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4 A perspectiva ontológica da educação e da ideologia

4.1 A perspectiva ontológica da educação

Nessa direção, os fundamentos ontológicos dos valores na educação devem ser tratados a partir de uma posição política e pedagógica concreta, e não da defesa abstrata da educação, do conhecimento, da autonomia dos alunos ou do desenvolvimento dos indivíduos em sua marcha para o esclarecimento. A fim de indicar alguns elementos que contribuam para a superação da dicotomia entre conhecimentos e valores sociais na teoria pedagógica, nos valeremos do referencial ontológico de Lukács e da perspectiva da historicidade do ser social, ainda que não nos dediquemos a indicar aqui particularidades históricas indispensáveis para tratar de problemas específicos. Do ponto de vista político, a posição aqui assumida é de adesão às bandeiras da classe trabalhadora em sua contraposição antagônica ao ponto de vista burguês, em todos os campos, do trabalho à política, da educação ao direito, da ciência à arte. Trataremos aqui das demandas pedagógicas a partir de uma perspectiva pedagógica crítica, que é a que é historicamente capaz de enfrentar o problema da formação moral da classe trabalhadora em seu contexto latinoamericano e brasileiro. Por isso, as referências críticas às lacunas que entendemos que existem hoje na teoria pedagógica não são colocadas aqui numa perspectiva academicista, mas sim como crítica ontológica em direção à transformação real do nosso estado de coisas.

Lukács não aprofunda nem desenvolve uma teoria sistemática sobre o complexo da educação propriamente, apenas indica seus traços essenciais, comuns a todas as formas particulares de educação em sentido amplo. Porém, no tratamento que dá aos diversos complexos sociais que compõe a totalidade do ser social é possível apreender o modo como ele entende a educação em sentido lato, isto é, sua perspectiva ontológica da educação. Para ele, a essência da educação “(...) consiste em influenciar os homens no sentido de reagirem a novas alternativas de vida do modo socialmente intencionado” (LUKÁCS, 2013, p. 178). Sendo que para Lukács os pores teleológicos secundários são ações que objetivam não mais transformar a natureza, mas sim a consciência de outros sujeitos, de modo a fazê-los agir conforme se julga adequado, é evidente que a educação cumprirá um papel central na reprodução social. Trata-se de uma mediação que cumpre uma função central porque é através da atividade educativa que se socializam conhecimentos, sobre a natureza e sobre a sociedade, e se forma os sujeitos de maneira que reajam do modo que se julga apropriado diante de novas situações e alternativas:

(...) o essencial da educação dos homens (...) consiste em capacitá-los a reagir adequadamente aos acontecimentos e às situações novas e imprevisíveis que vierem a ocorrer depois em sua vida. Isso significa duas coisas: em primeiro lugar, que a educação do homem – concebida no sentido mais amplo possível – nunca estará realmente concluída. Sua vida, dependendo das circunstâncias, pode terminar numa sociedade de tipo bem diferente e que lhe coloca exigências totalmente distintas daquelas, para as quais a sua educação – no sentido estrito – o preparou. (LUKÁCS, 2013, p. 176-177)

Fica evidente que se a educação “consiste em capacitá-los a reagir adequadamente”, o que se considera adequado vai variar enormemente de acordo com as classes sociais em presença, o tempo histórico, o lugar e os valores dos sujeitos, de modo que a educação não é, em sentido ontológico, necessariamente a expressão da emancipação ou do esclarecimento. Ela pode ser articulada com os mais diversos projetos a partir de valores e objetivos determinados, conforme a circunstância histórica. Essa perspectiva é certamente uma contribuição fundamental da compreensão ontológica da educação, qual seja, a ideia de que a educação é uma mediação social fundamental de persuasão para os mais diversos fins, que se articula às mais diversas finalidades, não necessariamente para a emancipação.

Situada a educação na totalidade da reprodução social ela cumprirá a função de legitimar determinadas concepções de mundo, conhecimentos e valores, convencendo os sujeitos a escolherem as alternativas que se julga as mais valorosas pelas consequências que trarão. Desse modo, a análise ontológica dos fundamentos da educação não a define em função do que seria mais apropriado a partir de determinado ponto de vista, mas subordina um projeto determinado de educação à compreensão de sua função social essencial, de modo que não se deixa confundir o papel ontológico da educação, sua realização real no chão da história e suas disputas, com aquilo que gostaríamos que ela fosse, com nossos desejos e projetos políticos.

Isso não significa que a definição de um projeto determinado de educação, de teoria pedagógica, de didática, de valores educativos não seja necessária, pois a classe trabalhadora não deve prescindir de projetos próprios em todos os campos37. No entanto, situar a educação em sentido ontológico significa ter em vista que um determinado projeto de educação - o que Lukács chamou de “plano”, uma perspectiva particular e orientada de educação, com um dever ser determinado – deve estar fundamentado na função social que a

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Tal como foi, por exemplo, a reorganização da educação após a Revolução Russa de 1917, com destacada atuação da revolucionária feminista Krupskaya e também de Lunacharsky, nomeado no pós- revolução como Comissário do povo para a educação.

educação cumpre na totalidade social, o que significa ter em conta suas especificidades e seus limites, e principalmente, ter em conta que a reprodução social em cada contexto exige determinados modelos de educação que reproduzam o que é hegemônico naquela sociedade. Isso implica reconhecer que a direção no qual o conhecimento é encaminhado na atividade educativa é sempre objeto de disputa entre classes e grupos sociais, jamais é a realização inequívoca da emancipação de indivíduos que obtém acesso ao conhecimento.

Por ocasião do fim da segunda guerra mundial, em 1947 Lukács chamava a atenção para as novas possibilidades que se abriam para as sociedades socialistas diante da derrota do fascismo e para a necessidade de se elaborar “planos”, isto é, reflexões aprofundadas que definissem projetos sistematizados para enfrentar na prática social da sociedade soviética os problemas próprios da cultura, da tradição, da ética, da religião, da nação:

O plano econômico é uma premissa e um fundamento indispensável de qualquer movimento cultural. Este movimento relaciona-se estreitamente com o problema da educação. Schiller, ao que me parece, foi o primeiro a afirmar que, para construir uma nova sociedade, seria necessária a existência de um novo homem. Esta convicção é ainda geralmente dominante na mentalidade burguesa e encontra hoje na Unesco uma agência ideológica. Mas todo marxista deve compreender que querer produzir ou educar o “homem novo” desta maneira é uma elucubração vazia ou uma demagogia inútil. Desta maneira, ignora-se o poder necessariamente ativo dos hábitos sociais, que Lenin tanto sublinhou, ignora-se que o que geralmente chamamos de educação em sentido estrito é tão somente uma pequena parte da efetiva educação de todo homem e que as formas e os conteúdos da vida cotidiana operam vigorosamente – às vezes, de modo determinante – sobre a formação interior, seja para o bem, seja para o mal. (LUKÁCS, 2007a, p. 61- 62)

Essas palavras de Lukács são cristalinas e plenas de elementos para situar a educação em perspectiva ontológica, ainda que este texto do ano de 1947 seja anterior a sua Estética e à Ontologia. Em primeiro lugar, qualquer “plano”, isto é, qualquer perspectiva pedagógica que paute a educação em um sentido determinado, deve levar em conta que esta cumpre uma função social que independe de nossos desejos e de nossos objetivos. Aliás, esse é uma constatação que advém da análise do pôr teleológico desde o trabalho, é próprio da estrutura da ação humana. Nesse sentido, a educação em sentido estrito, as diversas formas sistematizadas de educação formal e não formal, jamais podem ignorar que é apenas uma parte da educação de toda pessoa, sujeita a todo tipo de influência presente na sociedade, própria da educação em sentido amplo. Em segundo lugar, as formas particulares e

sistematizadas de educação devem sublinhar como fundamentais “o papel ativo dos hábitos sociais”, isto é, os valores, as crenças, as tradições, a compreensão simbólica do mundo própria de cada tempo e lugar. Talvez aqui resida o mais importante: não se trata de que a atividade educativa deva apenas reforçar aos hábitos e valores próprios de cada contexto, mas de ter clareza de que a socialização do conhecimento nunca se dá em abstrato, por isso é imperativo identificar na formação moral dos sujeitos reais quais são os elementos que se julga autênticos e quais são os inibidores diante dos objetivos que se pretende atingir. Isso significa que a mediação educativa que prescinde, ignora ou despreza os costumes e a moral própria de determinado contexto se torna, senão um fracasso por ingenuidade, “uma elucubração vazia ou uma demagogia inútil”. Isso é tão mais grave quando se trata da educação da classe trabalhadora e quando se ignora, em função de um ideal que se pretende atingir, o enorme potencial de elementos inerentes à sua formação moral concreta e seus valores reais38.

Assim, o sentido ontológico da educação nos indica que a mediação de caráter educativo nunca é a expressão abstrata da conscientização, do esclarecimento ou da ilustração universal, e sim um encaminhamento de determinados conhecimentos e de uma determinada concepção de mundo a partir de certos valores, que podem cumprir a função social de negar ou de legitimar determinadas relações sociais. A partir dessa perspectiva não é possível ignorar ou revogar o papel das valorações, justamente porque o ser social não é uma objetividade que responde espontaneamente às suas necessidades de modo invariável, como a natureza, mas é um ser que responde a demandas concretas a partir de alternativas através de suas objetivações: “A razão dessa irrevogabilidade das valorações baseia-se no fato de que todos os objetos do ser social não são simplesmente objetividades, mas sem exceção objetivações.” (LUKÁCS, 2013, p. 374)

Do ponto de vista ontológico, da especificidade do ser social, a socialização do conhecimento, em si, pode ser articulada a alternativas diferentes, a distintas concepções de mundo, no amplo espectro valorativo, moral e ideológico, da direita à esquerda. Não deve espantar a ninguém que os intelectuais burgueses, os filhos da burguesia financeira, industrial, comercial e agrícola tiveram e têm uma educação sistematizada empenhada no desenvolvimento de suas capacidades, através da apreensão de conhecimentos sistematizados, e devidamente articulada aos valores de sua classe: competência, meritocracia,

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Não por acaso, a definição de comunismo por Marx e Engels é precisamente: “O comunismo não é para nós um estado de coisas que deva ser instaurado, um Ideal para o qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o atual estado de coisas”. (MARX; ENGELS, 2007, p. 38)

individualismo, concorrência, desempenho. Da mesma forma, a formação dos trabalhadores para reagirem às alternativas do modo que se julga adequado pode ser articulada a esses mesmos valores, que são dominantes hoje, ou a valores de insubordinação, resistência, crítica, enfrentamento, coletividade e solidariedade de classe. Mas a realização dessa mediação e de seus objetivos, tanto em um caso como em outro, só pode se efetivar com profundidade se articular o conhecimento objetivo da realidade aos valores próprios dos hábitos sociais de cada contexto concreto, mesmo que seja para enfrentar elementos retrógrados presentes neles.

Um breve texto de Dermeval Saviani, “11 teses sobre educação e política”, presente no livro “Escola e democracia” (2008) evidencia a articulação entre educação e política e se concentra nas características mais essenciais delas. Como toda elaboração de caráter ontológico, é em si mesma insuficiente e demanda complementação histórica. Entretanto, é uma abstração razoável que não ignora que o caráter essencialmente mediador da educação pode ser encaminhado em variados sentidos valorativo, moral, ideológico, progressista ou conservador:

Uma análise, ainda que superficial, do fenômeno educativo nos revela que, diferentemente da prática política, a educação configura uma relação que se trava entre não-antagônicos. É pressuposto de toda e qualquer relação educativa que o educador está a serviço dos interesses do educando. Nenhuma prática educativa pode se instaurar sem este suposto. Em se tratando da política, ocorre o inverso. A mais superficial das análises põe em evidência que a relação política se trava, fundamentalmente, entre antagônicos. No jogo político defrontam-se interesses e perspectivas mutuamente excludentes. Por isso em política o objetivo é vencer e não convencer. (SAVIANI, 2008, p. 66)

Além disso, este texto tem a virtude de não identificar a especificidade ontológica da educação com outros complexos sociais, e diferenciando-os, indicar a relação que eles estabelecem entre si:

Com as considerações anteriores espero ter esclarecido a não-identidade e, em consequência, a distinção entre educação e política. Trata-se, pois, de práticas diferentes cada uma com suas características próprias. Cumpre, portanto, não confundi-las, o que redundaria em dissolver uma na outra (...). Entretanto, se se trata de práticas distintas isso não significa que sejam inteiramente independentes, dotadas de autonomia absoluta. Ao contrário, elas são inseparáveis e mantêm relação íntima. (SAVIANI, 2008, p. 67)

Fica evidente que, sendo a educação uma práxis na qual se pretende convencer os outros a agirem do modo que se considera adequado, no capitalismo ela pode ser articulada a

posições políticas diversas a depender dos interesses de cada classe, de modo que a educação sempre tem o que Saviani chama de uma dimensão política: “a dimensão política da educação consiste em que, dirigindo- se aos não-antagônicos a educação os fortalece (ou enfraquece) por referência aos antagônicos e desse modo potencializa (ou despotencializa) a sua prática política” (SAVIANI, 2008, p. 68). Essa dimensão política da educação, que potencializa ou despotencializa a prática, implica sempre um encaminhamento valorativo, moral e ideológico do conhecimento.

Diante da relevância dessa questão, não é razoável que na teoria pedagógica crítica permaneça secundarizado o problema da formação moral, na medida em que a formação educativa se dá sempre a partir de determinados valores. Aprofundar essa questão de que a educação pode potencializar ou despotencializar a prática política de determinado grupo é fundamental para superar o idealismo segundo o qual o acesso ao conhecimento sistematizado leva à formação de uma individualidade para si, leva à ilustração e ao esclarecimento.

É evidente que, no contexto histórico da sociedade burguesa, se é “pressuposto de toda e qualquer relação educativa que o educador está a serviço dos interesses do educando”, este pressuposto é negado pela formação para o apassivamento, para o conformismo, para a aceitação ao que está posto no atual estado de coisas. Ou seja, os educadores não estão, necessariamente, a serviço do educando, pois quase nunca reúnem condições objetivas para formá-lo integralmente, para fazê-lo compreender a realidade natural e social com profundidade, para demonstrar a necessidade de enfrentamento das mais diversas formas de injustiças sociais. Portanto, hoje a educação tem um caráter notadamente político, cumpre uma função ideológica de legitimação da sociedade de classes. É, pois, uma ferramenta política indispensável, à dominação e à resistência. Mais uma vez se mostra aqui a indispensável apreensão dos fundamentos ontológicos: tal como o modo de produção capitalista inverte a relação entre fundante e fundado na relação valor de uso e valor de troca, onde o central se torna a troca e não a satisfação das necessidades sociais possibilitada pelo valor de uso, na educação capitalista ocorre a mesma inversão. O pressuposto ontológico de que o educador está a serviço do educando é historicamente invertido, pois mesmo que o projeto dos educadores seja educar para a emancipação, esta forma de sociabilidade exige conhecimentos e valores que tornem esta reprodução social possível, com todas as suas consequências.

Diante disso, é preciso que a teoria pedagógica crítica no Brasil evidencie o que é próprio da relação não-antagônica entre educador e educando na formação da classe

trabalhadora e o que é próprio da relação não-antagônica entre educador e educando na educação da burguesia. O que em cada contexto particular os fortalece, o que os potencializa e o que os enfraquece e os despotencializa. Isso significaria um salto na abstrata defesa do conhecimento sistematizado para um patamar de articulação entre o conhecimento sistematizado e os elementos da moral própria da perspectiva do trabalho em seus valores mais autênticos, como a insubordinação e a solidariedade de classe.

Fica explícito a partir da análise de “11 teses sobre educação e política” que, sobretudo no capitalismo, a educação nunca se realiza sem uma dimensão política, ideológica, valorativa, pois é sempre uma mediação que se estabelece em uma ou outra direção, que é objeto de disputa. Não é apenas um processo que vai do espontâneo ao elaborado, do caótico ao sincrético, do popular ao erudito sem que a ele se articulem determinados valores sobre as relações sociais tais como estão. Mesmo os conhecimentos sobre a natureza vão demandar determinados valores sociais, por exemplo, nossa relação com a natureza pode ser entendida simplesmente como a história da superioridade “do homem” sobre a natureza, até a crítica moralista ao uso individual da água ou um entendimento mais radical sobre as consequências da produção em escala industrial sem qualquer tipo de regulação. Em se tratando de atividades educativas, os conhecimentos sobre as chamadas ciências naturais também demandam valores sobre esta sociedade. É muito comum, por exemplo, que o tratamento pedagógico sobre alimentação saudável, que em si é cientificamente fundamental, fomente valores pejorativos por pessoas com corpos fora dos padrões estéticos.

Estas direções valorativas correspondem sempre, na prática, à legitimação de determinados interesses em disputa. Isso significa que podemos através da atividade educativa - que envolverá questões de didática, forma, conteúdo e valores -, por exemplo, legitimar a forma latifúndio ou denunciar o genocídio das populações indígenas sua cultura, defender a produção de alimentos orgânicos pela agricultura familiar ou tratar abstratamente de alimentação saudável, reforçando estereótipos que legitimam a padronização ideal dos corpos. Poderíamos dar uma enormidade de outros exemplos para demonstrar que todo conteúdo, todo conhecimento científico, filosófico, artístico, sistematizado ou não, pode ser encaminhado de modo progressista ou conservador. Esses elementos nos revelam a importância de tratar de valores na educação a partir de uma perspectiva ontológica.

Para que ela se aprofunde é indispensável acessar a elaboração de Lukács acerca do sentido ontológico da Ideologia, que problematiza a concepção teoricista de que a disputa pelo conhecimento se dá apenas em termos binarizados entre correto ou falso, verdade ou

mentira, espontâneo ou sistemático, senso comum ou conhecimento científico, desprovidos de valores e disputas históricas concretas.