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3 OS DEDOS SUJOS DA CIDADE

3.1 A pixação em Recife

As ruas de Recife se caracterizam como um grande letreiro a céu aberto com assinaturas de sujeitos anônimos que parecem disputar espaços entre si. Em um grande espetáculo estético, dos mais variados tipos e formas de escrita, para cada autor que o faz existe um aglomerado de abreviações, que são chamadas por eles de siglas ou comandos, com a função de mostrar o lugar e/ou o grupo ao qual o sujeito pertence. Essa comunicação, aparentemente silenciosa, estabelecida entre pares, surge como uma arte transgressora que busca ganhar respeito e reconhecimento através de suas variações estéticas e tipográficas elaboradas no processo de construção do próprio indivíduo dentro desse circuito (MAGNANI, 2012) e na criação da sua própria marca. Esse modo de circulação, estabelecido por pessoas de um determinado grupo, com práticas comuns, que marcam encontros em espaços regulares com os mesmos propósitos de encontros, é compreendido, dentro da categoria de circuito, trazida por Magnani (2012), ou seja, é uma categoria que utiliza o uso dos espaços e equipamentos urbanos como forma de sociabilidade.

A cidade, desse modo, surge como um suporte para os diálogos políticos, existenciais e territoriais desses indivíduos, que utilizam esses espaços para dizer de onde vêm e a quem se reportam. Esses diálogos travados nos muros, incompreensíveis para nós, são responsáveis por muitos barulhos nos grupos de WhatsApp, points na cidade e páginas no Facebook. Por

isso, retifico o que falei anteriormente de se tratar de um modo de comunicação aparentemente silencioso. Os salves, para a zona sul, zona norte e zona oeste, escritos ao lado dos nomes e das diversas siglas, mostram a localização geográfica que o sujeito pode residir ou demonstra afinidade, se afunilando para as identificações e demarcações destinadas aos bairros, que, por sua vez, formam essas siglas. Em sua grande maioria, essas abreviações, que aqui começamos a trabalhar como siglas, dentre as várias possibilidades de referências que podemos tratar e falar sobre elas, levam em sua nomenclatura o nome dos seus respectivos bairros.

Para ficar claro ao leitor, as pixações no Recife se caracterizam por possuir dois elementos principais. O primeiro se constitui das galeras ou do comando, referentes ao grupo que o pixador pertence, representa e defende. Geralmente estão localizadas ao lado de seu nome com a sigla da sua galera de origem e aquelas nas quais estabelece aliança, amizade e reconhecimento. “Dar um alô” ou “um salve” para as siglas dessas demais galeras é sinônimo de respeito. Essas galeras, ou os comandos, são escritos sempre através de siglas, que consistem em abreviações dos nomes de seus grupos, que, por sua vez, estão diretamente relacionadas aos seus bairros de origem. Os pixadores se identificam através delas e comunicam-se falando sempre por elas. A segunda característica, mas não menos importante, refere-se a pixação, pixo, marca, ou vulgo, que geralmente são pseudônimos utilizados para resguardá-los de uma possível identificação feita por aqueles que não estão inseridos nesse circuito. Dessa forma, as pixações se caracterizam em sua forma estética pelo destaque que se dá ao pixo para depois vir às referências particulares das siglas e, posteriormente, as gerais – as siglas que possuem alianças. Dando o destaque principal ao seu nome e a sua sigla, o pixador pode colocar logo após o salve a aqueles que estiveram na ação e as siglas daqueles com quem possui redes de troca e aliança.

Esses grupos definidos por territórios socioespaciais são carregados de sentimentos e possibilidades de relações. Pertencer a uma galera é levar consigo a representação de uma sigla onde quer que esteja ou deseje ir. Em uma “família grande e complicada”, como eles mesmos se referem aos seus grupos, acabam por construir uma rede de relações que não se limita apenas aos espaços que tangem a sua cidade. Se conectam e se articulam em diversas possibilidades de construção de vínculos com outros espaços, além daqueles que já se tornaram habituais, como os seus próprios bairros. O que muitas vezes se inicia como forma de galera, em busca de “fama” e “respeito na favela”, passa a ser compartilhado de uma forma mais intensa, dividindo histórias, projetos de vida e percepções de si. Em todo

momento os pixadores se tratam pelos seus pseudônimos, sem necessariamente terem que saber o nome e o sobrenome de seus pares. É através da sua própria marca, de seu pixo, que eles constroem a visibilidade necessária para circular nesses espaços de modo fluído e contínuo.

Com a pixação eu fiz muitos amigos, não foram só inimigos. Inimigos a gente cria em qualquer lugar, não precisa nem ser pixador. Mas foi graças a pixação que conheci gente de vários estados, viajei e curti várias festas. Rio de Janeiro, João Pessoa, Fortaleza, vários lugares. A pixação é muito maior, porque é um movimento. Apesar das diferenças, somos um movimento (Conversa Informal, janeiro de 2016)27.

Figura 2 - Pixação em Recife

Fonte: acervo pessoal RDP28, dezembro de 2015.

No que se refere à estética e ao modo como essas informações se articulam, não existe um padrão que condicione o indivíduo a repercutir uma única forma de apresentação. Cada pixador encontra seu próprio modo de inserir sua arte na parede. Aliás, é a particularidade que

27 Como mencionei no capítulo anterior, alguns interlocutores optaram por não se identificar. Portanto, os

registros que não aparecem com nomes ou pseudônimos, tanto se referem a estes interlocutores como àquelas conversas em que estabeleci com mais de uma pessoa falando ao mesmo tempo – nos grupos e rodas de conversa com vários pixadores.

28 Foto compartilhada no grupo de troca, em rede sociais, da RDP (Relíquias da Pixação). Como citei

anteriormente, minha coleta de dados também contou com a contribuição dos meus interlocutores nesses espaços. Além dos points e festas, transitei por eles – grupos no Facebook e WhatsApp. É comum compartilharem fotos e vídeos nestas mídias sociais e, quase sempre, são veiculadas pelos próprios pixadores. Compartilhavam para lembrar, para mostrar e demonstrar respeito. Assim como eles, também passei a compartilhar as fotos que tirava na rua e utilizava suas fotos, tiradas por eles, em uma relação de troca e respeito.

irá fazer toda a diferença nessas disputas por espaço, que são, de certa forma, uma disputa por destaque e visibilidade. No processo de elaboração de sua marca, ou de seu pixo, a estética da letra é minuciosamente valorizada, assim como também a capacidade de criatividade. Letras “emboladas”, com personagem, tag reto, etc. Vários modos de criar e recriar. A importância na elaboração de sua assinatura, na construção do pixador, representará sua autenticidade e originalidade, qualidades fortemente levadas em conta na atribuição do respeito entre seus pares (MOURA, 2014).

Nos diálogos que seguiam durante as rodas de conversa que participei e construí, as folhinhas e os caderninhos estavam sempre presentes − falaremos mais sobre eles no próximo capítulo, pensando as relações que são estabelecidas e quais os sentidos que são atribuídos diante destas trocas. Esse era um momento em que as assinaturas eram compartilhadas em um mesmo papel ou caderno, visto como uma boa possibilidade para conhecer alguém que se admire ou, principalmente, para se apresentar àqueles que ainda não te conhecem, mostrando a eles a sua marca.

Percebi que esse processo de criação requer, muitas vezes, um esforço de pesquisa, no qual se busca tornar sempre a sua marca como única e original, com o propósito de fortalecer a sua própria identidade visual. Se falarmos que a pixação é uma atividade que tem como um dos propósitos a busca por destaque, mesmo que entre seus pares, afirma-se que ela é uma atividade que se apega ao processo de criação pautado no reconhecimento visual do artista, percebendo que o pixador busca intensamente construir a sua identidade visual para depois se inserir com segurança nesses espaços, colocando seu nome nas folhinhas e caderninhos. Demonstrando também como a valorização estética e criativa da letra é levada em consideração quando explicam sobre o processo de criação da sua assinatura, levando os diálogos à seguinte reflexão:

O Menor tem um tipo de letra diferente, que todo muito conhece e sabe que já é criação dele. Ele misturou letras do alfabeto árabe com a pixação. Isso é massa! Tipo... nenhum pixador faz isso aqui, só ele. E ele passa horas pintando telas, rabiscando folhas. É um estudo mesmo, tá ligado? O cara pesquisou alfabeto, pesquisou letras de pixo, é muito louco isso (Conversa informal com Stilo, março de 2015).

A importância da criação de uma assinatura envolve tanto uma expressão íntima e subjetiva de si mesmo quanto o desenvolvimento de habilidades manuais e técnicas tipográficas (MOURA, 2014). A estética, para eles, é essencialmente a marca do pixador, exigindo um grande potencial criativo para conseguir criar um modo peculiar de escrita que seja reconhecida visualmente como sua. Elaborar sua própria marca, nesse sentido, tem o

intuito de conseguir fazer com que reconheçam seu nome pelo simples fato de olharem os seus traços, mesmo que de longe. Afinal, em uma batalha de letras que se consolidam nos muros da cidade, é preciso ter destaque em meio a tantos outros nomes que ali também disputam um espaço.

A visibilidade e o destaque, termos repetidos diversas vezes durante os diálogos nas rodas de conversa e em grupos nas redes sociais, são adquiridos durante esse processo de criação, no qual o indivíduo se esforça para que sua marca – ou seja, a sua identidade – seja inédita diante das demais que estão espalhadas pela cidade. Considero, portanto, que a pixação é uma manifestação que se articula pela lógica do ver e ser visto. Ao mesmo tempo, produzindo suas representações individuais e grupais, através dos seus pixos e tags, e estabelecendo relações com os demais indivíduos e grupos que compartilham da mesma prática (MOURA, 2014; 2016).

Como citado anteriormente, as implicações das siglas e das galeras, no universo da pixação em Recife, são de extrema relevância para se compreender como funciona a dinâmica que os pixadores estabelecem com a cidade, pois além de se situarem e se comunicarem entre seus pares através desses indicadores de grupos e bairros pertencentes – Anarquista Detonadores do Pina (ADP), Organização dos Pixadores da Torre (OPT) e Pixadores Do Curado (PDC), por exemplo –, são através delas que irão ser estabelecidas as alianças e os possíveis desafetos, ou seja, existem bairros rivais e bairros que estabelecem união. É importante enfatizar que, quando me refiro aos bairros, estou me referindo a aqueles que se localizam na periferia da cidade. Pois, assim como nos estudos de Pereira (2005, p. 83), “a pixação é uma atividade exercida predominantemente por jovens oriundos de bairros pobres periferia”.

Em um consenso comum entre os interlocutores e todos aqueles que contribuíram para esta pesquisa, foi no início dos anos 80 que a prática da pixação se proliferou na cidade. Além disso, trabalhos como o de Moura (2014; 2016), possibilitam iluminar sobre a existência dessa prática e esse início do movimento na cidade. Trazida pelos gêmeos Cano e Wel, a propagação inicial da prática adotou as características estéticas das tags cariocas, até que tomasse as formas marcantes próprias da cidade de Recife – a exemplo das letras “emboladas” citadas anteriormente. Nesse período, a forma de representação por grupos de galeras se disseminou. A primeira sigla, criada pelos próprios gêmeos, a VC (Vândalos da Caxangá), fazia referência à área da cidade na qual residiam. No início desse processo, entre os anos 1990 e 2000, as rivalidades entre esses grupos tomaram grandes proporções nas disputas espaciais entre si (MOURA, 2014; 2016). Nesse mesmo período, existiam os bailes

funks de corredor, que serviam como espaço para combater as galeras que eram consideradas rivais a cada grupo. Esses espaços passaram a ser points de encontro entre pixadores, assim como também se tornaram um espaço de sociabilidade e lazer entre eles. Durante esta pesquisa, constatou-se a inexistência desses bailes de corredor, que se encerraram nos anos 2000, mas existe a tentativa de retomar os bailes funks com uma proposta diferente da que se tinha nos espaços constituídos por corredores e divisões entre galeras29.

Retratando um pouco sobre essas tensões existentes entre as galeras e bairros rivais, pois são nelas que se fundamentam toda a discussão sobre territorialidade e processo de identidade, trago, neste capítulo, o trecho de um funk cantado e composto por um pixador do bairro de Santo Amaro, conhecido como Mc Taz SA. A música, intitulada como o “Abc da SA”, relata o estabelecimento de aliança e desafetos com outros bairros e regiões. Na estrofe da música, o Mc diz:

Se bater de frente, meu amigo eu só lamento. Santo Amaro e o Arruda promete ser violento. Santo Amaro e o Arruda, o bonde quebrar quebrou, mas se tu bater de frente cuidado com os pixador. Os pixador da Zona Norte pixa mais que a Zona Sul, e quem não gostou vai...30 (TAZ SA, 2009).

O bairro do Arruda, localizado na zona norte da cidade, tem união com os pixadores de Santo Amaro e possivelmente também possui desavenças territoriais com os outros bairros onde a galera que compõe a SA (Santo Amaro) também não “cola”, ou seja, não possui aliança. Os registros dessas desavenças estão fixados em músicas como essa, compostas sobre batidas fortes do funk proibidão, que contam desde as histórias relacionadas à pixação até as disputas territoriais entre os bairros, suas galeras e demarcações espaciais das tensões relacionadas ao tráfico.

Em março do ano de 2015, estive na casa de um ex-pixador conhecido na região. Durante essa visita, com o intuito de trocar uma ideia e escutar a perspectiva de alguém que não está mais envolvido nas questões atuais da pixação, conversamos um pouco sobre a trajetória do movimento na cidade. Ele relatava que os bailes funks de corredor, conhecidos pelas famosas brigas entre essas galeras, repercutiam diretamente nas tretas entre pixadores, fazendo parte da história do movimento na cidade, por mais que atualmente tenham tentado se afastar destas comparações, consideradas por muitos como uma lembrança negativa.

29 Falaremos melhor sobres os bailes funks de corredor e suas repercussões, assim como também esta proposta

de um novo formato, nos Capítulos 3 e 4.

30 Música cantada pela galera de Santo Amaro no período dos bailes funks de corredor, que pode acessada

A pixação carrega esse preconceito devido às tretas que existiam de galera nos bailes funks. Muitas das tretas de pixação veio por conta desses bailes. As brigas de bairros, as desavenças, e por aí vai. Por isso, muita gente foi se afastando da pixação, muita gente não queria ficar mais nessa de ficar brigando por conta de bairro, e tem muito disso até hoje, por mais que a gente venha tentando trazer uma ideia política do movimento, tem gente que é muito novo e mistura as coisas (Conversa informal, março de 2015).

Assim como as demais práticas urbanas, existe uma espacialidade na ação desses indivíduos. Sobretudo, nos chama atenção a importância que atribuem a essa espacialidade na sua relação com a cidade. Suas siglas e galeras influenciam suas ações, repercutindo na sua noção de território e territorialidades. Admiram e se dedicam ao processo de criação de suas letras e pseudônimos. A pixação, vista apenas como rabiscos que poluem e denigrem o visual da cidade, não possui uma grande adesão de admiradores, se tornando o grande alvo de retaliações das políticas de intervenção governamentais – como as que foram citadas no início deste capítulo. Já o graffiti, que no início dos anos 70 também passou por esse período de rejeição, hoje consegue estar à frente de eventos e exposições, mesmo que ainda sejam poucos. Ambos, oriundos das periferias, tiveram sua origem na ilegalidade da prática. Hoje passam a se diferenciar tanto esteticamente quanto no próprio circuito e espaços que seus interlocutores participam. Essas aproximações e as suas diferenças serão trazidas no tópico seguinte.