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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

CATEGORIA DEFINIÇÃO

2.3.1 Estigma e os Consumidores com Deficiência

Os estudos de comportamento de consumo parecem ter como centro uma ideia de normalidade (CROCKETT; WALLENDORF, 2004), embora alguns estudos abordem fenômenos que se encontram fora dessas delimitações. Em sua obra sobre estigma, Goffman (1998) trata de momentos em que pessoas estigmatizadas e pessoas normais ─ aqueles que não se afastam negativamente das expectativas sociais ─ estão em uma mesma “situação social”, que pode ser uma conversa ou apenas a presença no mesmo espaço. Esses momentos são chamados de „contatos mistos‟. Para o autor, “o normal e o estigmatizado não são pessoas, e sim perspectivas que são geradas em situações sociais durante os contatos mistos, em virtude de normas não cumpridas que provavelmente atuam sobre o encontro” (p. 117).

A concepção Goffmaniana de estigma é embasada na definição grega de que trata-se de um sinal corporal ou atributo que comunica algo ruim ou pouco habitual acerca da pessoa que o carrega. Assim, o estigma é entendido como uma característica que pode implicar em descrédito, redução de oportunidades, perda de identidade social e a determinação de uma imagem deteriorada de acordo com algum modelo socialmente estabelecido.

Os signos ou atributos que transmitem informações sociais podem ser congênitos ou não e/ou permanentes ou transitório. Uma pessoa pode apresentar alguma deficiência física ao nascer, ou seja, uma característica congênita ou tornar-se deficiente depois devido a um acidente ou doença. Do mesmo modo, alguém pode precisar usar uma cadeira de rodas por toda a vida, o que definiria uma situação permanente, ou em alguns casos transitórios, apenas por alguns meses. O estigma ainda pode ser empregado de maneira forçada, como marcar a ferro um criminoso, ou de modo voluntário como um indivíduo que decide fazer uma tatuagem (GOFFMAN, 1998).

De acordo com o autor, existem três tipos de estigmas, quais sejam: (1) as abominações do corpo, onde são inclusas as diversas deformidades físicas, seja a assimetria facial ou deficiências corporais mais graves; (2) as culpas de caráter individual, que se referem a distúrbios mentais, alcoolismo, histórico criminal, vícios, tentativa de suicídio etc.; e (3) os estigmas tribais de raça, nação e religião que são transmitidos pela linguagem e ações familiares. Esses são socialmente criados, uma vez que “... antes que uma diferença seja importante ela deve ser coletivamente conceitualizada pela sociedade como um todo.” (GOFFMAN, 1998, p. 134).

Para além da tipologia estabelecida por Goffman (1998), após empreender uma revisão da literatura acerca de estigma, Link e Phelan (2001, p. 382) redefinem o conceito como sendo “... a ocorrência concomitante de elementos de rotulagem, estereotipagem, separação, perda de status e discriminação em uma situação de poder que permite que esses processos se desenrolem”. A ocorrência do estigma está atrelada a quatro critérios, quais sejam:

1) A distinção e rotulação de uma diferença, destacando que entre as inúmeras diferenças que existem entre os seres humanos, apenas algumas são socialmente proeminentes, por isso, a palavra „rótulo‟ é preferida a „atributo‟ para sublinhar a sua natureza socialmente construída da diferença;

2) A existência de uma relação entre esta rotulagem e representações indesejáveis, buscando compreender o processo de categorização e estereotipagem relativos à associação e sua influência no julgamento;

3) A ocorrência de uma separação de identidade levando a uma distinção entre „nós‟ e

„eles‟, sendo que essa dimensão é encontrada particularmente na interação com os

outros elementos do processo de estigmatização. A atribuição de crenças indesejáveis a indivíduos estigmatizados ajuda a torná-los „outros‟, a separá-los no nível de identidade, o que, por sua vez, facilita a atribuição de estereótipos. De acordo com Nau, Derbaix e Thevenot (2016, p. 50) esta dimensão identitária do estigma pode ser ilustrada pelo uso do verbo „ser‟ ao invés de „ter‟, como por exemplo, „ele tem um resfriado‟, mas „ele é esquizofrênico‟;

4) A ocorrência de uma perda de status e uma discriminação que afetam as interações e levam à desigualdade. Os indivíduos estigmatizados tendem a ver seu status reduzido de maneiras mais ou menos explícitas.

A sociedade, segundo Goffman (1998, p. 5), “... estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias: os ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que têm probabilidade de serem neles encontradas.” Assim, socialmente estabeleceu-se que no ambiente de varejo serão encontradas apenas pessoas fisicamente „normais‟, uma vez que historicamente manteve-se a eficácia do símbolo de que as pessoas com deficiência (PcD) não exercem o papel de consumidor de modo ativo, estando assim às margens das preocupações varejistas. As discussões acerca da normalidade do consumidor e da necessidade de compreender questões relativas à inclusão desses indivíduos em ambientes de consumo, bem como as legislações que regulamentam essa inclusão, ainda são recentes (MUELLER, 1990; KAUFMAN-SCARBOROUGH, 1999; BAKER; STEPHENS; HILL, 2001; BAKER, 2006; BAKER; HOLLAND; KAUFMAN-SCARBOROUGH, 2007; GOODRICH; RAMSEY, 2012; MAFATLANE; FIDZANI; GOBOTSWANG, 2015).

Na literatura acerca do comportamento do consumidor, o estigma vem sendo abordado considerando diversos aspectos, tais como: as práticas do consumidor como o uso de cupons de desconto (ARGO; MAIN, 2008) ou o consumo de drogas (CORRIGAN; WATSON; MILLER, 2006); as características corporais como obesidade (KING et al. 2006) ou questões relativas a padrões físicos socialmente estabelecidos (CROCKETT; WALLENDORF, 2004); as questões individuais como aspectos cognitivos, transtornos psicológicos, orientação sexual, analfabetismo ou dificuldades no domínio de um idioma (ADKINS; OZANNE, 2005); e relativos a traços tribais/comunitários que geram questões raciais e de classe (BONE; CHRISTENSEN; WILLIAMS, 2014).

Em encontros mistos, ou seja, quando um indivíduo estigmatizado e um que não sofre do mesmo estigma, se encontram na presença um do outro e se engajam em uma conversação, “... ocorre uma das cenas fundamentais da sociologia porque, em muitos casos, esses momentos serão aqueles em que ambos os lados enfrentarão diretamente as causas e efeitos do estigma” (GOFFMAN, 1998, p. 15). O enfrentamento dessa situação social, as causas e, principalmente, os efeitos do estigma podem levar o indivíduo estigmatizado a buscar táticas defensivas e/ou assertivas de gerenciamento de impressão.

Uma vez que a existência de um estigma pode ocasionar situações de falta de poder que normalmente se traduz em discriminação no acesso a esferas sociais, econômicas e políticas, Nau, Derbaix e Thevenot (2016, p. 50) afirmam que “a partir de uma perspectiva interacionista simbólica, um indivíduo estigmatizado constrói sua identidade posicionando-se

em relação às representações negativas transmitidas pelo ambiente social”, o que pode acarretar em tensões oriundas da incerteza quanto ao comportamento adequado para a interação, pondo em risco a imagem de todos os envolvidos. Estas tensões, que surgem geralmente nos „contatos mistos‟, variam de acordo com contextos e indivíduos.

Para Goffman (1998, p. 27) “... a pessoa estigmatizada algumas vezes vacila entre o retraimento e a agressividade, correndo de uma para a outra, tornando manifesta, assim, uma modalidade fundamental na qual a interação face-a-face pode tornar-se muito violenta”. Nesse caso, por exemplo, o estigmatizado pode lançar mão de estratégias de intimidação que é composta por comportamentos que visam projetar uma imagem perigosa do ator (JONES; PITTMAN, 1982).

As pessoas podem buscar maneiras diretas e indiretas de lidar com seus estigmas. Em termos diretos, por exemplo, uma pessoa com alguma deformidade pode se submeter a um procedimento cirúrgico e estético, alguém com problemas visuais pode recorrer a um oftalmologista e um analfabeto pode se dedicar aos estudos. De modo indireto, essas pessoas podem se engajar na dominação de áreas que até então são consideradas fechadas por impossibilidade física ou aspectos circunstanciais (GOFFMAN, 1998). Os atletas paraolímpicos são exemplos desse modo indireto de lidar com o estigma.

Acredita-se que, para pessoas com deficiência, a possibilidade de frequentar escolas, universidades, ambientes de trabalho e espaços de consumo também auxiliam, de modo indireto, a corrigir a sua condição de estigmatizadas. Compreender a interação do ambiente de consumo com os consumidores com deficiência, bem como a relação destes com funcionários e clientes que não apresentam esse estigma (ou seja, os contatos mistos que ocorrem nos

servicescapes) pode contribuir para a literatura acerca de estigma, na medida em que o

gerenciamento de impressão nesse contexto pode evitar ou minimizar experiências de vulnerabilidade e, assim, enfraquecer símbolos estigmatizadores.

Goffman (1998, p. 19), em um trecho onde ele trata a si mesmo e ao leitor como normais, destaca que “... como a pessoa estigmatizada tem mais probabilidades do que nós de se defrontar com tais situações, é provável que ela tenha mais habilidade para lidar com elas.” Assim, a compreensão do consumidor estigmatizado e como enfrenta essas situações, pode auxiliar no desenvolvimento de políticas de marketing, ou outras áreas da Administração.

Segundo Nau, Derbaix e Thevenot (2016), a oferta e o consumo tanto de produtos e serviços padronizados quanto os projetados especificamente para os deficientes motores

contribuem, cada um à sua maneira, para a construção do estigma e colocam esses consumidores diante de um dilema, uma vez que as ofertas padronizadas podem não ser acessíveis para esse público e as projetadas especialmente para ele pode gerar segmentação que, às vezes, contribui mais para o estigma, por meio da objetivação de representações ou discriminando os consumidores, do que ofertando de fato uma resposta. Assim, o estigma se traduz prender a pessoa com deficiência motora em uma identidade „deficiente‟.

A falta de preparo da sociedade ─ organizações, governo e comunidade ─ para lidar com as pessoas com deficiência, se deve a um longo processo de estigmatização sofrido por esse grupo. Esses estigmas exercem forte influência nos processos de consumo desses indivíduos que buscam criar e manter a imagem de consumidor diante do mercado. Uma vez que ainda não são plenamente vistos como consumidores, não encontram preocupação por parte dos ofertantes de serviços de modo a encontrar ambientes de serviços adequados (HOGG; WILSON, 2004; KAUFMAN, 1995; KAUFMAN-SCARBOROUGH, 1998).

Na próxima seção serão apresentados os principais conceitos e estudos acerca do ambiente de varejo.