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3 Valores sociais, educação e teorias pedagógicas

3.1 Valores no trabalho e valores sociais na educação

Como vimos, no processo de trabalho os valores se baseiam fundamentalmente entre útil e inútil, que balizam a escolha entre alternativas tendo em vista um dever-ser desejável que satisfará uma necessidade. Objetivado o produto como valor de uso, ele terá valor econômico se não for produzido para o próprio consumo imediato e entrar no movimento capitalista das mercadorias. Para além da transformação da natureza, nas práxis puramente sociais os valores sociais superam largamente o espectro útil-inútil, de modo que qualquer objeto, processo ou fenômeno pode ser valorado positiva ou negativamente: a liberdade pode ser valorizada ou desvalorizada, a violência pode ser valorizada ou desvalorizada, a escola pode ser valorizada ou desvalorizada, os povos indígenas podem sem valorizados ou não, o latifúndio pode ser valorizado ou não, as lutas de resistência podem sem valorizadas ou não. Portanto não é possível colocar os valores sociais em uma tabela, pois qualquer objeto, processo ou fenômeno pode ser valorizado ou desvalorizado socialmente.

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A obra “Fontes da pedagogia latino-americana: uma antologia” (STRECK, 2010) traz uma série de textos sobre teóricos que pensaram a educação a partir de um ponto de vista latino.

Tal como no trabalho, na atividade educativa o conhecimento também é sempre encaminhado na direção de determinada alternativa, em determinada direção valorativa. Sendo relações efetivamente sociais, não são marcadas apenas pelo critério de utilidade como no trabalho, mas principalmente por aquilo que julgamos valoroso ou desvaloroso. Os valores sociais adquirem enorme relevância na medida em que um traço essencial das práxis sociais é que seu objeto é a consciência de outras pessoas:

Naturalmente a decisão alternativa dos homens não se detém no nível do simples trabalho, pois pudemos ver justamente que os pores teleológicos que não servem ao metabolismo com a natureza, mas estão direcionados para a consciência de outras pessoas, revelam nesse tocante a mesma estrutura e dinâmica. E por mais complexas que sejam as manifestações vitais produzidas pela divisão social do trabalho, até as mais elevadas realizações espirituais dos homens, as decisões alternativas continuam funcionando como fundamento geral de todas elas. Naturalmente, isso representa apenas uma preservação extremamente geral e, por isso, abstrata da peculiaridade da gênese. Tanto o teor como a forma estão continuamente sujeitos a mudanças qualitativas revolucionárias; por essa razão, eles jamais podem nem devem simplesmente ser “derivados” da forma originária da gênese como simples variantes desta. Porém, o fato de que essa forma originária fique preservada em todas as mudanças é sinal de que, nesse caso, trata-se de uma forma básica fundamental e elementar do ser social (...). (LUKÁCS, 2013, p. 372)

Garantidas as mudanças qualitativas, tanto de conteúdo como de forma, pode-se afirmar que essa estrutura essencial é formada, fundamentalmente: pelo reconhecimento das necessidades concretas, o conhecimento da objetividade e das possibilidades de transformá-la, a definição de um dever-ser (os objetivos, os fins), os valores e as valorações entre alternativas possíveis para realizar um dever-ser, a objetivação prática e a ulterior valoração das objetivações já realizadas. Estes elementos permanecem nas atividades puramente sociais, que são marcadas pelas alternativas entre decisões de caráter ético, moral, político, ideológico:

Quando se diz que a decisão do homem primitivo de, ao afiar as pedras, manter a mão no lado superior direito e não no inferior esquerdo é uma decisão alternativa tanto quanto a decisão de Antígona de sepultar o seu irmão apesar da proibição de Creonte, não só se constatou uma propriedade abstrata comum de dois complexos fenomênicos de resto totalmente heterogêneos, mas também se expressou algo que atinge significativos aspectos em comum de ambos. (LUKÁCS, 2013, p. 373)

Operando, portanto, com esta que permanece a estrutura essencial da práxis a partir da obra madura de Lukács, “Para uma ontologia do ser social” (2012, 2013), podemos

constatar que a análise da estrutura íntima da atividade social é plena de consequências para a compreensão da reprodução social, de suas disputas, que deve interessar vivamente à teoria pedagógica. É de particular relevância não perder de vista o fato de que a práxis humana, singular e coletiva, se realiza sempre através da decisão entre alternativas, e essa constatação traz algo da maior importância à teoria pedagógica, notadamente às chamadas perspectivas críticas. Em primeiro lugar, que a formação para a consciência crítica nunca é um fenômeno puramente gnosiológico, pois podemos valorar de modos muito diferentes determinado conhecimento sobre determinados fatos. Em segundo lugar, e consequentemente, o fato de conter alternativas distintas significa que a práxis social não é, jamais, meramente a consequência prática de um conhecimento prévio:

Inquestionavelmente, o pôr do fim é uma decisão alternativa, mas a sua realização, mais precisamente, tanto a preparação intelectual quanto a própria execução fático-prática, de modo algum é um evento simplesmente causal, a consequência causal simples de uma resolução prévia. (LUKÁCS, 2013, p. 371)

Não é vã a insistência de Lukács no caráter alternativo da práxis. Toda a história da filosofia até hoje é marcada por um tratamento epistemologizante, gnosiologizante da práxis, que é reduzida à “consequência causal simples de uma resolução prévia”, o que traz vícios lógico-formais à nossa forma de compreender o mundo. Essa tradição lógico- formal oculta o fato de que a objetivação é uma realização que se dá diante de necessidades concretas e conhecimentos apreendidos, que se encaminha sempre a partir de alternativas concretas, escolhidas a partir de determinados valores. Talvez isso explique porque a questão das valorações e dos valores na teoria pedagógica, ou é simplesmente ignorada ou se confunde com a virtude, com o bem, com a valoração correta baseada em um conhecimento correto. Em suma, o problema da ausência de um tratamento ontológico e dialético dos valores na pedagogia está intimamente vinculado ao fato de que se ignora a marcante presença das alternativas em toda práxis:

Não é preciso uma análise detida – cada experiência cotidiana o confirma – para saber que, tanto na preparação intelectual de um trabalho, seja ele científico ou meramente prático-empírico, quanto em sua execução fática, sempre estamos às voltas com toda uma cadeia de decisões alternativas. (...) E essa estrutura é válida em todos os âmbitos dos pores teleológicos, o que cada pessoa pode observar em qualquer conversação; pode-se até ter previamente uma intenção geral, que se quer alcançar com o auxílio do diálogo, mas cada frase dita, seu efeito ou a ausência de efeito, a réplica,

eventualmente o silêncio do interlocutor etc. produzem forçosamente uma série de novas decisões alternativas. (LUKÁCS, 2013, p. 371)

A presença das alternativas na práxis é de enorme relevância para a teoria pedagógica principalmente em função da relação entre duas categorias fundamentais para a pedagogia: conhecimento e valores. Na medida em que a práxis não é simplesmente uma laboratorial e inequívoca aplicação de conhecimentos científicos, mas é formada por ações, escolhas entre alternativas fundadas em determinados conhecimentos valorados, a relação entre conhecimentos e valores na formação humana é central. Falta, porém, ao debate pedagógico brasileiro aprofundar a questão sobre como se dá a articulação entre eles na prática educativa diante dos problemas que se pretende enfrentar. De modo dualista e binarizado, em geral se põe acento em um ou outro, ou no conhecimento ou nos valores, ao invés de se buscar a função social que a unidade entre eles cumpre ontologicamente na práxis social em suas diversas expressões, sendo o trabalho sua forma fundante. Tendo em vista problematizar essas dicotomias no pensamento pedagógico brasileiro, chamaremos de “centralismo dos valores” a ênfase nos valores que são desarticulados do conhecimento e de “centralismo do conhecimento” a ênfase no conhecimento que são desarticulados dos valores.