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Aproximações e conflitos entre cultura popular e indústria cultural no hip hop

5 A legitimidade histórica da cultura popular e a potencialidade educativa do hip hop

5.2 Aproximações e conflitos entre cultura popular e indústria cultural no hip hop

Importa evidenciar neste momento a relação que a cultura popular estabelece com a cultura de massas ou indústria cultural, com a qual ela hoje quase que necessariamente se vincula, na medida em que na sociedade das mercadorias toda manifestação artística que pretenda ter circulação, precisa, de alguma forma, ser mediada em algum nível pela indústria cultural, seja por gravadoras, rádios, programas de televisão, canais de youtube ou as diversas plataformas digitais pela qual se acessa a arte na internet hoje. Nesse sentido, permanece relativamente válida a afirmação de Bosi:

A exploração, o uso abusivo que a cultura de massa faz das manifestações populares, não foi ainda capaz de interromper para todo o sempre o dinamismo lento, mas seguro e poderoso da vida arcaico-popular, que se reproduz quase organicamente em microescalas, no interior da rede familiar e comunitária, apoiada pela socialização do parentesco, do vicinato e dos grupos religiosos. (BOSI, 1992, p. 329)

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O disco, chamado de mixtape por ter baixo orçamento e distribuição praticamente direta do artista com o público, se chama “Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe...” (Emicida, 2009).

É bem verdade que a cultura popular precisa se estabelecer como cultura de resistência para não entrar na roda viva da indústria cultural brasileira e sua enorme homogeneização, que se comporta como uma franquia da indústria cultural estrangeira, desprovida de mensagem original. Evidentemente, há uma parte dessa produção independente que não escapa das exigências do mercado, notadamente de um romantismo piegas ou de mensagens abstratas de motivação. No entanto, há fatos novos e a referência a Emicida aqui é indispensável. Mesmo saído do suburbano Jardim Fontalis na periferia paulistana, ele escapou da subordinação à indústria cultural tradicional fundando com seu irmão, Evandro Fióti, entre outras pessoas, a gravadora Laboratório Fantasma62. Vindo das batalhas de Mc’s, que são disputas de rua organizadas de forma autônoma na qual um ou uma Mc tenta vencer outro ou outra, improvisando versos a partir de um tema previamente estabelecido, Leandro Roque de Oliveira se intitulou “Emicida”, ou seja, “matador de Mc’s”, em função de sua habilidade de improviso, que lhe deram popularidade neste meio ao vencer as batalhas63. Fundada em 2009, a “Laboratório Fantasma” foi criada para concretizar a independência da sua arte e de seus pares. Segundo nota de seu próprio site:

Em 2014 a empresa, além de realizar turnês pelo exterior, trouxe artistas ao Brasil, como Valete (Portugal) e Akua Naru (EUA/ALE). Em dezembro, para celebrar seus cinco anos de existência, a Laboratório realizou a primeira edição do festival Ubuntu, com Boogarins, Féfé, Akua Naru, Céu, Rael e Emicida. Bem-sucedido, o evento já tem segunda edição garantida. Em 2015, foi a vez de entrar em novos ramos de atuação: o lançamento digital do novo trabalho do cantor Chico César, “Estado de Poesia”, do álbum Encarnado (2014), de Juçara Marçal, e de toda a obra do grupo Metá Metá, além da venda de shows de Kamau e artistas internacionais. (<http://www.labfantasma.com/noiz> - Acesso em 04 abr. 2018)

Portanto, a citada afirmação de Bosi permanece apenas relativamente verdadeira, porque a cultura popular não mais apenas “se reproduz quase organicamente em microescalas, no interior da rede familiar e comunitária, apoiada pela socialização do parentesco, do vicinato e dos grupos religiosos”. A organização de produtoras independentes como a Laboratório Fantasma tornou real a possibilidade de a cultura popular se inserir no cenário cultural sem precisar pedir licença às grandes gravadoras ou pagar “jabá”, que é o pagamento que se faz às rádios para que toquem determinados artistas, que interessam às grandes gravadoras. É evidente que ainda permanecem tanto a produção popular que é isolada na

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A visão de Emicida sobre as grandes gravadoras é registrada em: “Gravadoras crêem que a sorte gera um Emicida/ Eu creio que isso também é o que as mantém com vida/ Fomos lebre e tartaruga na corrida/ Normal, até a tartaruga mandar tchau” (Zica, vai lá – Emicida, 2013).

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produção-consumo direta, dos artistas de rua, por exemplo, como também daqueles artistas, oriundos da classe trabalhadora, mas que se subordinam aos meios, valores e castrações da indústria cultural para difundir sua arte de modo amplo. Porém, a possibilidade de artistas que se consagraram de maneira independente se estabelecerem de modo autônomo, digamos, com seus próprios meios de produção, é uma novidade histórica importante, na medida em que eles não precisam abrir mão de seus valores e de seus pontos de vista morais, ideológicos, políticos. É claro que se trata também de pontos de vista difusos, contraditórios, que incorporam elementos de marketing, entre outras coisas, portanto, não se trata de obras totalmente independentes, já que se realizam neste chão histórico e social, e não no mundo das ideias puras.

Este tipo de iniciativa tornou possível, por exemplo, que a Laboratório Fantasma tenha feito o lançamento digital do disco de Chico César, “Estado de Poesia” (2015), que lançou obras como “Reis do Agronegócio”, que é um manifesto contra os latifundiários e as consequências da produção agrícola baseada em concentração de terras, monocultura, extermínio de populações indígenas, uso de agrotóxicos e exportação de commodities, ou seja, um retrato preciso e crítico do colonialismo brasileiro dependente e tardio. Os últimos versos, afirmam: “Eu me alegraria se afinal morresse/ Esse sistema que nos causa tanto trauma”. Portanto, a criação de ferramentas que permitam a circulação da produção cultural dentro do mercado formal sem precisar se subordinar a grandes gravadoras é um fato interessante, principalmente como produto do movimento hip hop nacional.