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A pesquisa científica como produção ideológica

Ao trazer à tona a discussão sobre a produção científica como produção ideológica, Minayo (2002, p. 14) afirma que “. . . não é apenas o investigador que dá sentido ao seu trabalho intelectual, mas os seres humanos, os grupos e as sociedades dão significado e intencionalidade a suas ações e a suas construções”. Esta afirmação está alinhada com a nossa forma de perceber os discursos científicos, principalmente quando estes discursos decorrem de produções do campo das ciências sociais. Isto porque entendemos que a subjetividade do discurso científico se materializa em ideologias indissociáveis do pesquisador e, por

conseguinte, de sua produção. André, Henriques & Alves (2005, p. 8) afirmam que “. . . acreditar que a ciência é exclusivamente objetiva é por si só assumir uma postura ideológica...” – esta postura é completamente contrária à concepção e ao raciocínio desenvolvidos nesta pesquisa.

Empregado inicialmente no sentido político por Marx ao se referir à contraposição de ideias dos burgueses e trabalhadores, o sentido clássico da “ideologia” denota consciência deformada, ou seja, uma ilusão oriunda do discurso da classe dominante para sobrepujar a massa. Todavia, atualmente o termo possui distintas acepções. Em Chauí (2001), a ideologia é definida historicamente e se aproxima da ciência na medida em que o conhecimento da verdade científica não está isolado do mundo e dos fenômenos sociais. Dessa maneira, além de ser o resultado de um processo sistemático de construção do conhecimento, a investigação científica é expressão de pensamentos e percepções de um indivíduo sobre o objeto/fenômeno em estudo. O cientista está imerso na realidade social circundante, e a observação dos procedimentos metodológicos da ciência, as perguntas que elabora, bem como a delimitação do objeto/fenômeno em estudo e as interpretações desenvolvidas, sofrem influência da sua forma de ver o mundo, seus valores e sua história de vida, impossibilitando a constituição de uma ciência completamente neutra.

A visão de mundo do indivíduo está atrelada à sua linguagem, e é por meio dessa linguagem que suas ideias se externalizam, constituindo a tessitura da formação discursiva. Para Fiorin (1993, p. 32) “a formação ideológica impõe o que pensar, uma formação discursiva determina o que dizer” e, desta maneira, elas se completam, se delimitam e passam a representar a visão de mundo de um grupo de indivíduos ou entidade social. Franco (2004) e Cardoso (2006) também considera que a linguagem explicita o pensamento, é a forma de perceber as situações e a opinião que se formula sobre um objeto ou circunstância. Desta forma, entendemos que existe um currículo oculto em contínua formação, gerado com base nas relações sociais estabelecidas. Pois à medida que o indivíduo interage socialmente, acaba por impregnar o outro com suas concepções ideológicas, da mesma maneira que é impregnado por aquelas inerentes dos indivíduos/grupos. E seus enunciados refletem posicionamentos solidificados ou alterados por essas relações – e isto se reflete também nos textos científicos que ele produz.

Campos (2012) considera que a produção do conhecimento é um instrumento estabelecido com base em posturas ideológicas e políticas. Portanto, esse conhecimento científico é um sistema ideológico pelo qual a humanidade apreende o mundo. Pode-se afirmar que, na perspectiva dos autores anteriormente citados, todo o conhecimento

cientificamente elaborado encontra-se comprometido e impregnado de interesses sociais, portanto: “... não há uma separação, como queriam muitos autores, entre ciência e ideologia” (Fiorin, 1993, p. 29). A pesquisa social é produto de um processo científico que envolve escolhas e julgamentos constituídos com base em uma postura ideológica, ou seja, uma maneira de pensar e conceber o real, a qual é intrínseca ao homem enquanto ser social.

Para Eagleton (1997), a ideologia pode ser compreendida como um texto marcado por distintas histórias e concepções, impregnadas de diferentes fios conceituais. Complementarmente, podemos afirmar que o cientista produz um discurso que sofre influências ideológicas, porque suas apreciações acerca dos achados são justificadas com base em argumentos marcados pelo poder de convencimento. Desta maneira, a ciência não está livre dos aspectos ideológicos intrínsecos ao indivíduo. A opinião do pesquisador e a sua impressão acerca dos fenômenos passam a ser respeitadas cientificamente por meio da sistematização investigativa inerente ao processo científico. Essa investigação condensa um conhecimento que emana do objeto – conhecimento objetivo –, por conseguinte, as reflexões decorrentes ultrapassam o senso comum.

A ciência é, pois, uma ideologia inteligente à medida que busca depurar o real mediante instrumentos científicos, sem negligenciar os próprios interesses (Demo, 1995). O autor a apresenta como fenômeno inerente às ciências sociais por ser produto histórico construído por atores políticos não neutros – diz-se que a ideologia não é suprimida pela ciência, mas manifestada por meio dela de maneira escamoteada, controlada. Para Chauí (2001), os resultados da pesquisa são verdades circunstanciadas historicamente, as quais são apresentadas como dogmas ou criticamente por meio das suas bases. Logo, da sua particularidade e dos interesses a que servem. A autora ainda descreve a ideologia como um corpo sistemático de representações e de normas que nos “ensinam” a conhecer e a agir. A sistematicidade e a coerência ideológicas nascem de uma determinação muito precisa: o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lógica da identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade para, por meio dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada.

Apreende-se que o pensamento ideológico compõe-se de maneira ordenada e busca a universalização, de maneira próxima à elaboração do conhecimento científico. A reprodução da ideologia constitui consenso e poder, os quais, posteriormente, tomam forma de hegemonia (van Dijk, 2008). Entretanto, o autor ressalta que as práticas e instituições no exercício e reprodução da ideologia não se confundem com ela em si. A ideologia é, pois, uma forma de

cognição social.

Assim, a ideologia aqui discutida quer expressar “... uma posição que o sujeito toma na vida em relação às coisas que faz. E a pesquisa é uma das maneiras que ele vai buscar para firmar, para dar maior validade a esta sua posição” (van Dijk, 2008, p. 48). Trata-se, especificamente, de uma ideologia expressa no conhecimento, nas opiniões e nas representações sociais, desvelada na produção científica. Segundo esse autor, essa estrutura ideológica se fundamenta em metas, princípios e valores proeminentes para a sociedade, os quais são selecionados, combinados e aplicados de maneira que acabam por promover a percepção, interpretação e ação das práticas sociais, favorecendo aos interesses de um grupo (membros de formações ou instituições sociais).

A sociologia aponta que a sociedade se autoproduz de forma perene, da mesma maneira que seus processos e produtos. A ciência, como produção humana, também é recriada de diversas formas na sociedade moderna. É dessa maneira que ela origina o conhecimento científico. Para Morin (2005, p. 8) “a ciência é ... complexa porque é inseparável de seu contexto histórico e social”. Tal ideia se torna ainda mais significativa quando atrelada à ciência que se produz na área das humanidades e as ciências sociais. Todavia, o desenvolvimento científico precisa imperativamente das seguintes condições: garantir nas instituições e comissões científicas a sustentação e desenvolvimento do pluralismo teórico (ideológico, filosófico) e tolerar/promover/proteger os desvios no seio dos programas e instituições (Morin, 2005). Percebemos que Morin traz um discurso que incita à pluralidade de ideias e de concepções, à diversidade, à transdisciplinaridade e à autonomia como elementos essenciais à construção do conhecimento científico.

Conforme Morin (2005, p. 26), “o conhecimento científico está em renovação desde o começo deste século”; essas mudanças se dão, em geral, por mudanças paradigmáticas promovidas pelas revoluções científicas. Todavia, muito além da extensão e do crescimento, o conhecimento científico se dá por meio das transformações e rupturas, as quais o projetam de um estado para outro, de uma teoria para outra, há efemeridade e contingência no saber científico. A propriedade mutante deste saber se integra à concepção contemporânea de hegemonia apregoada por Laclau & Mouffe (1987) que é sustentação teórica desta tese.

Schwartzman (1981; 2002) traz uma discussão que merece a nossa reflexão. O autor afirma que a politização exacerbada do conhecimento científico gera frustração por parte dos intelectuais, visto que se torna uma ameaça ao próprio campo, corrompendo a autonomia da atividade intelectual. O autor ressalta que o controle da atividade científica supõe controle dos cidadãos por parte do Estado. Entende-se, pois, que só a tomada de consciência pode, de fato,

permitir a percepção daquilo que tem sido considerado como marginal e hegemônico no âmbito da ciência.

Já Patto (2006) discorre sobre a relação, explícita ou implícita, que existe entre ciência e ideologia, bem como sobre a desigualdade social, presente nos discursos que são definidos como politicamente neutros, mas que para o autor são instrumentos de exercício do poder, oriundos de uma sociedade dividida, desigual e injusta. Os programas de fomento e políticas relacionadas à ciência são a materialidade das ideias e planos que permeiam os objetivos do Estado. Os órgãos e instituições ligados à ciência no Brasil, a exemplo dos programas de pós- graduação, acabam por replicar tais planos na medida em que se enquadram no panorama de ciência imposto (principalmente em relação às temáticas de pesquisa). Daí a importância da idiossincrasia e formação ideológica para constituição de um movimento contra-hegemônico.

Morin (2005, p. 36) afirma que “a recuperação do controle intelectual das ciências pelos cientistas necessita da reforma do modo de pensar, que, por sua vez, depende de outras reformas, havendo naturalmente, interdependência geral dos problemas”. O autor considera que a escola e a universidade são os responsáveis pelos imprintings, os quais atuam na maneira de pensar e agir enquanto cientista – os que sofreram menos imprinting são considerados dissidentes ou discordantes. Entendemos que hegemonia sempre existirá como parte do processo social e é necessária para o estabelecimento da ordem.

Apregoa-se que em ciência é discutível, e isto não se apresenta como uma fraqueza, mas uma preciosa oportunidade de construção em função das múltiplas abordagens e metodologias e impossibilidade de comportamentos idênticos em função da mesma experiência (Richardson, 1999; Martins & Theóphilo, 2009). Precisa-se de produções que criem ideias, sugiram alternativas, procurem consequências acerca do uso de procedimentos junto aos investidores, gestores e outros usuários.

É nosso interesse investigar as ideologias que emergem da argumentação do discurso científico proferido pelos artigos científicos da área contábil, porque acreditamos que esse discurso pode contribuir para a marginalização de discussões imprescindíveis à área. Essa ideologia contribui para uma identidade de pesquisa vinculada à área contábil; assim, acreditamos ser significativo compreender a concepção do termo identidade.