosas oficiais, no caso da abordagem católica, e às mensagens, no caso da protestante... Abordagem médica é a díade saúde-doença, com ênfase na ação terapêutica para tratamento dos desajustes sexuais e das ansiedades ou angústias relativas à sexualidade; valoriza o fornecimento de informações em contexto de relação terapêutica ou de

programas preventivos de saúde pública, para assegurar a saúde sexual do indivíduo e da coletividade... Na abordagem pedagógica, o processo ensino-aprendizagem dos conteúdos básicos da sexualidade é o foco central, podendo ser dada ênfase, também, ao aspecto formativo – discussão de valores, sentimentos e atitudes – e ao desenvolvimento do educando... A

abordagem emancipatória ou política..., embora também considere a relevância da vivência

pessoal positiva e saudável da sexualidade, caracteriza-se essencialmente em perceber na educação sexual um compromisso com a transformação social, conduzindo as discussões para as questões que envolvem relações de poder, aceitação das diferenças e respeito pelas minorias. (p. 94-95 grifos nosso).

Deixando a identificação com os “tempos históricos” por conta do leitor, caberá defender um modelo de formação docente que seja coeso, dialógico, participativo e que abarque questões de sexualidade e relações de gêneros. Para tanto, é preciso que se abandone o discurso da escola reprodutora de desigualdades e comece a apostar na escola que enxerga as potencialidades, pois como diz Larrosa, (2013) o

... Funcionamento da educação como um contra destino, só pode acontecer se as crianças não são determinadas pelo que as condiciona, mas por suas possibilidades. Não pelo que as determina, mas pelo que as indetermina. A educação trabalha com as potências, não com as condições. (s/p).

Assim, a finalidade da educação se empenharia em democratizar o ensino, com vistas a respeitar a diversidade cultural, social e econômica das/os alunas/os e também em praticar a política da educação para todas/os. Examinando os escritos de Henry Giroux e Peter McLaren (2002a), entende-se, em suas palavras que

... As escolas de formação de professores necessitam ser reconhecidas como contra- esferas públicas... Tais instituições, da forma como existem hoje, estão perniciosamente destituídas não só de consciência social, mas também de sensibilidade social. Por essa razão, é necessário desenvolver programas que eduquem os futuros professores como intelectuais críticos capazes de ratificar e praticar o discurso da liberdade e da democracia. (p. 127).

Contextualizando a fala dos referidos autores, a corrente pragmatista20, liderada por

americanos como John Dewey, era a favor dos debates em esferas públicas, pois acreditava que estes espaços proporcionavam a troca de conhecimentos e o diálogo, logo, tornavam-se espaços pedagógicos. (Giroux & Mclaren, 2002a). No entanto, a filosofia original da doutrina foi alterada para uma política de individualidade social, que transferia aos subordinados a “culpa” pela desigualdade social, pois a oportunidade lhes era concedida.

20 Doutrina filosófica criada no final do século XIX que adota como critério da verdade a utilidade prática,

identificando o verdadeiro como útil; senso prático. (Definição retirada do site http://www.dicionarioinformal.com.br/pragmatismo/).

Nesta lógica estrutural, a escola seguiu (re)produzindo as políticas do antagonismo de classes, etnia, crença e gênero, temas dos quais pouco se falava na época, pois eram assuntos que estavam sob o controle das entidades reguladoras e detentoras da “verdade”, como apontado por Foucault (1988).

A esta altura da discussão cabe perguntar: será que as escolas atuais se renovaram? Estamos caminhando para o tempo do Desafio da Diferença Pura, suscitado por Corazza? Ou será que continuamos aprisionados a modelos arcaicos de educação?

Ainda fundamentando-se nos mesmos autores, os cursos de formação da contemporaneidade cometem duas infrações, pois continuam a “... Diminuir a importância da luta pelo fortalecimento do poder docente e... tem servido para reproduzir as ideologias tecnocráticas e corporativistas características das sociedades dominantes.” (Giroux & Mclaren, 2002a, p. 128). Desta forma, justifica-se a lógica da contra-esfera pública com vistas a “... Desenvolver programas que eduquem os futuros professores como intelectuais críticos capazes de ratificar e praticar o discurso da liberdade e democracia.” (Giroux & Mclaren, 2002a, p. 127).

Acrescentamos a esta ideário pedagógico a necessidade de uma educação sexual efetiva, que busque um equilíbrio entre os gêneros, pois “O princípio masculino e o princípio feminino estão destinados a se completar e fecundar reciprocamente.” (Franz, 2010, p. 99).

Examinando outras leituras, Melo (2004) nos leva a um fato importante. Durante o XIII Congresso Mundial de Sexologia, a Declaração dos Direitos Sexuais foi definida em 1997, na cidade de Valência, e aprovada em 1999, no XV Congresso Mundial de Sexologia, em Hong Kong. Nela consta o propósito da educação sexual, que deve ser o de prezar pela comunicação e pelo conhecimento entre crianças e adolescentes no sentido amplo da sexualidade, erradicando a ideia reducionista que circunda sobre ela.

Para isto, será necessário investir nos cursos de formação inicial. Já existem trabalhos empenhados em prol de reformas nestes cursos, a fim de capacitar as/os professoras/es desde cedo para lidar com tais conceitos e preconceitos.

Segundo Leão (2009) é importante o investimento em cursos de licenciatura para a desconstrução das relações desiguais de gêneros por meio da formação das/os professoras/es. Portanto, estes cursos contribuiriam de forma significativa para reverter alguns conceitos arraigados. Entretanto, este deveria ser somente o início de uma formação contínua.

A complexidade do assunto requer cautela desde o esclarecimento do conceito de formação - ainda que este não leve a um consenso terminológico - até os pontos mais específicos vinculados às questões de caráter pedagógico. Autores como Clemens Menze

(1981) afirmam que existem tendências divergentes relacionadas a este conceito e que transformam, tanto o sentido quanto, a sua materialidade. Porém, o componente pessoal interliga as tendências, na proporção que

Inclui problemas relativos aos fins e/ou modelo a alcançar, a conteúdos/experiências a assumir, às interações sujeito/meio (social, cultural e axiológico), aos estímulos e plano de ‘apoio’ no processo. Mantém relação com o ideológico-cultural, como espaço que define o sentido geral dessa formação como processo. (Zabalza & González citado por García, 2013, p. 19).

Não obstante, Maurice Debesse (1982) alerta para o risco de nivelamento do aspecto pessoal de formação a um processo que ocorre de forma autônoma, e na tentativa de evitar este equívoco, busca distingui-la em três fases. A autoformação, sendo aquela em que o indivíduo tem o controle de sua própria formação; a heteroformação, compreendida como aquela que recebe estímulos externos, sem que estes interfiram na personalidade do sujeito; e a interformação, definindo-a como “A ação educativa que ocorre entre futuros professores ou entre professores em fase de atualização de conhecimentos...” (Debesse, 1982, p. 29).

Atendo-se a origem da institucionalização da formação de professoras/es, as primeiras escolas, surgidas em meados do século XIX, na Espanha, e intituladas como Escolas Normais, tinham a função de “... Assegurar uma formação inicial suficiente aos professores do ensino primário.” (Garcia, 1999, p. 72). No arcabouço destes cursos prevalecia o ensino condescendente à doutrina religiosa, devido à responsabilidade que esta instituição assumia em permitir ou não o exercício do ofício de mestre.

As mudanças e adaptações sofridas ao longo dos anos, sobretudo na estruturação do currículo da formação inicial, reflete os impactos sociais, políticos e econômicos, vivenciados em cada momento histórico.

Atualmente é inegável que estes cursos de formação inicial necessitam contemplar em seus programas curriculares proposições que incluam a diversidade de raça, sexo, classe social, e assim por diante, para que no processo de iniciação profissional, os recém formados possam converter tais discursos em atitudes provedoras de debates e reflexões acerca destas questões.

Cada vez mais se vem afirmando a necessidade de incorporar nos programas de formação de professores conhecimentos, competências e atitudes que permitam aos professores em formação compreender as complexas situações de ensino. Enfatiza-se especialmente o estimular nos professores atitudes de abertura, reflexão, tolerância, aceitação e proteção das

diferenças individuais e grupais: de gênero, raça, classe social, ideologia, etc. (García, 2013, p. 91-92 grifos nosso).

Um dos enfrentamentos a ser considerado para a superação de um currículo puramente tecnocrático repousa sobre os construtos pessoais de cada estudante dos cursos de formação inicial. Carlos Marcelo García (2013) aponta algumas pesquisas que revelam o enraizamento de conhecimentos e crenças trazidos pelas/os estudantes sobre o que acreditam representar a escola, as/os professoras/es, as/os alunas/os e como se deve ensinar. Na sequência, o autor adverte à existência de uma tese desenvolvida por Mardle e Walker (1980) “... De que os cursos de formação de professores alteram pouco, e sobretudo confirmam e reforçam o que os estudantes já trazem consigo.” (García, 2013, p. 85).

Estas asserções constituem uma parte do currículo denominada de oculto, por caracterizar o ensino intencional do conteúdo não prescrito. Nas palavras Gomes (2007), “... Certos saberes que não encontram um lugar definido nos currículos oficiais podem ser compreendidos como uma ausência ativa e, muitas vezes, intencionalmente produzida.” (p. 31).

É também por meio do currículo oculto que as tendências de ensino e todos os demais fatores de ordem, pedagógica, social e política que as caracterizam serão desvelados. Portanto, desde a formação inicial, compreende-se o modelo de ensino que se pretende propagar e a base teórica, ideológica, política e filosófica que o sustenta. De acordo com García (2013) “Ao se falar do currículo inicial de professores, é necessário ter em conta qual o modelo de escola, de ensino e de professor se aceita como válido.” (p. 77). Neste sentido, engajar-se por uma educação que abarque em sua formação inicial aspectos referentes à ciência, à tecnologia e à arte, levando ao desenvolvimento das dimensões que incluam os conhecimentos, as destrezas, as habilidades e as atitudes da/o futura/o docente torna-se o princípio de novas perspectivas de ensino. Assim, tornar-se-á possível

Implicar os estudantes num processo de reflexão crítica consistente que os estimule a questionarem o que se assume como natural, a desvelar as suposições ocultas, a observar sob novas perspectivas. Significa questionar os estudantes não só através de perguntas de «como», mas «o quê» e «para quê». Significa ajudá-los a desenvolver a capacidade de tomar decisões sobre o ensino e a aprendizagem que permitam tomar consciência das consequências éticas e políticas e das possibilidades alternativas. (Adler & 1991, p. 78 citado por García, 2013, p. 92 grifos do autor).

Enfim, não se trata de abolir os contos de fadas tradicionais, uma vez que pertencem ao patrimônio cultural dos grandes clássicos literários e merecem nosso respeito. O desafio colocado é reconduzi-los, rompendo com modelos comportamentais cristalizados, biótipos padronizados de beleza e distinção entre as funções atribuídas a homens e mulheres.

Nesse sentido, a contextualização dessas histórias permite a compreensão do momento sócio-histórico de sua criação, possibilitando à criança perceber que a literatura não é neutra, tampouco estática.

Portanto, o tratamento didático oferecido a estes contos e a contextualização que vem sendo feita destas leituras precisam ser repensadas, bem como as orientações advindas do Programa Ler e Escrever, a fim de contribuir para amenizar as desigualdades de gêneros.

Porém, para atingirmos este objetivo, sem cairmos no erro de reduzir a orientação sexual21 ao aspecto informativo biológico e moralista, é essencial que haja uma preocupação primeira com a formação daqueles profissionais (psicólogos, professores, orientadores educacionais etc.) que irão trabalhar na área. (Ribeiro, 1990, p. 19).

Existe um abismo entre a teoria vista nos cursos de formação inicial e a realidade majoritária. No entanto, as avaliações externas deste nível de ensino também cobram conhecimentos sobre os contos de fadas, mas vagueiam entre seus objetivos, além do ranço das descrições que, descontextualizadas e desinformadas, contribuem para os estereótipos sexistas. No Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE), promovido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (2011), uma das questões da prova elaborada para o curso de Pedagogia consistia na interpretação de um poema com príncipes e princesas. Ainda que o objetivo da questão não girasse em torno desta temática, as alternativas denunciam as possibilidades de respostas, pautadas em nossas construções naturalizadas dos estereótipos de beleza.

21 Figueiró (1996, p. 59) recomenda “... Que seja padronizado o uso do termo educação sexual, por considera-lo

o mais adequado, uma vez que, entre outros motivos, diferentemente dos outros termos, implica que o educando seja considerado sujeito ativo no processo de aprendizagem e não mero receptor de conhecimentos, informações e/ou orientações”.

Quadro 2

Questão referente à Avaliação Externa do Ensino Superior do Curso de Pedagogia. Questão 1

Retrato de uma princesa desconhecida Para que ela tivesse um pescoço tão fino

Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos Para que a sua espinha fosse tão direita

E ela usasse a cabeça tão erguida

Com uma tão simples claridade sobre a testa Foram necessárias sucessivas gerações de escravos De corpo dobrado e grossas mãos pacientes

Servindo sucessivas gerações de príncipes Ainda um pouco toscos e grosseiros Ávidos cruéis e fraudulentos

Foi um imenso desperdiçar de gente Para que ela fosse aquela perfeição Solitária exilada sem destino

ANDERSEN, S. M. B. Dual. Lisboa: Caminho, 2004. p. 73. Nota: ENADE (2011).

No poema, a autora sugere que

A-) os príncipes e as princesas são naturalmente belos. B-) os príncipes generosos cultivavam a beleza da princesa. C-) a beleza da princesa é desperdiçada pela miscigenação racial.

D-) o trabalho compulsório de escravos proporcionou privilégios aos príncipes. E-) o exílio e a solidão são os responsáveis pela manutenção do corpo esbelto da princesa.