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4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

4.1 A Pessoa com Deficiência e a Vulnerabilidade do Consumidor

Nesta seção discutiremos qual a compreensão que os participantes da pesquisa tem acerca do conceito de vulnerabilidade do consumidor e se eles se identificam como vulneráveis no ambiente de varejo, considerando que a vulnerabilidade do consumidor é um estado multidimensional (KAUFMAN-SCARBOROUGH; CHILDERS, 2009) resultante de um desequilíbrio nas interações estabelecidas em um mercado ou determinado contexto de consumo (BURGHARDT, 2013).

Embora possamos inicialmente assumir que os participantes da pesquisa não estão vulneráveis uma vez que acessam e navegam o ambiente de supermercado pelo menos uma vez por mês, esse pensamento é simplista e parte de uma compreensão externa que ignora particularidades dessa navegação, bem como desmerece fatores ambientais que podem causar,

em algum nível, dependência e impotência nesses consumidores. O entendimento de como essas pessoas compreendem o conceito e se relacionam com ele pode ser útil para dimensionar a vulnerabilidade real, que, de acordo com Rinaldo (2012), surge da interação entre estados individuais, características individuais e condições externas, sendo experienciada de fato, ao contrário de vulnerabilidade percebida.

Ao serem questionados acerca da compreensão do conceito de vulnerabilidade do consumidor, os participantes o associaram à impossibilidade de atingir um objetivo específico, à falta de autonomia, à dependência de outras pessoas e a um estado de fragilidade. A relação do conceito à incapacidade de atingir um objetivo ou de não ter autonomia, está consonante com o conceito de Ringold (2005), que relaciona a vulnerabilidade com a incapacidade ou dificuldade de „navegação‟ em um determinado ambiente. Para o autor é necessário que o consumidor conheça os seus objetivos e tenha recursos, como conhecimento, habilidades e liberdade para atingí-los.

Vulnerável é para mim o sentido de não conseguir fazer as coisas, de não conseguir atingir o objetivo, a vulnerabilidade nesse sentido, que não está tendo autonomia de fazer aquilo... na minha cabeça... vulnerabilidade no sentido de acessibilidade (...) Mas eu digo que vulnerabilidade está para autonomia. (S3, Turismóloga, 52 anos). Vulnerável é uma pessoa frágil, que precisa de cuidados ... pisando em ovos com essa pessoa. Acho que é uma pessoa muito frágil... (S12, Bióloga, 41 anos).

Vulnerável é, como eu falei pra você, chego no supermercado, vou na prateleira e não tenho como pegar a mercadoria, pra mim isso é estar vulnerável, eu não tenho acesso àquela prateleira, porque está alta. Certas coisas eu não posso pegar, isso é estar vulnerável, eu fico até chateado, porque eu quero ser um cidadão como qualquer um, mas eu não posso chegar lá, eu tenho que pedir ajuda, eu não faço questão em pedir ajuda, mas seria bom se eu não precisasse pedir ajuda. Até nos caixas 24 horas (que ficam dentro do supermercado), a gente chega lá e o acesso é ruim, às vezes tem que dar a senha pra turma mexer no cartão da gente. Isso não existe. (S8, Atleta, 54 anos).

Os participantes compreendem a vulnerabilidade como resultante da interação entre a sua condição biofísica e o modo como elementos da dimensão física do supermercado estão dispostos de modo a causar dependência, impactando a autonomia para atingir objetivos (COMMURI; EKICI; 2008).

Outro aspecto apresentado pelos sujeitos de pesquisa diz respeito à instabilidade, uma vez que as condições para acesso ao consumo dessas pessoas nem sempre estão em um espectro de estabilidade ou previsibilidade.

Vulnerável é uma parte que você está sujeito a sofrer qualquer tipo de instabilidade, qualquer tipo de penalidade. (S9, Operador de Telemarketing, 40 anos).

De acordo com Ringold (2005) o estado de impotência surge da impossibilidade de navegar por um ambiente, assim, estar ou não em situação vulnerável depende de interações socioambientais. Logo, mesmo que frequentem o mesmo supermercado, podem experienciar vulnerabilidade uma vez que não interagem sempre com os mesmos elementos sociais, que em muitos casos são compostos por outros consumidores que não estão tão preparados ou comprometidos para prestar algum serviço. No trecho a seguir, S1 trata da instabilidade e relatividade causada pela dependência de outros:

Depende da pessoa, da acessibilidade da pessoa que está no momento, tudo depende, não é uma coisa exata. Não é exato que todo supermercado vai me tratar bem, não é exato que todo supermercado vai me tratar mal, não é exato que todo supermercado vai ser acessível, tudo depende, depende da situação, da hora, das pessoas, da boa vontade, do humor, tudo depende, tudo pode acontecer. (S1, Estagiário, 21 anos).

Quando questionados se se identificam como vulneráveis no supermercado, os participantes responderam:

Me sinto. Você já imaginou chegar em uma loja, querer olhar alguma coisa e não poder entrar? Porque não tem rampa, é degrau. E até as próprias pessoas, quando a gente chega, não são todas, mas olham achando que não temos condição financeira para poder consumir esses produtos. (S4, Pedagoga, 53 anos).

O S4 afirma se sentir vulnerável, uma vez que se depara com barreiras arquitetônicas, como a falta de rampas, e atitudinais, resultantes de estigmas atribuídos à usuários de cadeiras de rodas, que impedem que o ambiente seja acessado ou, em casos de acesso, que a oferta de serviços ocorra de modo satisfatório.

Já a participante S12 declara que se sente vulnerável não só no supermercado, mas a partir do momento em que sai de casa e compreende que essa sensação pode acontecer com qualquer um, em consonância com a ideia de que todas as pessoas podem, em algum momento, experienciar vulnerabilidade (BAKER; GENTRY; RITTENBURG, 2005; SHULTZ; HOLBROOK, 2009; BAKER; MASON, 2011; BRODERICK, et al. 2011).

Me sinto vulnerável a partir do momento em que saio de casa, porque a gente já está sujeito a acontecer qualquer coisa. Mas não mais ou menos do que qualquer outra pessoa, eu acho que todo mundo pode passar por uma situação que a deixe vulnerável. (S12, Bióloga, 41 anos).

Outro ponto trata da variação do sentimento de vulnerabilidade, uma vez que os indivíduos não são iguais e, além de diversificar em questões biofísicas que podem reduzir a dependência em alguns pontos do ambiente, podem apresentar recursos e competências variados para lidar com aspectos atitudinais (NAU; DERBAIX; THEVENOT, 2016). Ainda de acordo com os autores, a noção de que a vulnerabilidade dos consumidores de um grupo pode decorrer da vulnerabilidade de um de seus membros é uma extensão da ideia, defendida por Goffman (1998) de estigma por associação.

Eu tenho uma mobilidade dos membros superiores, pode ser que outro deficiente físico sinta dificuldade, mas eu tenho uma mobilidade muito grande com os membros superiores e eu não sinto dificuldade nenhuma (de realizar compras em supermercados). Eu pego a cestinha, coloco no meu colo... Com o carrinho que deve ser difícil, a pessoa se empurrar [faz o gesto de empurrar a cadeira] e ainda empurrar o carrinho, mas a cesta você coloca no colo... Acho que uma compra grande para você fazer sozinho é ruim pra poder empurrar o carrinho e depois se empurrar, é meio complicado, mas se for uma compra pequena, bota a cesta no colo e vai colocando as coisas, ai é tranquilo. (S1, Estagiário, 21 anos).

Eu tenho lesão muito alta, eu não conseguiria tocar uma cadeira e tocar um carrinho para fazer uma compra de mês. Para mim, realmente, é complicado, porque você coloca as compras no carro, tira de volta para passar no caixa, bota de novo no carro, e ainda tem o carro pra chegar em casa, ou onde quer que esteja. Então, é um processo que não dá, eu, por exemplo, não consigo fazer isso sozinha. (S3, Turismóloga, 52 anos).

A disponibilidade de recursos que facilitem a relação do corpo com o ambiente também apresenta-se como um fator de variação entre os indivíduos com alguma deficiência. Esses recursos vão desde equipamentos específicos, como uma cadeira de rodas motorizada, passando por recursos sociais e culminando em facilitadores urbanos, como morar próximo ao supermercado, residir em uma rua asfaltada com calçadas adequadas, bem como a existência de pontos de ônibus próximo às suas casas.

Quando eu tinha uma cadeira manual era mais difícil, porque rodar a cadeira, pegar alimento, empurrar carrinho, ficava muito mais difícil. Mas com a cadeira motorizada facilitou bastante, dependendo do acesso do local. (S11, Líder Comunitária).

É necessário considerarmos também que a compreensão da vulnerabilidade do consumidor acerca de um servicescape pode ser afetada pelo entorno desse ambiente. O modo como os consumidores avaliam a navegação em um espaço específico pode ser comparada à navegação necessária até o acesso da loja, o que pode relativizar o sentimento de estar vulnerável. Uma vez que esses consumidores, para chegar até um supermercado, podem precisar passar por ruas ou fazem uso de transporte público para se locomover, e as barreiras encontradas nesses espaços podem alterar a compreensão do estado de vulnerabilidade após o acesso ao ambiente.

Em estabelecimentos comerciais não, mas eu me sinto mais vulnerável na rua, nos coletivos, mas nos estabelecimentos comerciais não. (S9, Operador de Telemarketing, 40 anos).

Dentro não, é tranquilo, tem uma boa acessibilidade. Não o acesso ao estabelecimento, mas o acesso dentro do estabelecimento é agradável, é satisfatório. (S2, Aposentado, 45 anos).

Tem ar-condicionado, tem um espaço maior, maior quantidade de funcionários, um negócio mais organizado. Os daqui de perto são menores, não tem ar-condicionado... (S6, Aposentado, 51 anos).

Na hora de chegar é tudo normal, tudo acessível. A dificuldade é a volta para casa com os ônibus cheios, às vezes eu passo até uma hora esperando ônibus. Mas a parte do supermercado é tranquila... “vai querer o que hoje, freguês?” (como se interpretasse a fala de um atendente), essa parte é normal, é cem por cento. (S6, Aposentado, 51 anos).

Os consumidores que não contam com recursos sociais ─ amigos, familiares ou cuidador ─ para acompanhá-los durante as compras tem dificuldade de realizá-las com um carrinho, além da impossibilidade de carregar compras médias ou grandes na cadeira de rodas, assim, os consumidores cadeirantes geralmente fazem compras pequenas, usando a cesta, o que implica no aumento da frequência no supermercado.

Coloco as sacolas aqui na cadeira, poucas coisas, porque não dá pra colocar muitas coisas na cadeira. (S6, Aposentado, 51 anos)

Na verdade eu frequento supermercado todos os dias, porque eu moro sozinho e eu sempre me esqueço de alguma coisa e vou comprar. (S2, Aposentado, 45 anos). Duas, três vezes no mês. (S6, Aposentado, 51 anos).

Ainda quanto aos relatos ou à percepção de barreiras que podem culminar em situações de vulnerabilidade, acreditamos haver uma questão de gênero, uma vez que os homens tendem a falar menos sobre se sentir vulneráveis e de tratar de barreiras que sejam mais abstratas, ou subjetivas, como as barreiras atitudinais.

O Quadro 1 (4) a seguir, apresenta os principais significados que os participantes atribuem ao conceito de vulnerabilidade do consumidor.

Quadro 1 (4) – Compreensões da Vulnerabilidade do Consumidor

COMPREENSÃO DEFINIÇÃO

Ineficiência A vulnerabilidade como a impossibilidade de atingir um objetivo específico (RINGOLD, 2005).

Fragilidade A vulnerabilidade relacionada a um estado de desamparo causado pela ausência de elementos externos.

Interação corpo-ambiente A vulnerabilidade como produto da interação entre a condição biofísica do indivíduo e o modo como elementos da dimensão física do ambiente estão dispostos causando dependência ou impotência (COMMURI; EKICI; 2008). Instabilidade A vulnerabilidade relacionada à falta de homogeneidade no modo como os

servicescapes são concebidos e, portanto, ofertam as possibilidades de acesso e navegação. Fazendo com que, mesmo em ambientes do mesmo setor, o processo de compras seja instável e imprevisível.

Fonte: Elaborado pelo autor

Uma vez que a vulnerabilidade pode resultar de barreiras diversas, na próxima seção identificamos aquelas que os consumidores cadeirantes encontram no supermercado e quais as estratégias de enfrentamento utilizadas em situações de vulnerabilidade.

4.2 As Barreiras no Supermercado e a Vulnerabilidade do