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Entre tretas e galeras: confidencialidade e ética na pesquisa

2 TRAJETÓRIAS DE CAMPO: NOTAS ETNOGRÁFICAS, OBJETO E

2.4 Entre tretas e galeras: confidencialidade e ética na pesquisa

Durante a pesquisa, busquei ver todos os interlocutores considerando suas agências, pensando para além de serem simplesmente pixadores, respeitando suas histórias de vida, escolhas e trajetos percorridos até o momento que chegaram a se reconhecerem enquanto pixadores. Na maioria das vezes, estive em contato com eles apenas no seu espaço principal de lazer, a Pelada dos Pixadores. Mas foi no início do campo, nas minhas idas ao Pina, que aprendi a perceber e respeitar seus corres cotidianos. Como falei anteriormente, a importância desse ponto de partida até a chegada desse texto dissertativo.

Quando penso em agência desses sujeitos, refiro-me ao fato da busca por pensar esses atores para além de serem apenas pixadores. Eles são Paulo, Henrique e João18, que trabalham, estudam e compartilham de compromissos familiares. Com isso, estimulei diálogos que não se limitavam apenas as questões referentes às temáticas da pesquisa, na busca por compreender suas visões de mundo e percepções sobre a vida cotidiana a partir de suas próprias trajetórias subjetivas, na tentativa de retomar o processo de relativização das práticas e dos valores junto a estas pessoas que compartilham de um mesmo universo geracional que o meu, mas que possuem práticas culturais, realidades sociais e percepções diferentes das minhas e que precisam ser compreendidas a partir de um interesse flexível, possibilitando vias mais fluídas de comunicação (RIBEIRO DE OLIVEIRA, 2014, p. 56).

Pensando nesse processo de construção de uma pesquisa mais dialógica, a importância ética da pesquisa na antropologia é destacada por Cardoso de Oliveira (2004), no que se refere ao consentimento e esclarecimento (ABA, 2011), considerando que o pesquisador assume, em vários momentos, diversas identidades em seu trabalho de campo, além de haver uma imprecisão na delimitação dos interesses da pesquisa no momento de submissão ao conselho

de ética, já que o autor entende que o campo determina as medidas que deverão ser tomadas − o antropólogo busca criar a partir da imersão e surgimento do fenômeno. Por isso, nesta pesquisa, não utilizei o termo de consentimento nas gravações de áudio que realizei, visto que a pixação é uma prática ilegal. Acredita-se que essa medida não tira a credibilidade da pesquisa, pois é comum, em trabalhos com a temática, a não utilização do termo de consentimento e a adesão de fotografias que cubram o rosto dos interlocutores com a utilização preponderante de conversas informais (PEREIRA, 2013; CARVALHO, 2013; SOUZA, 2007).

Evidentemente, nas pesquisas sobre atividades ilícitas, o antropólogo não deverá ser capaz de convencer nenhum dos sujeitos pesquisados a assinar o termo de consentimento, porque, ao fazê-lo, os atores estariam “confessando” envolvimento em atividades criminais e, portanto, estariam se arriscando a ser presos (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2010, p. 29).

A relação e a dificuldade com o termo de consentimento, citado anteriormente, pelos pixadores referem-se à má interpretação atribuída à assinatura de um documento que poderia vir a servir de prova contra eles, principalmente quando se problematizam tensões entre os agentes de segurança públicas e indivíduos. Dessa forma, assinar qualquer tipo de documento é visto como uma forma de autodenúncia, considerando que muitos desses autores relacionam essa prática ao Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), no qual suas tensões com o poder público são concretizadas.

Com essa mesma dificuldade, a antropóloga Ribeiro de Oliveira (2014) percebeu que essas lembranças proporcionam situações de desconfiança que dificultam a relação do pesquisador com o interlocutor, direcionando suas falas à superficialidade. Nessa perspectiva, através do registro das conversas informais, busquei compreender o cotidiano dos grupos e dos sujeitos que os compõem, de modo a tentar apreender a forma como tais sujeitos circulam pela cidade, percebem suas regras e o modo como significam e ressignificam sua experiência no espaço urbano. A utilização de conversas informais, quando se trabalha com interlocutores de práticas ilegais, também é utilizada no trabalho da Biondi (2010), que problematiza o papel de uma interação próxima com seus interlocutores visando possibilitar a sua inserção em conversas que dificilmente seriam reveladas enquanto pesquisadora, como, por exemplo, na aceitação da minha presença nos seus pedaços, em festas e nos grupos fechados no Facebook, nos quais revelei a minha condição de ter sido integrante de torcida organizada, como citado anteriormente, para ser “tratada com maior proximidade e menor desconfiança do que quando me apresento como pesquisadora” (BIONDI, 2010, p.50).

Já a utilização das fotografias que foram aqui colocadas são bastante comuns em pesquisas com pixadores, de maior aceitação e facilidade de acesso, considerando que fotografar suas próprias pixações e publicar na internet é uma prática comum entre eles. Essa valorização desse tipo de registro acontece devido ao uso da fotografia como mecanismo de registro e como busca pela eternização do nome e da figura do pixador, acionando os dispositivos de memória e reconhecimento, categorias que serão trabalhadas nos capítulos 3 e 4. Por outro lado, muitas vezes o antropólogo, nesses espaços, é confundido com um jornalista, o que imediatamente desperta o interesse de muitos interlocutores, que levam matérias de jornais e fotos de suas ações para que se publique em sua pesquisa (PEREIRA, 2005).

Com isso, embora o compromisso do pesquisador seja o de mostrar os resultados da sua pesquisa e problematizá-las, o respeito à identidade de seus interlocutores perpassa todas essas questões referentes às exposições dos dados. Por isso, garanti o anonimato e o sigilo desses sujeitos e adotei os pseudônimos para aqueles que permitiram a colocação de suas falas e as identificassem. Já nas falas daqueles que não permitiram a relação de seus relatos com seus pseudônimos, adotei o registro como descrição de uma conversa informal a fim de não ser possível a relação de nenhuma informação com as suas identidades, considerando que a análise etnográfica não tem o objeto de servir como denúncia para nenhum dos interlocutores em questão.

Assim, por mais que eu estivesse próxima de uma realidade policialesca e recheada de fatos sigilosos, ilícitos e bastante comprometedores, não estava a fazer uma investigação policial, uma reportagem jornalística, ou mesmo, trabalhando como uma espiã disfarçada a colher informações incriminadoras para serem denunciadas à justiça. Estava a realizar uma pesquisa científica tendo a obrigação, como antropóloga, de proteger os dados alcançados sob essa condição de investigação (RIBEIRO DE OLIVEIRA, 2014, p. 63).

Sobretudo, ressalto que a produção deste trabalho questiona as formas em que são consolidadas e construídas os nossos próprios objetos de pesquisa, permitindo estudar a vida urbana a partir de um recorte que nos faça repensar os limites e os conteúdos do cenário/espaço urbano, bem como problematizar as imagens que naturalizamos sobre o que seria essa ideia de cidade − mais especificamente sobre o que seria a cidade do Recife. Reconhecendo, dessa forma, a multiplicidade e heterogeneidade dos modos de existência de todo o urbano, ou seja, o que se busca é compreender e repensar manifestações particulares e específicas de perceber a cidade a partir dos próprios pixadores.