• Nenhum resultado encontrado

PARTE I OS GUARANI-CHIRIPÁ NO LITORAL DE SANTA CATARINA

V. SOBRE O ETHOS CHIRIPÁ

V.3 A política e a religião

É fundamental falar também dos caminhos de relações sócio- políticas com o juruá encabeçadas pelos Chiripá, o que se espraia por uma série de fatores, dos quais eu gostaria de destacar alguns. O primeiro deles, é a luta pela garantia de direitos e pela terra, haja vistas para o fato de que o casal Alcindo e Rosa foi pioneiro na decisão de aceitar a demarcação de suas áreas, coisa que é contrária aos fundamentos éticos e filosóficos dos Guarani, pois ninguém pode ser dono da terra, já que a terra é dona das pessoas. Entretanto, sujeitar-se à regularização fundiária foi o único caminho possível que encontraram para assegurar de alguma forma a continuidade de seu modo de vida, garantindo áreas com matas, água boa e terra fértil, que, mesmo sendo exígua, permitiu com que deixem de ser espoliados, expulsos e vítimas das violências e atrocidades neocoloniais. É válido mencionar uma vez mais que a Terra Indígena Mbiguaçu foi a primeira área demarcada para os Guarani em Santa Catarina, seguida de Morro dos Cavalos, ambas com os aldeamentos contemporâneos fundados pela família Moreira. O segundo aspecto para qual chamo a atenção é a educação escolar dentro das aldeias, pois Mbiguaçu foi também a comunidade pioneira na região no sentido de aceitar a escolarização, em meados da década de 1990, liderados à época pelo senhor Milton Moreira, o primeiro cacique da

66 Com relação à agricultura, este ano foi a primeira vez que ouvi senhor Alcindo

manifestar a preocupação de que um dia as sementes das variedades guarani tradicionais possam vir a se perder, preocupação essa que trago comigo há alguns anos. Neste sentido, ele tomou uma decisão de que o plantio desse ano deverá ter um enfoque também na proliferação das sementes para serem distribuídas nas várias aldeias Guarani onde já não existem e as pessoas já não conseguem plantar.

129 aldeia67. Novamente as demais aldeias seguem o exemplo dos Chiripá, aceitando a escolarização e lutando por seu direito ao atendimento diferenciado, dedicando-se à árdua tarefa de construir um modelo escolar de educação que permita a circulação de conhecimentos tradicionais, a preservação da língua e a transmissão de valores éticos e morais da etnia, ou de forma mais direta, a manutenção do nhande-reko. Em terceiro lugar, destaco o pioneirismo dos Chiripá no sentido de reivindicar apoio dos órgãos públicos de atendimento à saúde indígena para os tratamentos feitos pela medicina tradicional, tendo sido esta uma grande conquista que se deve sobretudo à enorme capacidade de cura do casal de xamãs que lidera espiritualmente a aldeia de Mbiguaçu, somado à habilidade política e diplomática de Hyral Moreira68, neto do casal. Podemos pensar esta apropriação do sistema do branco como um componente profundamente imbricado com o trabalho do casal de xamãs em revitalizar e preservar costumes antigos, conseguindo regularizar a área onde vivem, utilizando a escola para transmitir sua forma de pensar aos jovens e os recursos do sistema público de saúde para o fortalecimento das práticas religiosas.

Com relação à figura de Hyral Moreira como liderança política, podemos dizer que se trata de um jovem líder muito à frente de seu tempo. Acadêmico de direito em vias de se formar69, Hyral é extremamente pioneiro no sentido de compreender o sistema legal do djurua e adquirir grande habilidade em negociar e angariar apoio de instituições não-indígenas, como universidades, o Ministério Público Federal, ONGs e outras instituições. Um marco de extrema relevância da organização indígena foi a fundação da Comissão Indígena Guarani Nhemonguetá, da qual Hyral é o atual presidente, que é formada por um

67 É importante constar que os três filhos homens do casal Rosa e Alcindo tornaram-se

professores bilíngues dedicados a alfabetização de indígenas, sendo que o filho mais velho, Agostinho (65), foi um educador pioneiro entre as escolas indígenas em diferentes regiões do Rio Grande do Sul desde 1978; o irmão do meio, Geraldo (36), exerce a função de professor na escola de Mbiguaçu desde o fim da década de 1990; e o irmão caçula, Wanderley (32), também participou do curso de magistério e é aluno da licenciatura indígena, sendo que vem trabalhando nos últimos anos como coordenador pedagógico da escola da aldeia. O casal diversas vezes conta como e porque incentivaram à duras custas os filhos a estudar, por não encontrarem mais possibilidade de viver no modo de vida antiga e estarem em dependência do trabalho quase escravo para os brancos para sobreviver.

68 Neste aspecto é importante mencionar que atualmente Hyral é presidente do

CONDISI-LISUL (Conselho Distrital de saúde Indígena - Litoral Sul).

69

A propósito, entre minhas contribuições durante o período em que estive na aldeia, que prossegue até este momento, está a orientação e a revisão de sua monografia de conclusão de curso, que versa sobre as contradições em relação ao entendimento sobre a capacidade civil do indígena no âmbito público e privado, que, todavia se encontra em elaboração.

130

conselho de caciques que delibera sobre todas as questões que envolvem as aldeias guarani de Santa Catarina. A Comissão Nhemonguetá adquiriu ao longo dos anos representatividade e passou a realizar articulações que promoveram o aumento da participação indígena, lutando para assegurar com que os seus direitos respeitados. Ao longo do trabalho de campo participei de diversas reuniões da Comissão Nhemonguetá na aldeia Mbiguaçu, para receber a presidência da Funai, para tratar dos impactos causados por projetos de crescimento econômico sobre suas terras, para formação do Comitê Regional Indígena e para tratar sobre a agricultura. Várias dessas reuniões se iniciaram na casa de rezas e prosseguiram na escola da aldeia. Em uma delas, em meio a alguns discursos acalorados de um dos caciques, senhor Alcindo fez uma fala que considerei genial, dizendo que este é o momento de mostrar para o juruá as leis do Guarani, pois os índios já vem há muito tempo aprendendo a respeitar às leis do branco, mas que agora é o momento de fazer o contrário, para que o juruá entenda a forma de pensar dos Guarani. Neste sentido, é importante mencionar que as leis de cada comunidade são diferentes, mas senhor Alcindo demonstra grande respeito por todas elas, tendo feito inúmeras falas no sentido de que se deve respeitar os caciques, reconhecendo e valorizando sua liderança. Ele afirma que cada comunidade deve ter suas leis, mas que deve haver uma liderança central, que orienta as atividades de todas as aldeias conjuntamente, que assim era a organização antiga dos Guarani, o que podemos relacionar com a organização Chiripá entorno dos nhanderu, das lideranças político- religiosas carismáticas e de grande prestígio, que detinham o controle político de um grupo de aldeias em uma determinada região (CADOGAN, 1959; BARTOLOMÉ, 1977).

Neste aspecto, eu diria que os Chiripá de certa forma se identificam - e de fato atuem - como grandes lideranças políticas e religiosas dos Guarani, utilizando sua habilidade histórica para negociar com o sistema do branco para encontrar meios para prosseguir com sua resistência étnica. Segui os conselhos de meus orientadores indígenas para reparar nos comportamentos dos Chiripá e percebo que de fato estes se posicionam enquanto a vanguarda de seus pares, gostando de intitular sua aldeia como “modelo” para outras da região, com as crianças bem instruídas pela escola, as roças produtivas, sem uso de bebidas alcoólicas e com a manutenção dos costumes religiosos. Neste sentido, percebo que reconhecem em si a conservação de um determinado ethos que visa proporcionar alegria e felicidade na vida -

131 vy‟a porã - por meio das boas práticas, do amor - mborayu -, desejando com isto colaborar para que os parentes de outras aldeias encontrem o caminho para a preservação do nhande-reko.

Penso que a imagem do pai-xamã como ideal de comportamento do Guarani, fez com que ao longo do processo histórico se consolidasse os Chiripá enquanto uma etnia de xamãs, onde todos os afilhados são iniciados na dança-oração, que possuem práticas entre si que visam proteger e cuidar-se mutuamente e conservar o bem-estar psicossocial de seus parentes. Penso que este traço étnico de comportamento conservado pelos Chiripá possa ter uma origem muito arcaica em relação ao modelo de incorporação de elementos externos na sociedade Guarani, agregando estes componentes ao seu universo de sentidos, “guaranizando” as coisas, o que me leva a indagar inclusive que este fator componha um ethos pré-colonial, durante a grande expansão territorial dos Guarani no sul do continente.

O argumento de Carlos Fausto (2005) propõe que a influência dos missionários ao longo do processo históricos teria surtido um efeito de “desjaguarificação” na religião Guarani, o que teria proporcionado uma transformação que incorporou em seu discurso mitológico elementos católicos, como a cruz, o sagrado coração, a centralidade na nomeação das pessoas e, principalmente, um repertório religioso fundamentado no amar - mborayu. O autor menciona a falta de uma investigação sistemática deste afeto, o que buscarei em parte fazer mais adiante, entretanto, considero interessante adiantar o seu uso muito mais frequente como o verbo do que como o substantivo amor. Não me considero apto a fazer profundas discussões com relação aos Guarani pré-coloniais, mas imagino que, tomando-se o argumento de Fausto no sentido de pensar que a incorporação da nova ética do amar “provavelmente se ergueu sobre conceitos nativos como a generosidade e a reciprocidade, e se nutriu do „amai-vos uns aos outros‟ da mensagem cristã” (Ibid., p. 404). Portanto, penso que este ethos de solidariedade e reciprocidade agregadoras possa ter surgido na sociedade Guarani em momento anterior a conquista, como a forma de manifestar sua alteridade, que se vale ao invés de uma lógica da predação, de um pensamento pautado pela cooperação e pelo comensalismo, o que facilita uma incorporação dialógica daquilo com que entra em contato.

O que minha experiência com os Guarani demonstra é que a linguagem do -mborayu ainda é bastante presente nas aldeias por mim visitadas, sendo que os Chiripá, em um plano ideal, procuram exercitar esta afecção o máximo possível em todos os âmbitos de suas vidas,

132

especialmente na vida cotidiana entre os parentes e afilhados agregados ao núcleo familiar do casal de xamãs, especialmente diante dos conflitos. Este sentimento muitas vezes se manifesta em relação a outras aldeias, com a preocupação de que os parentes estejam “passando miséria” e “pegando o costume ruim do djurua”, o que faz com que busque estender sua influência por meio da construção de alianças políticas e religiosas, o que está atrelado a incorporação em maior ou menor grau das práticas xamânicas do casal70. Por diversas vezes pude escutar senhor Alcindo dizer, tanto no contexto cerimonial como doméstico, que seu rezo era para todos os Guarani - mbya-kuery paveῖ.

Certa vez, Geraldo contou-me sobre um sonho que teve durante uma cerimônia na opy onde quando ele cantava-dançava-rezava, todos os seres que estavam à sua volta pareciam zumbis, vagando em sofrimento em meio à escuridão e ele reparou que eram muitos mbya kuery, que vinham cambaleantes como se estivessem trôpegos, caindo de bêbados. Ele contou que se perguntava o que estaria acontecendo para que as pessoas estivessem todas desse jeito Ele se concentrou em seu rezo e sua dança, pedindo orientação para Nhanderu e partir de então começam a surgir em meio à escuridão algumas fontes de luz, que eram espíritos que vinham atraídas pelo rezo, que muitas delas eram os espíritos de crianças guarani que ainda virão ao mundo - mbya-kuery nhe‟ẽ ou avã - e todos eles eram atraídos pelo rezo, pelo canto e pela dança, dos Chiripá, que é muito poderoso. Desde então, Geraldo diz que entende a continuidade das atividades religiosas feitas em Mbiguaçu como uma espécie de “missão” de “levar o rezo pra frente”, de prosseguir conservando as práticas e tradições xamânicas dos Guarani. Geraldo diz que um de seus sonhos é que um dia todos os mbya-kuery possam ouvir, sentir e praticar o rezo guarani, libertando-se dos vícios e vivendo com alegria, bem-estar e saúde - vy‟a porã ete.

70 Ao longo do trabalho de campo pude acompanhar a consolidação de duas dessas

alianças com assentamento de descendência Mbyá, uma com na Terra Indígena Morro Alto/SC (Tekoa Yvy Avate), situada em São Francisco do Sul, com quem possui inúmeras alianças de parentesco (ver VASCONCELOS, 2011); e outra com a aldeia do Amâncio (Tekoa Mirῖ Dju), com quem possui grande relação histórica e política, sendo Hyral Moreira o cacique de ambas as aldeias.

PARTE II ARANDU NHEMBO’EA: COSMOLOGIA, AGRICULTURA E

VI. ARANDU RAPYTA - NOTAS SOBRE COSMOLOGIA