• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 4: ESCUTANDO AS PROFESSORAS E IDENTIFICANDO

4.2. A perda do intelectualismo docente em sala de aula

A centralidade colocada nos professores traduziu-se na valorização do seu pensar, do seu sentir, de suas crenças e seus valores como aspectos importantes para se compreender o seu fazer, não apenas de sala de aula, pois os professores não se limitam a executar currículos, senão também os elaboram, os definem, os reinterpretam (CONTRERAS, 2012, p. 15).

As vozes das professoras entrevistadas me permitiram elaborar uma reflexão sobre a forma com que os docentes vêm perdendo sua autonomia e o seu trabalho enquanto intelectual a partir de uma série de medidas burocráticas e controladoras adotadas para conduzir e avaliar o seu trabalho em sala de aula. Tais como aquelas que foram exemplificadas no capítulo 2 e que demonstram a forma com que as sequências didáticas acabam por limitar a criação e a autonomia docente, tanto durante o processo de planejamento como nas próprias aulas. Inicio essa parte do texto com a citação de Contretas (2012) exposta acima como o estabelecimento de algo que perdemos a muito tempo... se não temos a autonomia do fazer docente, que dirá do pensar, sentir, das crenças e valores. E, ao mesmo, tempo a coloco aqui como forma de luta, como busca por cadeias de semelhanças que nos movam a lutar pelo retorno da imagem de valorização do docente.

O questionário semiestruturado preparado para a entrevista não previa uma análise da organização da escola pública paulista, apenas continha perguntas que investigavam o contato que os professores da rede pública tinham com o Currículo do Estado de São Paulo. No entanto, ao mencionar os momentos de ATPC (Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo), como possíveis diálogos sobre o currículo, muitas das professoras revelaram que a reunião era

utilizada para fins burocráticos, que atendiam mais a demanda de fiscalização do que de construção e formação continuada dos professores.

Ao ser indagada sobre a forma com que o currículo era apresentado em momento de formação continuada para os professores, a professora Bia respondeu da seguinte maneira:

“Isso nunca é discutido. O currículo em si, o que o professor vai trabalhar na aula, em nenhuma escola que eu trabalhei eu vi essa discussão. O ATPC, que é uma reunião que a gente tem, é completamente pautada em questões burocráticas, sempre voltando para compreensão e aceitação desse sistema. Então, não tem nenhuma abertura, em nenhuma escola que eu trabalhei, para um diálogo sobre questões que eu julgo mais importantes e profundas em relação ao ensino básico do Estado de São Paulo” (PROFESSORA

BIA).

Quando perguntei sobre quais seriam essas questões mais importantes, a professora respondeu da seguinte maneira:

“Ah, seria, por exemplo, Reforma do Ensino Médio; esses conteúdos dessas provas, tipo SARESP, avaliação diagnóstica, pra diagnosticar o que? Isso nunca é discutido. Apenas chega lá, você tem que aplicar... então nunca me perguntaram o que eu trabalho na sala de aula, em nenhuma escola. São discutidos temas do dia a dia na sala de aula, mas é sempre tudo mandado pela diretoria de ensino”

(PROFESSORA BIA). E ainda que,

“A todo tempo a coordenação, a gestão a PCNP, a supervisão, porque elas frequentam essas reuniões, elas estão sempre preocupas em “espizinhar” o professor. É isso que eu sinto, entendeu? O que você acha que é o conselho de sala?” (PROFESSORA BIA).

É importante ressaltar que esse não foi o projeto inicial para o ATPC. O documento norteador desse projeto organizado pela Coordenação de Gestão da Educação Básica, comenta que a antiga CENP (Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas), ao instituir 2h de trabalho coletivo na escola, orientou que o planejamento e a organização do ATPC deveriam perpassar pelos seguintes pontos:

Considerar as demandas dos professores frente às metas e prioridades da escola; Elaborar previamente a pauta de cada reunião, definida a partir das contribuições dos participantes; Dividir entre os participantes as tarefas inerentes às reuniões (registro, escolha de textos, organização dos estudos); Planejar formas de avaliação das reuniões pelo coletivo dos participantes; Prever formas de registro (ata, caderno, diário de bordo, e outras) das discussões, avanços, dificuldades detectadas, ações e intervenções propostas e decisões tomadas; Organizar as ações de formação continuada com conteúdos voltados às metas da escola e à melhoria do desempenho dos alunos, com apoio da equipe de supervisão e oficina pedagógica da DE (SÃO PAULO, 2014, nº 10, p. 7 – grifo meu).

A análise do texto nos permite compreender que o ATPC foi formulado como um espaço-tempo de construção coletiva do/para o professor. Segundo essas diretrizes, a demanda do que será trabalhado tem que vir do professor, e o objetivo é que se discuta acerca de avanços, dificuldades e propostas a serem desenvolvidas, tendo os funcionários da Diretoria de Ensino apenas como supervisores, e não como propositores de pauta e vigias do que vem sendo desenvolvido no espaço coletivo dos professores.

Nesse sentido, é possível perceber as disputas pela significação desse espaço, criado para atender a demanda de formação continuada e organização do cotidiano escolar, e que hoje aparece como um momento de resolução de questões burocráticas, a fim de atender o modelo hegemônico de gestão escolar adotado pelo Estado de São Paulo. E como é possível notar na fala da professora Bia, com uma grande preocupação em controlar o docente e o encaixá-lo na forma em que a educação pública paulista está se construindo.

A professora Gabi também chama atenção ao problema que existe com relação ao planejamento.

“Então, esse negócio de planejamento, para ser bem sincera eu nunca fiz. Porque como eu entrei depois, geralmente a professora que entra primeiro, em janeiro ou fevereiro, elas já faziam, eu não tenho planejamento nenhum. Até falaram: Ah, precisa fazer... mas aí pega as Situações de Aprendizagem, monta, cópia e cola e pronto, só pra jogar pra DE46, mas nunca foi pedido isso da parte da coordenação assim: Ah, eu preciso de um planejamento certinho, bonitinho... nunca me pediram isso!” (PROFESSORA GABI).

O que aconteceu com a professora Gabi é bem comum de acontecer com outros professores, a forma de inserção de professores por meio da Categoria O, como já mencionada neste texto, é uma forma precária de vincular o professor ao quadro docente por meio de um contrato de trabalho. Esse contrato acaba tendo o seu processo inicial durante todo o ano letivo, assim, alguns professores conseguem aulas apenas no meio do período, o que faz com que ele entre após a atividade de planejamento, que é imprescindível a qualquer professor em qualquer escola.

A partir do que foi colocado pelas professoras percebo que a estrutura organizacional da escola pública paulista contribui de forma significativa para o cenário de precarização do trabalho docente. Junto a isso, há uma série de burocracias administrativas

46

que visam regular e controlar o trabalho docente. Assim, entendo que “o que está em jogo na perda de autonomia dos professores é tanto o controle técnico ao qual possam estar submetidos como a desorientação ideológica à qual possam se ver mergulhados” (CONTRERAS, 2012, p. 37).

Contreras (2012) trabalha com duas formas de redução da autonomia docente que aparecem na fala das duas professoras mencionadas acima. A primeira delas é o controle técnico, a forma com que o ATPC é utilizado para cumprir questões burocráticas, ou seja, nada mais é do que uma pequena amostra da forma com que o Estado pretende controlar a atuação docente e a sua prática pedagógica por meio dos materiais didáticos. Por outro lado, o autor menciona a desorientação ideológica, e notamos exatamente essa queixa na fala da professora Bia quando ela diz sentir falta de discussões que ela julga serem importantes, tais como questões envolvendo políticas educacionais e curriculares. É interessante se pensar nisso porque para além da escola, qual seria o lugar de discussões sobre políticas curriculares e intencionalidades dessas políticas? A maioria dos professores da rede pública paulista não frequenta um ambiente “acadêmico”, o ambiente escolar seria o mais próximo disso, visto que é um ambiente onde estão reunidos vários intelectuais. Em algumas situações, percebe-se que a ausência de diálogo acaba por criar um docente alienado e reprodutor do que lhe é imposto.

Esse cenário entre o que é proposto pelo sistema por meio da burocratização e o posicionamento das professoras frente a realidade que lhes é imposta, buscando dialogar e questionar o que é estabelecido, pode ser lido por meio das disputas entre o universal, a política oficialmente estabelecida pelo Programa São Paulos Faz Escola e as demais características da educação pública brasileira, e os particulares, representados pela unidade escolar, ou mesmo os próprio docentes, que buscam aliar-se aos que pensam de forma semelhante a eles, refletindo e questionando as políticas curriculares.

Com o objetivo de hegemonizar um currículo e um sentido de escola e de conhecimento escolar, o Estado sutura os “caderninhos” e o currículo aos instrumentos de verificação e controle, tais como as avaliações externas. Como mencionado acima, o Estado de São Paulo utiliza o Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP).

Essa foi uma das questões que incluí na entrevista, buscando entender qual a relação dos professores com essa avaliação, como preparam os alunos e como utilizam o resultado; o objetivo final era compreender como a prova interfere na rotina da escola e delimita (ou não) conteúdos e metodologias de ensino a serem trabalhados em sala de aula.

A professora Bia classificou a prova como “medíocre”, exigindo pouca reflexão dos alunos e disse que não existe uma análise crítica por parte do corpo docente e da coordenação da escola, eles apenas aplicam a prova enviada sem qualquer análise ou preparação dos alunos.

Nem elas sabem, você entende que não existe um estudo, ninguém nunca pega a prova e fala, vamos estudar essa prova, vamos ver o que os nossos alunos vão absorver dessa prova... não existe isso. Existe a parte burocrática, tem SARESP, tem o índice, tem o bônus, entendeu? (PROFESSORA BIA).

Por outro lado, a professora Gabi dimensiona o que acontece em sua unidade escolar após a correção das Avaliações de Aprendizagem em Processo (AAP)47, indicando a forma com que elas acabam interferindo no trabalho docente.

quando vem o resultado da AAP a gente vê onde que os alunos estão com mais dificuldade em português e matemática, onde eles estão com mais problemas. E a gente escolhe entre as competências e habilidades que eles estejam com problemas, uma para trabalhar dentro da nossa matéria. Aí por exemplo, eu estou trabalhando energia, aí vi lá que eles estão com problemas de gráfico e tabela em matemática, então eu tenho que preparar uma aula com gráfico e tabela direcionado ao meu conteúdo, para trabalhar matemática ou português. E isso está acontecendo, inclusive agora na sexta-feira eu vou ter que fazer isso. Eu ainda não peguei, então não sei sobre o que é, mas eu sei que o ano passado eu usei construção de gráfico e tabela com os alunos. E esse geralmente é o que eu mais uso, porque para geografia é o que é mais fácil de trabalhar (PROFESSORA

GABI).

É percebível a forma com que os professores são conduzidos a mobilizarem-se para incluir as competências e habilidades das disciplinas Língua Portuguesa e Matemática em suas aulas de geografia, por exemplo. Acredito que o problema não está em o professor trabalhar gráficos e tabelas em sua aula de geografia. Isso de certa forma já faz parte do currículo e está inserido em alguns conteúdos específicos, mas sim na forma com que essas provas legitimam certos conhecimentos em detrimento de outros, e ainda afetam a autonomia do professor, que se vê pressionado a abandonar seu planejamento para trabalhar certas habilidades associadas instrumentos didáticos específicos.

A professora Gabi ainda chama atenção para a forma com que essas provas são inseridas na escola,

Sempre tem reclamação. Tipo, “ah, que bosta vai ter” ... até a coordenação e até a direção, sabe? É como se fosse um dia morto aqui. Porque é muito trabalho, é trabalho pra aplicar, os alunos

47

As Avaliações de Aprendizagem em Processo (AAP), são realizadas bimestralmente e tem como objetivo a preparação para o SARESP, com um mesmo formato, apenas incluem as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática.

perdem aula. Por exemplo, biologia, geografia, história são duas aulas no Ensino Médio, então você perde duas aulas aplicando uma prova que não vai servir de nada, e realmente não serve de nada. A gente que corrige, a gente se divide, todo mundo, pra corrigir aquelas provas pra não pesar para o professor de português e matemática. Nesse sentido não funciona de nada, mas quando vem os resultados acontece aquilo que eu falei... ai vê a sala tal está com mais problema, está com mais dificuldade. Mas é muita coisa burocrática, e aí não dá tempo (PROFESSORA GABI).

A alteração no cotidiano escolar também chama atenção. A fala da professora nos faz refletir sobre a forma com que essas provas anulam o que o professor planejou para a sua aula e insere a aplicação da avaliação externa, entendendo-a como mais urgente do que o planejado pelo professor.

Contreras (2012) trabalha com as consequências dessa forma de organização escolar, onde o trabalho do professor é controlado e em alguns casos planejados externamente. O autor traz para seu trabalho a Teoria da Proletarização docente, onde entende que “o trabalho docente sofreu uma subtração progressiva de uma série de qualidades que conduziram os professores à perda do controle e sentido sobre o próprio trabalho, ou seja, à perda da autonomia” (p. 37). A teoria da Proletarização docente trabalha com a ideia de que os professores têm, enquanto categoria, sofrido mudanças nas atividades que desempenham, e essas mudanças tem transformado o trabalho docente a condições semelhantes a classe operária. Essas condições estão associadas a racionalização do trabalho apresentadas nas empresas e na produção em geral: alienação do trabalhador, taylorização do trabalho e fragmentação das tarefas que, sendo isoladas e rotineiras, perde o sentido para o trabalhador, que não compreende o significado do processo que envolve seu trabalho, perdendo habilidades que anteriormente possui.

E não são exatamente essas as nossas características enquanto docentes? A fragmentação do ensinar da disciplina, buscando atender as demandas de avaliações e currículos, não acabam por fragmentar de tal forma o trabalho docente que não conseguimos mais enxergar a educação como um todo, apenas nossas áreas disciplinares?