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PARTE I OS GUARANI-CHIRIPÁ NO LITORAL DE SANTA CATARINA

VII. ARAGUYDJE REKO TRANSFORMAÇÕES NO TEMPO ESPAÇO E AGRICULTURA

VII.1 Yvy Araguydje transformações no clima-mundo

O termo araguydje corresponde a uma composição semântica entre o ara, a noção de tempo compósita com o espaço onde se vive, e o aguydje, a ideia de transformação pela qual passam as coisas quando ganham vida no mundo, que faz com que os seres transitem entre os mundos invisíveis e o mundo visível. O processo de transformação está associado com as dinâmicas entre os elementos do clima-mundo, principalmente o sol, as chuvas e o vento, que determinam a luminosidade, a temperatura, a umidade e as transições entre as condições climáticas. Sua correspondência com o ara demonstra uma percepção cíclica no mundo que contrasta com a noção ocidental de tempo, linear e cronológica. A relação entre o arandu e o arakuaa com o Araguydje corresponde ao triunfo de Kairos sobre Chronos, que busca fazer com que o Aion, o acontecimento, se transforme no momento oportuno, o momento da transformação e da renovação, o aguydje.

Egon Schaden (1962) toma de empréstimo a expressão “ciclo ecológico”, utilizada por Evans-Pritchard (1940) para se referir aos Nuer, para falar de um “ciclo econômico anual”, como um “ano

159 eclesiástico” relacionado ao ciclo de vida religiosa, que acompanha as diversas atividades de subsistência, especialmente as fases da cultura do milho (SCHADEN, 1962, p. 46). Entretanto, devido principalmente a sua perspectiva aculturativa, o olhar higienista de Schaden não consegue avançar sobre o entendimento deste ciclo para os Guarani, embora sua abordagem traga muitos elementos interessantes sobre a organização social ligada as atividades agrícolas, apresentando uma concepção de uma “religião do milho”. Neste sentido, a sensorialidade do yvy araguydje, a “transformação do tempo-espaço no mundo-clima”, é norteador da experiência dos Guarani no clima-mundo, estando associada ao ciclo do Ara Yma, o tempo-espaço antigo, que corresponde à época da escuridão onde Nosso Primeiro Grande Pai existia iluminado pela luz de seu coração; e o Ara Pyau, o tempo-espaço renovado, que está relacionado com a criação feita por ele no “curso de sua própria evolução”, que é a força produtora do mundo e mantenedora de todas as coisas que nele existem. Neste sentido, a transformação do tempo- espaço no clima-mundo está associada com a subsistência do guarani, constituindo uma conjugação entre o sistema agrícola e a cosmologia xamânica. Penso que é nesta relação entre o tempo-espaço primevo e a produção da vida cotidiana que se manifesta o parentesco dos Guarani com seus deuses criadores, e é também tempo-espaço da vida familiar, em volta do fogo, pois o yvy araguydje é a própria experiência no clima- mundo.

As palavras de Bartomeu Melià (2001) nos trazem uma boa síntese de alguns aspectos fundamentais relacionados às etapas do ciclo do yvy araguydje, inspirado nos Ayvu Rapyta:

Cadogan, conhecedor como ninguém da cultura guarani-mbyá justifica sua interpretação de Ára yma: “Crendo com isso dar uma ideia do verdadeiro conceito que encerram estas palavras, a tradução que dou é: „ tempo-espaço primevo‟. O ára yma é o tempo-espaço originário, o caos. É também o nome que se aplica ao inverno (...) Quando se trata da semeadura e da colheita, a referência a seus tempos ocorre naturalmente. Há um “tempo antigo e primevo” - ára yma - que também se aplica ao inverno. Assim como também iremos chegando ao „tempo novo‟ - ára pyau -, que significa a primavera. É o tempo propício para as plantações e a semeadura. “Por isso esforcemo-nos em prol das flores da terra (cultivos), acomodemos, meus pais, sítios para as

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flores da terra”. O ara pyau, o tempo e época novos, a primavera, tem também uma conotação cosmológica e religiosa (...) MELIÀ, 2001, p.106-107.

Infelizmente meu aprofundamento no repertório cosmológico sobre o yvy araguydje foi restrito, pois segundo o senhor Alcindo o assunto de “como gira a chuva” é um componente que eu preciso de mais tempo de aprendizado, disse que o registro de sua fala em língua nativa sobre o araguydje poderá ser feita “outro dia”. Digamos que eu não passei da primeira lição, que é a própria prática de plantio e manejo dos terrenos agrícolas. É neste material que concentro a minha abordagem. Pude aprofundar um pouco da cosmologia em minhas aulas com Geraldo, com o estudo dos textos de Cadogan (1971), além das várias interlocuções com os anciãos Rosa e Alcindo acompanhando os processos de circulação de saberes e fazeres entre ele e seus filhos e afilhados, em amplo sentido, que são momentos enriquecedores para minha experiência no mundo.

Segundo o que pude compreender, o ciclo dos ventos é operado por Nhanderu Nhemity, que é uma divindade que cuida das plantações, especialmente da fertilidade das sementes. Sua ação ocorre com o manejo do kutchua89, que é uma forma de vento (yvy-tu) muito intensa, por vezes associada com o vento sul, que espalha as sementes das árvores da floresta. O kutchua é o vento que faz a transformação no clima-mundo no evento chamado Araguydje, levando todas as dificuldades e sofrimentos acumulados ao longo dos meses frios e escuros do tempo-espaço primevo (outono-inverno), para trazer a época do florescimento, do mel, das plantações, da luz e do calor do tempo- espaço renovado (primavera-verão). A articulação com os poderes de Tupã, que traz as chuvas, o “sangue das florestas”, que junto com a iluminação do Sol farão com que nasçam as flores para que as abelhas produzam o mel (ei), - “Porque o que o Nhanderu adora mais é mel” - diz muitas vezes o ancião. A cerimônia religiosa para o Araguydje deste ano aconteceu no dia 03 de agosto, em uma noite de vento sul, com o céu estrelado e a lua crescente. Durante o mês de julho, que foi bastante chuvoso, senhor Alcindo falou bastante sobre o yvy araguydje e a mudança que estava para acontecer com as chuvas.

89 Segundo Geraldo, o nome em guarani de León Cadogan, Tupã Kutchuvi Veve, está

associado com a mesma forma de vento, chamada de kutchuvi, o vento sagrado de Tupã. -veve é o verbo voar.

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Mais tarde na casa do vô, combinamos de espalhar o adubo químico que está no paiol, trazido pela Funai, na área acima da casa da Santa, pois ele já está com a validade vencida a um bom tempo. Conversamos sobre a qualidade do solo do outro lado da rodovia e combinamos de plantar feijão em um pedaço do terreno. Ele me perguntou a minha opinião sobre porque está chovendo nesta época do ano e começou a contar que Nhanderu mandou a chuva porque ele está mudando o tempo, que é para eu “tirar experiência”, prestar atenção no que vai acontecer. Contou que em agosto e setembro ainda vai estar úmido e é a época que devemos plantar esse ano, pois outubro e novembro serão meses muito secos e as plantas irão sofrer nessa época. Ele explicou que cada ano é diferente, que é “salteado”, e que o Nhanderu muda a lei para ir melhor, pois o Tupã é o IBAMA de Nhanderu, que nem o Ibama do djurua, mas este muda a lei e fica cada vez pior, o Nhanderu não, ele muda a lei do clima, muda a chuva, para poder melhorar. Ele mandou a chuva agora para poderem vir melhor as plantinhas, para virem melhor as flores, porque o que o Nhanderu adora mais é ei (mel) e a abelhinha, mas o chefe demora mais para fazer o filhotinho, por isso ele mudou a lei da chuva, para a flor vir melhor e a abelhinha fazer o mel e criar seus filhotinhos. Mesmo quando não chove, as folhas ficam molhadas, na estrada também dá para ver, é o orvalho - tchapy‟y - que o Nhanderu manda para a florzinha vir bem, porque ele adora mais é ei. Disse que eu posso reparar e tirar a experiência, mesmo que ano que vem eu esteja em outro lugar, porque hoje em dia a maioria das pessoas não sabe mais disso, mas que eu devo reparar como Nhanderu muda a lei da chuva para melhorar. Falou também que hoje temos comidinha na mesa e esquecemos-nos de agradecer, mas os bichinhos não, eles toda noite quando vão dormir se lembram do Nhanderu e agradecem, porque eles passam mais sacrifício do que a gente para conseguir alguma coisa para comer e por isso sempre lembram do Nhanderu quando chega a noite. De manhã também, quando ele chega para iluminar o dia, para a gente poder enxergar, a grande maioria das pessoas se esquece de agradecer, ninguém lembra, mas os bichinhos não, eles lembram porque passam mais sacrifício do que nós para encher a barriga, pois todos os dias eles tem de ir atrás de alguma coisa para comer, e a gente não, a gente tem tudo e se esquece de agradecer.

A chuva - oky - é um referencial climático importante no ciclo da vida cotidiana, sobre a qual ouvi falar diversas vezes dizerem que “para o Guarani, a chuva é o feriado”, quando se fica em casa com a família, reunidos em volta do fogo. Nos períodos de chuva é normal que as reuniões diárias na casa de senhor Alcindo e dona Rosa se tornem uma congregação familiar, com filhos, netos, bisnetos, sobrinhos, genros, noras, visitantes, pacientes, sendo muitas vezes dias agitados dentro de casa. A forma de circulação das chuvas é um segredo guardado por senhor Alcindo, que por vezes mencionou o desejo de encontrar outro

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guarani de idade avançada que conhecesse bastante sobre ela, para “confrontar” os conhecimentos sobre o assunto. Para mim é difícil sistematizar com clareza este ciclo das chuvas acompanhando o processo apenas a metade de um ano, mas para ilustrar esta noção de que o ciclo da chuva é “salteado” e de que no yvy araguydje ocorre uma mudança no padrão pluviométrico, fiz um levantamento dos índices registrados nos últimos cinco anos na região da TI Mbiguaçu, na Estação Metereológica de Capoeiras e da Lagoa da Conceição (Florianópolis/SC), onde podemos identificar uma nítida alteração pluviométrica nos meses de julho.

O conhecimento sensível, o arandu sobre o ciclo sazonal e climático, que está profundamente associado às atividades agrícolas e o aprendizado xamânico, tendo sido no período colonial descrito como um controle mágico dos feiticeiros sobre a fertilidade das plantações. Minha contribuição não deseja mais do que chamar a atenção para este campo semântico sensível da linguagem entre o ser humano e o mundo, sobre os quais penso que todavia não tenham sido profundamente explorado pelos estudos etnográficos. O material apresentado aqui é apenas uma breve sistematização sobre o que pude registrar no trabalho de campo.

163 Figura 15 - Índices pluviométricos anuais na região da TI Mbiguaçu/SC (gráficos em escalas diferentes).Fonte: http://www.wunderground.com/ - acessado em 23-11-2011.