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2. ROMANTISMO: UM PERÍODO NOTÁVEL NA LITERATURA BRASILEIRA

2.7 A personagem Lúcia: um perfil feminino entre o angelical e o demoníaco

Quando analisamos a protagonista de Lucíola (1862), percebemos que ela pode ser vista pelos personagens do romance de maneiras completamente diferentes. A primeira impressão de Paulo, de uma moça pura e ingênua, não deixa de acompanhá-lo ao longo da narrativa, mesmo que durante vários momentos ela tente convencê-lo de que não é como ele pensa, o que lhe faz sofrer algumas decepções.

Essa impressão de virtude aparece inclusive de forma sensorial, como quando, ao entrar em sua casa, ele sente o cheio de perfume de flor de laranjeira e diz que não pode haver nada mais puro, ou quando ele a vê vestida de branco e tem certeza de que ela não esteve com nenhum outro homem após estar com ele.

Paulo remete tanto à inocência de Lúcia em seu relato que chega a dizer que ela lhe purificou e santificou com seu olhar. “Somente o olhar de Paulo, desprovido dos trejeitos urbanos e dos vícios de interpretação da corte, poderia ver em Lúcia a menina e não a mercadoria.” (DE MARCO, 1986, p. 179)

Além de demonstrar que tinha uma visão de Lúcia completamente diferente da impressão da maioria das pessoas, o personagem revela que o amor de Lúcia lhe modificou de maneira positiva, ou seja, não foi somente ele que desempenhou o papel de seu salvador, mas ela também o salvou de diversas formas. Em Rubí (2004) acontece o mesmo: somente as pessoas que a amam verdadeiramente, como sua mãe, sua sobrinha e o amor de sua vida, conseguem ver bondade nela.

Enquanto conta a história, o narrador-personagem Paulo mostra que a sociedade da Corte tinha outro pensamento sobre Lúcia: que ela era uma das mulheres mais belas da cidade e uma cortesã voluntariosa e caprichosa. Mesmo que de outra maneira, eles também têm a ideia de que Lúcia não é uma prostituta como as outras: não se submete completamente à

vontade dos homens nem faz tudo por dinheiro. Cunha, por exemplo, costuma falar das peculiaridades da personagem:

A Lúcia não admite que ninguém adquira direitos sobre ela. Façam-lhe as propostas mais brilhantes: sua casa é sua e somente sua; ela o recebe, sempre como hóspede; como dono, nunca. Na ocasião em que o senhor a toma por amante, ela previne-o de que reserva-se plena liberdade de fazer o que quiser e de deixá-lo quando lhe aprouver, sem explicações e sem pretextos, o que sucede invariavelmente antes de seis meses; está entendido que lhe concede o mesmo direito. (ALENCAR, 1862, p. 17)

Assim, a personagem realmente possui, além da beleza única, comprovada por todos, um caráter forte, que faz com que ela não dependa de ninguém e queira seguir sempre suas próprias vontades, até quando encontra o amor.

Por outro lado, temos a visão da própria Lúcia sobre si mesma. Ela não se percebe como uma mulher digna de viver um relacionamento ou de ser feliz. No entanto, em alguns momentos, sente esperança. Demonstra ser voluntariosa, ter diversos comportamentos incomuns às mulheres da época, como dizer que pode fazer o que quiser com seu dinheiro, não aceitar chantagens de seus amantes e não se submeter a exclusividades. Outras atitudes mais independentes ela poderia ter justamente pelo fato de ser prostituta, como, por exemplo, andar desacompanhada.

Uma diferente face de Lúcia somente conhecemos no final do livro, durante a revelação de sua história a Paulo. Deste modo, sabemos que ela sofreu muito quando criança, sendo a única da família nuclear que não adoeceu. Passando necessidades, ela foi levada à prostituição e, em seguida, expulsa de casa. A própria protagonista mostrava que percebia uma diferença entre Lúcia, a prostituta, e Maria da Glória, a jovem inocente que desejou voltar a ser no fim de sua vida. Desta forma, está presente no romance o tema da dupla personalidade ou falsa identidade, apontado por Campedelli (1989) como um dos plots comuns em telenovelas.

Sendo Maria da Glória, ela podia sonhar e ter ilusões. Tinha a possibilidade de ser mais que um corpo que se poderia comprar ou que carregava a moda. Inclusive, é dito que ela parecia uma sinhá esperando o casamento, isto é, poderia perfeitamente ser confundida com uma moça comum, que gostaria de ser. Da mesma forma, Rubí conseguiria ser vista como uma senhorita possuidora de boas condições financeiras em vários momentos, mesmo não sendo, já que se esforçava em parecer o que desejava que as pessoas enxergassem.

Quando o passado de Maria da Glória se revela, é como se a personagem Lúcia se retirasse de cena. Nesses momentos, não é mais utilizada a linguagem erótica, sendo

substituída por um vocabulário inocente, incluindo diálogos sobre o jardim, costura e visitas, assuntos comuns entre as moças de família da época. Essa maneira de se apresentar da personagem contrasta com outros momentos da narrativa, nos quais Lúcia foi referida como um objeto. Especialmente durante a festa de Sá, inclusive a própria personagem se coloca desta forma, dizendo que faz aquilo por precisar de dinheiro e reafirmando para Paulo, como foi dito, que é uma prostituta como todas as outras.

As múltiplas faces da protagonista estão relacionadas ao ambiente em que ela se encontra, que influi em seu comportamento. Em ambientes privados, como em sua casa, quando está sozinha com Paulo; ou no campo, um lugar puro, natural e harmônico, ela pode expressar seus sentimentos, pensamentos e talvez tentar ser a moça que poderia ter sido ou gostaria de ser. Em situações assim, ela promete beijos puros, se veste de branco, borda, cozinha e arruma a casa e até se nega a ter relações carnais.

Paulo demonstra que quer viver com ela em privado e ela muitas vezes se submete às suas vontades, passando a se comportar de forma reservada e pudica. Um dos momentos em que a protagonista sofre é quando suas vizinhas no campo descobrem que ela era prostituta, já que lá ela mantinha outra imagem e gostaria de esquecer a Lúcia que era na Corte, onde sabia que não poderia se livrar dos olhares que lhe viam como perdida. A personagem Rubí também busca fugir da cidade quando se casa com o noivo de sua melhor amiga por dinheiro, para esquecer seu passado pobre e evitar o julgamento de sua família e amigos.

Lúcia, por outro lado, nos ambientes públicos, como as ruas da Corte, os teatros e as festas, se comporta de maneira expansiva e voluntariosa. Em momentos nos quais o casal se separou, por exemplo, ela retornava à vida pública, ostentando sua beleza, quase sempre desejando provocar ciúmes em Paulo, enquanto ele se esconde dos olhos do público para não demonstrar seu sofrimento, chegando a pedir que Lúcia saia com Couto. Na última parte da história, inclusive nos espaços públicos, Lúcia queria negar sua imagem de prostituta, destruindo ou doando objetos associados a essa vida e passando a utilizar roupas claras e discretas.

Percebemos que as atitudes dos dois personagens não se associam somente às mudanças de ambiente, mas também à posse de dinheiro, que funcionava na dinâmica da relação amorosa realmente como uma moeda de troca. No caso de Lúcia, abdicar do pagamento significava assumir que valorizava mais o sentimento e buscar uma mudança de situação, deixando de ser cortesã. No caso de Paulo, pagar denotava ter poder e demonstrar desprendimento do amor de Lúcia. Deste modo, a atitude em relação ao dinheiro é um fator importante na interação entre as personagens.

Um momento em que Lúcia reflete sobre si mesma e sobre Paulo é quando lê A Dama

das Camélias (1848). Emocionando-se com o triste final, diz que uma prostituta não pode

amar ou ser amada. Depois de, juntamente com seu amado, concluir que eles dois são diferentes dos personagens franceses, ela busca reconstruir sua história e reencontrar sua identidade. Nesse momento, o seu passado, sua infância, são resgatados e negar a cortesã parece ser a única forma possível de planejar seu futuro.

Outro fator essencial para conhecermos a personagem é seu sentimento diante da possibilidade de ter um filho: medo. Esse pavor acontece porque ela não acreditava que mereceria ser feliz e formar uma família. No entanto, nessa mesma época em que engravidou, estava morando no campo e convidou sua irmã para fazer-lhe companhia na nova casa. Ela sempre apresentou uma posição de proteção em relação à irmã, enviando dinheiro para o seu dote, garantindo sua educação e desejando que ela não soubesse de sua profissão moralmente duvidosa. Além disso, quando percebeu que iria morrer, Lúcia pediu a Paulo que se casasse com Ana, para assegurar que ela teria um bom futuro e seria feliz.

Assim, de alguma forma ela se projeta na irmã e quer realizar através dela o que não pôde fazer em sua vida. Apesar de Paulo se negar a casar com a menina, alegando que não podia amá-la dessa forma, ele afirma em seu relato que, após a morte de Lúcia, Ana foi feliz e ele cuidou dela como havia prometido. Mesmo com suas tentativas de projeções de realização em sua irmã ou inclusive em uma existência plena no céu, como diz em seus momentos finais, a morte aparece como a única solução possível para que Lúcia sofra as consequências de seus atos.

[...] à visão romântica do amor e à rigidez da ordem social que não reconhece a possibilidade do arrependimento. No romance, a mulher prostituída estava revelada em toda sua baixeza e punida inequivocamente. Nada de conhecer o amor, nada de casamento de consolação ou pôr no mundo um filho do pecado, como Carolina de As Asas de um Anjo. (DE MARCO, 1986, p. 185)

Desta forma, a moralidade previa que uma prostituta não poderia ser feliz, e, como a mesma personagem pensava, esse foi o destino que se cumpriu em sua vida.