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A política de segregação racial durante o período colonial

4 ESTUDO DE CASO

4.4.1.3 A política de segregação racial durante o período colonial

É muito difícil falar de uma colonização portuguesa efetiva do território guineense antes do fim da gestão cabo-verdiana ocorrida em 1878 (Andrade, 1978: 78; Djaló, 2013: 201). Até esta altura, como do resto já foi referido anteriormente era uma colónia de outra colonia, com tudo o que isto significa. Portanto, foi depois desta data que se começa a produzir uma legislação específica para o território, por exemplo, a de 1892, quando passa a ser considerado um distrito militar autónomo, para três anos depois passar a uma província. A legislação produzida posteriormente vai aumentar ou acentuar o seu carater discriminatória e racista. A título de exemplo, Amílcar Cabral escreve;

Na “metrópole”, o povo português plebiscita as alterações constitucionais que rege a sua vida. Na Guiné, o povo diminuído na sua capacidade jurídica pelo Estatuto dos Indígenas, não participa nem na adoção da Constituição nem na elaboração das outras leis fundamentais que regem a sua vida e não têm uma aplicação correspondente à da “metrópole”, afirma.

Na realidade, o artigo 230 do Estatuto dos Indígenas, estabelecendo que “não são concedidos direitos políticos aos indígenas em relação a instituições não indígenas”, legaliza e consagra, de forma mais flagrante, a descriminação racial e cultural que pesa sobre a vida política do africano da Guiné “portuguesa”.

De acordo com o mesmo Estatuto, “são considerados indígenas” (…) os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que (…) não possuem ainda o nível e os hábitos individuais e sociais considerados indispensáveis para a aplicação integral do direito público e privado dos cidadãos portugueses”. Até a adoção da Resolução sobre a descolonização pela Nações Unidas, mais precisamente até setembro de 1961, data da revogação deste estatuto, cerca de 99,7% da população africana da Guiné “portuguesa” (quase a totalidade da população) não era considerado como cidadão português. E para que o indígena ascenda à condição de cidadão, devia preencher as seguintes condições (art.º 56 do Estatuto).

a) ter mais de 18 anos;

b) falar corretamente a língua portuguesa;

c) exercer uma profissão, arte ou ofício de que aufira o rendimento necessário para o sustento próprio e das pessoas de família a seu cargo, ou possuir bens suficientes para o mesmo fim;

d) ter bom comportamento e ter adquirido a ilustração e os hábitos pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses; e) não ter sido notado como refratário ao serviço militar.

Em jeito de desabafo, Cabral não resiste fazer ainda a seguinte observação:

“(Não é exagerado afirmar que, se o Estatuto dos Indígenas fosse aplicado em todas as partes “integrantes de Portugal” com o mesmo rigor que na Guiné “portuguesa”, pelo menos cerca de 50% da população da “metrópole” seria considerada indígena. Basta recordar que mais de 40% dos portugueses são analfabetos e, portanto, não falam nem escrevem corretamente o português (o que é exigido, na prática para os guineenses) e que a maioria da população de Portugal – país agrícola e subdesenvolvido – não tem uma situação económica estável”. Conclui (Cabral1978: 80).

Mais adiante o líder histórico do PAIGC acrescenta:

“A descriminação estabelecida pelo Estatuto dos Indígenas é flagrante, não apenas no que se refere às diferenças entre a situação jurídica dos povos da Guiné e de Portugal, mas ainda em relação à situação interna do próprio povo da Guiné. Sendo o território exclusivamente dirigido por instituições não indígenas, cerca de 99% da população total ou 99,7% da população africanas não participa, de acordo com a lei, no funcionamento dessas instituições. Só os “cidadãos portugueses” (europeus e africanos ditos civilizados, entre os quais os autóctones estão em minoria – 0,3% da população africana) participam, em princípio, nesse funcionamento. Esta realidade basta por si só para destruir o mito constitucional segundo o qual a Guiné é uma “província de Portugal” e afirmação que pretende que não existe descriminação racial. Isto é um facto, tanto mais que mesmo os autóctones ditos civilizados são igualmente alvo de uma descriminação, embora indirecta, facilitada pelo seu baixo nível de vida económica”, concluiu (Cabral, 1978: 81).

Considerando que nos sensos de 1950, dos 8 320 indevidos que gozavam do estatuto de civilizado, 3 824 (cerca de 46%) eram analfabetos, chega-se facilmente a conclusão de que na maioria dos casos, a atribuição deste estatuto era baseada na cor da pele ou da assimilação, dando deste modo a razão as afirmações do Amílcar Cabral.

O pior não era a existência da segregação racial em si, mas sim na vontade de perpetuar este regime para sempre. É o que se pode concluir na divisão dos programas escolares destinada para a população civilizada e indígena em vigor em 1948, por exemplo, que tinha a seguinte redação:

“O ensino primário acha-se dividido em: ensino elementar e rudimentar. O primeiro visa a fornecer à criança os instrumentos fundamentais de todo o saber e as bases de uma cultura geral, preparando-se para a vida social. O ensino primário, para não indígenas, faz-se nas escolas do ensino primário elementar, e compreende as matérias do programa do ensino primário adoptado na Metrópole e mandado observar pelo Ministério das Colónias. É ministrado em quatro classes anuais, correspondendo as três primeiras ao 1.º grau – ensino elementar – e a quarta ao 2.º grau – ensino complementar – actuais.

O ensino para indígenas faz-se em escolas de ensino primário rudimentar e compreende as matérias dos programas adoptados pelo Conselho de Instrução Pública da Colónia. Nestas escolas o ensino tem feição intuitiva e prática, tendendo à valorização moral e economia do indígena, pela aprendizagem e aperfeiçoamento da técnica de produção e integração no espírito da civilização portuguesa”.

O ensino primário elementar é ministrado nas escolas de Bissau e Bolama, nas de Farim, Bafatá [as chamadas Escolas Centrais] e Cacheu, e o ensino primário rudimentar nas escolas de Canchungo, Bissorã, Mansoa, Nova Lamego, Bambadinca, Bubaque e Sonaco (Anuário da Guiné Portuguesa, 1848: 288-289).

Assim, vê-se claramente que para além da segregação no conteúdo ministrado para uns e outros, ainda havia a segregação espacial para os mesmos. O pior era que só 12 localidades tinham o direito a escola em todo o território. Recorde-se que estamos a referir o ano de 1948.

Ainda é de registar que no conjunto destas 8 escolas e para o ano letivo de 1947/48, estavam matriculadas 832 pessoas (sendo mais de 38% só na cidade de Bissau), dos quais 499 homens 332 meninas. Em Bolama é um dos poucos casos onde se registava maior presença de alunos de sexo feminino do que masculino, com 89 e 49 respetivamente, um caso que não deixa de ser notável no território provincial e para a época. A outra nota que se pode retirar deste documento é o meio social da proveniência dos alunos. Assim, 73

alunos eram provenientes da metrópole, 527 cabo-verdianos (os mais contemplados) e 232 dos guineenses (ibidem, 294).

É de referir ainda que para além das escolas da responsabilidade da Instrução Pública da Colónia, existia as escolas das Missões Católicas Portuguesas, que no seu conjunto tinha 37 escolas, mais do quadruplo do que as do Estado. Estas eram frequentadas por 1 910 alunos, mais de dobro de alunos matriculados nas escolas públicas, embora a sua grande maioria eram do tipo Rudimentares, como se pode observar a seguir. Estas estavam distribuídas nas diferentes paróquias da província, nomeadamente a Paróquia de Nossa Senhora da Candelária de Bissau com 5 escolas, sendo 4 Elementares e uma Rudimentar; a Paróquia de S. José de Bolama, com 1 Elementar e 8 Rudimentares; a Paróquia de Nossa Senhora da Natividade de Cacheu, com 2 Elementares e 6 Rudimentares; a Paróquia de Santo António de Bula, 3 Elementares e 5 Rudimentares; a Paróquia da Nossa Senhora da Graça de Bafatá, com uma escola elementar e 6 Rudimentares.

Ora, apesar da bondade da existência destas últimas, na prática acabaram de acentuar ainda mais a descriminação, pois, só os cristãos, para não dizer os católicos podiam estudar nelas, deixando mais uma vez os muçulmanos e pessoas de outros crédulos de fora.

Recorde-se que nesta década estava em marcha a política de aportuguesamento dos nomes dos africanos. Esta diretiva foi cumprida de forma diferenciada entre a população africana. Houve os que aderiram sem reservas, adotando os nomes e apelidos portugueses, são os casos dos Manjacos e Bijagós, como por exemplo, José Mário Vaz e Aristides Gomes (atual Presidente da República e ex-primeiro ministro, respetivamente, ambos da etnia manjaca) ou José de Barros e Honório Fernandes Pereira, (Régulo de Abú, ilha de Orango, Arquipélago de Bijagós e Responsável pela Animação dos projetos Comunitário do Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas – IBAP da Guiné-Bissau, respetivamente).

Os Mancanhas e os Papeis dividiram-se, havendo os que adotaram os nomes e os apelidos, como é o caso de João Bernardo Vieira e Faustino Cipriano Mendonça (sendo o primeiro Papel e o segundo Mancanha); e os que o fizeram parcialmente, ou seja, adotando os nomes, mas mantendo os apelidos, como são os casos de João Ribeiro Butiam Có e Luís Oliveira Sanca (o primeiro Papel e o segundo Mancanha), por exemplo.

Na comunidade muçulmana, o processo foi mais difícil. Encontrou uma relativa recetividade no Leste do país, onde era comum o nome dos filhos de alguns dos régulos

figurasse um primeiro nome Português, seguido do nome africano ou arabizado e por fim o apelido africano, como é caso de Eduardo Mamadú Baldé, António Queta Galissa ou António Serifo Embaló. Alguns jovens nestas comunidades seguiram-lhe o exemplo, adotando também nomes portugueses.

Nos centros de difusão islâmica, como o Quebo, por exemplo, a resistência foi forte e durou até tardiamente. Porque se é verdade que os que recusavam aderir aos nomes e cultura portuguesa eram marginalizados, não é menos verdade que estas comunidades auto excluíram-se liminarmente do sistema. O impasse só foi quebrado numa conversa entre o Governador da Província, António Augusto Pexoto Correia e os líderes da comunidade, nomeadamente o Sheikh Haruna Rachid e os régulos de Forreá a cabeça, onde saiu a decisão de isentar as populações daquela área do cumprimento da norma de adoção dos nomes portugueses, em troca os líderes aceitaram enviar os seus filhos para a escola “dos brancos”, como se dizia na altura. Esta cedência mútua mereceu um poema em Árabe do líder religioso, em homenagem ao governador, António Augusto Peixoto Correia.

Esta resistência de mudança de nome e da cultura em geral, teve alguns custos para muitos africanos, principalmente para a população muçulmana. Joana Gorjão Henriques, escritora e jornalista do Público, numa conversa com o escritor guineense Abdulai Sila, escreve: “(o pai nunca aceitou que os filhos ficassem com outros nomes que não fosse aqueles que lhes deu. “um dos aspetos mais violentos do colonialismo era despir as pessoas completamente, aquilo que Frantz Fanon chamou “pele negra máscara branca”, lembra””.

E a jornalista acrescenta: “o pai sempre recusou submissão, e pagou um preço para manter a dignidade. Dizia-lhe: tens de ser tu mesmo, não o que o outro quer que tu sejas. Tens um nome, uma posição, tens de ser coerente contigo, não tens de aceitar que o outro te oprima”” (Henriques, 2016: 72).