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PARTE I OS GUARANI-CHIRIPÁ NO LITORAL DE SANTA CATARINA

VI. ARANDU RAPYTA NOTAS SOBRE COSMOLOGIA “Tenho sempre vivido como índio entre índios;

VI.1 Nhanderu Amba o cosmos chiripá

Nhanderuvutchu Tenondegua - Nosso Primeiro Grande Pai - é o deus criador do universo, que existia inicialmente em meio a escuridão iluminado pela luz resplandecente em seu peito e cria o universo no curso de sua própria evolução - oguerodjera73. Este tempo primordial em que Nhanderuvutchu se esforçava em meio à escuridão para criar o universo com a luz de seus sentimentos - Nhamandu Tenonde Py‟a -, em meio ao tempo-espaço primevo, o Ara Yma; sua concentração faz com que ele passe por uma transformação geradora, o Araguydje, dando início ao tempo-espaço da renovação, o Ara Pyau, quando o mundo começou a surgir. Ele chama seus filhos para realizar a construção do primeiro do mundo, mas sua força era muito grande e a primeira terra foi totalmente queimada. Quando o sol muda seu eixo de circulação do sentido sul-norte para leste-oeste, os deuses puderam finalmente descer para povoar o segundo mundo. Nhanderuvutchu coloca seu popygua no centro da nova terra e assenta palmeiras sagradas - pindovy - na morada de seus filhos, Nhanderu Tupã, Nhanderu Karai e Nhanderu Djakaira, e Nhanderamoi Tadjatchu‟dja, o “Nosso Avô Senhor dos Grandes Pecaris74”, o primeiro enviado ao mundo. Eles são a primeira geração, os Nhanderu-kuery.

A divindade maior cria a cotia e o pica-pau, que são encarregados de comer e transportar as sementes da palmeira sagrada para criar o mundo. Cada um de seus filhos recebe ordens para criar algumas coisas. Nhanderu Tupã é o deus das águas sagradas - para-mirῖ e para-guatchu -, que cria os relâmpagos - overa -, os trovões - ryapu -, controla as chuvas e comanda o ciclo das plantações; sua morada fica no ocidente. Nhanderu Karai é o que domina o fogo, a força do trabalho espiritual; seu nome sagrado em chiripá é Tataendy Ryapudja (CADOGAN, 1971, p. 32) e sua morada está localizada na direção do sol poente. Nhanderu Djakaira é o deus dos ventos, da fumaça, da inteligência, criador do papel e da escrita, é aquele quem comanda os Yvyrai'dja, os “Senhores dos Espíritos das Florestas”, sua morada é na direção sul. Nhandetchy

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A concepção de uma luz que emane no peito da divindade criadora é recorrente nas etnografias clássicas sobre os Guarani, como as narrativas de Nimuendaju (1987): “Ñanderuvuçú surge como o primeiro, e o faz de modo verdadeiramente imponente: com uma luz resplandecente no peito ele se descobre, sozinho, em meio às trevas” (p. 47); e a poética de Cadogan (1997): “Nosso Pai Ñamandú, o primeiro, antes de haver criado, no curso de sua evolução, seu futuro paraíso, Ele não viu trevas: ainda que o sol não existisse, Ele existia iluminado pelo reflexo de seu próprio coração, fazia que lhe servisse de sol a sabedoria contida dentro de sua própria divindade” (p. 27).

139 Yva Oka, o “Pátio do Paraíso de Nossa Mãe”, também chamado de Oka Vucthu (CADOGAN, 1959, p.78) está localizado no zênite, onde ela planta as primeiras sementes criadas por Nhanderuvutchu para a subsistência dos seres humanos, como o milho, a melancia e o tabaco75. Nhanderuvutchu vive acima dos outros deuses, também no centro do paraíso de Nhandetchy. Na direção norte está Nhe‟engue Retã, a morada dos mortos, onde vivem grandes lideranças espirituais do passado.

Identifiquei duas formas para denominar o eixo de leste para oeste, sendo uma delas associada à rotação solar - Kuaaray ouare, de onde o sol vem, e Kuaaray oikeare, onde o sol descansa - e outra em relação à posição dos seres humanos no mundo - nhanderenonde, nossa frente, e nhandekupe, nossas costas. Com relação ao eixo sul-norte, identifiquei duas categorias de posição: tcheyke - meu lado - e nhande- atchuare - nossa esquerda - para localização do norte, e tcheyke rouvai - meu outro lado - e nhande-atchue‟ỹare - nossa não-esquerda - para a direção sul. Existe uma relação deste eixo com a circulação dos ventos e das chuvas, entretanto, não pude identificar nenhuma categoria nativa relacionada a esta noção, embora eu pense que possivelmente exista. O termo para o zênite é nhande-yvapyte, que significa “centro do nosso paraíso”, que fica acima, sobre Yvy Rupa, o leito do mundo terreno dos Guarani, que foi criado por Nhanderuvutchu a partir do centro - Yvy Mbyte -, onde Nhanderuvutchu cravou seu popygua, seu bastão de poder, para começar a edificação do mundo de baixo.

75 Todos os animais e plantas que são domesticados pelos seres humanos somente

existem porque estão plantadas primevamente em Yva Oka, sendo que muitas árvores, especialmente frutíferas e medicinais, possuem o pronome yva, fazendo referência ao fato de eles estarem plantadas no pátio de Nhandetchy, por exemplo, o yvapuru (jabuticaba; Myrciaria cauliflora), o yvapytã (pitanga; Eugenia uniflora) e o yvaro (Prunus spp.).

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Figura 10 - Representação das quatro direções do firmamento dos Chiripá.

As divindades permanecem no “mundo de cima” - Yvy Marã-e‟y, a “terra que não esgota” -, morando sobre o céu azul (ara ovy)-, que me foi descrito como um pavimento que o separa do “mundo de baixo” - Yvy Vai, a “terra má” -, onde vivem de forma semelhante aos humanos, com a diferença de que não morrem, “lá não existe o fim da vida”, por este motivo é chamada “terra que não esgota”. No mundo de cima não existem florestas, a mata é baixa e existem somente poucos tipos de árvores: yary (Cedrela fissilis); tchapy‟y (Macherium minutiflorum Tul.76), yvyrarovi (Helietta longifoliata), yvyra pytã (Ocotea odofifera), yvyra padje (Myrocarpus frondosus), itchongy (Luehea divaricata), yvyra kantchῖ (Casearia silvestris). O sentido do mundo de baixo é o das coisas perecíveis, dos sofrimentos, uma cópia imperfeita do mundo de cima. As coisas que existem embaixo são espíritos que vem dos planos superiores e se transformam (aguydje) em árvores, ervas, rios, pedras,

141 montanhas, bichos e pessoas. Contaram que a araucária (kuri‟y) é a planta mais alta que existe no mundo de baixo, tendo chegado a tocar o céu azul, o “telhado do mundo”, por isso tem os “braços abertos”, em referência a sua em simetria radial com forma de candelabro.

Para cumprir suas missões, os deuses vão povoando o mundo com seus filhos, que vem como portadores de seus poderes, adquirindo habilidades e características de seus genitores. Seus filhos criaram o segundo mundo e viveram nele até que ele foi destruído por uma enchente, dividindo-se em duas partes separadas por Opararutchu, a grande água, o oceano atlântico. Uma delas fica do outro lado do oceano, sendo chamada Yvy Dju, a “Terra Dourada”, sua direção é indicada pelo caminho dourado que se forma sobre o oceano atlântico ao nascer do sol. Ela é habitada pelos antepassados que sobreviveram à enchente e permaneceram na antiga terra, são chamados de Oreramoi Kuery, a segunda geração. “Nosso Avô Senhor dos Grandes Pecaris” sobreviveu a enchente ao fazer uma canoa, na qual levou a sua criação (orymba), seus animais e sementes, vindo para construir a nova terra, o terceiro mundo, chamado de Yvy Pyau.

“Nosso Primeiro Grande Pai” manda seus filhos gêmeos para construir a nova Terra, o irmão maior Kuaaray, o Sol, e o irmão menor Djatchy, o Lua, são os criadores da maior parte das coisas que existem no mundo77. Os gêmeos e sua mulher, Arumbara, chamada de Nhandetchy Ete , criaram os seres humanos atuais, a terceira geração, chamada Tatamino Kuery. Kuaaray é o sol que ilumina este mundo e caminha todos os dias sobre o ara ovy, que separa os dois mundos. Kuaaray é o “segundo sol”, o “filho da sabedoria”, que na linguagem sagrada é chamado de Nhamandu mirῖ78, é também o herói criador dos seres humanos, juntamente de seu irmão menor, Djatchy. Além dos

77 Algumas das versões que escutei falavam também um adultério da mulher de

Nhanderuvutchu com outro homem, que nos remetes as versões colhidas por Nimuendaju (1987), Cadogan (1959) e Bartolomé (1977), onde é chamado de Nhanderu Mba‟ekuaa, que seria de certa forma pai do herói solar. Em outras versões a mulher e esposa do Sol e do Lua, em histórias que misturam uma relação de adultério e poliandria.

O mito dos gêmeos é uma temática privilegiada na cosmologia TG, sendo amplamente tratada em diversos estudos sobre as diferentes parcialidades dos Guarani. Meu objetivo neste estudo não á aprofundar a discussão sobre o mito, mas somente apresentar alguns elementos básicos para meu argumento central. Infelizmente não foi possível trabalhar na transcrição e tradução da narrativa de senhor Alcindo na língua nativa sobre a história dos gêmeos, registrada no trabalho de campo.

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De acordo com meus interlocutores, um termo em chiripá adequado para se referir ao primeiro sol, ou Nhamandu Ru Ete, seria Nhanderu Tenonde Py‟a, o que quer dizer que a expressão Nhamandu estaria ligada mais diretamente à luz de sentimentos que existe no coração de Nhanderu-vutchu, talvez como um deus dentro de outro.

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gêmeos, existem outras personalidades importantes na criação do terceiro mundo, uma delas é Tupã ray, o filho do deus do trovão, que criou para-mirῖ, os rios que existem no mundo de baixo, ao comer uma fruta no alto de uma montanha, formando yỹ guatchu, o Rio Iguaçu. Nhanderu Djakaira é o único deus que desceu pessoalmente à Terra má, por isso conhece as florestas do mundo de baixo. Outro personagem interessante, é o filho de Djatchy com sua cunhada Arumbara, chamado de Peru, o “Pedro Malas-artes”, o mentiroso, o enganador, que é possui o poder de seu pai. Peru enganou muitas pessoas para conseguir benefícios, entre eles sexuais; tendo enganado inclusive o próprio Nhanderu, utilizando um chapéu - ngora -, e por isso vive também na morada de Nosso Pai. Quando partiu deste mundo, Peru traiu os seus filhos que estavam vivos, transformando-os em porcos domésticos - kure -, por este motivo é muitas vezes é chamado de “pai do djurua”, penso que de certa forma em uma oposição ao Nhanderamoi Tadjatchudja, o “Nosso Avo Senhor dos Grandes Pecaris” o ancestral dos Guarani. Kuaaray e Djatchy e os outros filhos dos deuses retornam para a morada de seus pais em Yvy Marã-e‟ỹ, deixando construído Yvy Rupa, o “leito do mundo” para a vida dos Guarani. Desde a terra que não se esgota, os deuses permanecem cuidando daqueles que criaram, e mandam seus filhos para vir ao mundo como nhe‟ẽ, espíritos que orientam as pessoas ao longo de sua vida, dificilmente eles nascem diretamente como seres humanos, embora isto seja possível, relatado para diversos heróis culturais sobre os quais ouvi contarem histórias79.

* * *

Em diversas oportunidades pude ouvir Vera-Tupã dizendo que tudo que existe aqui é porque está lá também, que o que está lá em cima é como o que está aqui embaixo, “só que diferente”. O mundo das divindades pode ser avistado de Yvy Vai quando olhamos para as estrelas (djatchy tata), que são os fogões das moradas dos deuses (Nhanderu kuery rataypy rupa). A cruz das quatro direções do firmamento é uma espécie de mapa também do mundo das divindades, que fornecem orientações sobre os ciclos da vida no Araguydje, das

79 No trabalho de campo ouvi diversas histórias sobre heróis antepassados que eram

guerreiros indestrutíveis e possuíam poderes extraordinários que viviam em meio aos guaranis, muitas vezes agem por meio de sopros - eipedju -, tem poder de manifestar relâmpagos - overa -, utilizam o canto e a dança com mbaraka mirῖ - chocalho - para se concentrar - adjapytchaka - e quando morrem seu corpo se transforma geralmente em tipos de animais ou plantas, como o tchimbo‟y (Paulinia spp. e Enterolobium conttortisillicum).

143 transformações no tempo-espaço. No eixo leste-oeste80 do firmamento está localizado o mbore rape, o caminho das antas, conhecido no ocidente como via-láctea, a galáxia onde se encontra o nosso sistema solar81. As antas são consideradas os animais que descendem diretamente desta região e por este motivo as manchas existentes no dorso desses animais é considerado um desenho do mundo dos deuses. A Grande Nuvem de Magalhães é uma galáxia anã que orbita entorno da via-láctea, sendo chamada pelos Chiripá de Mborevi Nhakangua, o bebedouros das antas, sendo a principal fonte de água para os seres celestiais. Uma das estrelas mais brilhante do céu noturno, próxima ao centro da via-láctea é chamada de Nhanderuvutchu Rokẽ, pois se trata da “porta” de passagem entre o a terra e o firmamento, que corresponde possivelmente à estrela Kaus Australis, que está localizada na constelação de Sagitário, próximo ao centro da via-láctea, estando posicionada no zênite do hemisfério sul entre o fim de julho e o começo de agosto, época em que os deuses cruzam o portal e visitam a terra, viajando em seu mbairu82.

Muitos conjuntos de astros são importantes para a interpretação sobre o firmamento feita pelos Guarani, ligados ao entendimento sobre as coisas que existem no mundo, como o grupo de estrelas chamado de Eitchu, o “vespeiro”, que é a morada dos yvyrai‟dja, os curadores espirituais do mundo das divindades. Elas correspondem às estrelas conhecidas como plêiades, as sete irmãs ou “cabrillas”, que ficam na constelação ocidental de touro indicam com o seu ciclo helíaco, sua posição em relação ao sol, as épocas de chuva e seca, servindo como um norteador para o ciclo agrícolas. Todas as vezes em que uma pessoa se

80 Na verdade, o eixo está localizado mais precisamente no sentido sudoeste-nordeste,

assim como a rota de movimentação diária do sol.

81 Os dados que apresento a seguir estabelecendo relação entre as principais

constelações dos Guarani e as ocidentais se encontram em diálogo com o estudo de Germano Afonso (2006), entretanto, não utilizo este trabalho como uma referência absoluta, pois existem várias divergências entre ele e meus dados de campo.

82 A minha principal hipótese é de que o Nhanderu Vutchu Rokẽ corresponda à estrela

Épsilon Sagittarii ou Kaus Australis devido a descrição de sua posição feita por senhor Alcindo, esta estrela também poderia ser Antares ou Shaula, da constelação de Escorpião, entretanto, considero esta hipóteses menos provável porque a melhor época de visualização delas é entre o fim de maio e o começo de junho, o que não corresponde à época em que Nhanderu Vutchu cruza o seu portal para visitar à terra, além da estrela estar localizada em Guyra Nhandu, a constelação da ema. Tratei dessa época de “visita” dos deuses a Terra em outra oportunidade (OLIVEIRA, 2009). Outra possibilidade para a posição deste “portal” é a estrela Deneb, a mais brilhante da constelação do Cisne (Cygnus), que segundo Germano Afonso (2006) é chamada pelos Guarani de Nhanderu. Segundo meus interlocutores, esta constelação é chamada de Tchivi po, que quer dizer a “pata da onça”, em referência a posição triangular das estrelas.

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torna um yvyrai‟dja, um dos nhe‟ẽ que vive em Eitchu vem para este mundo e passa a acompanhar um curandeiro, transmitindo à ele informações sobre os procedimentos terapêuticos e o apoiando na realização de benzimentos para curas espirituais. Vênus, a estrela d‟alva, é a morada de Arumbara, outro referencial importante para o calendário agrícola, sendo chamada por dois nomes distintos conforme a época de visualização, que pode ser matutina (kaaru mbidja) ou vespertina (koẽ mbidja) (ver. AFONSO, 2006). Outro referencial importante é o Kurutchu, conhecida no ocidente como cruzeiro-do-sul, tendo sido descrita por senhor Alcindo como uma nave de Nhanderu, utilizada por eles para fazerem suas viagens diárias em seu mundo, “que nem um avião”, sendo avistado em posição leste do território Guarani. A posição do cruzeiro-do-sul demora exatamente 24 horas para realizar uma volta completa no céu sul-americano, servindo como um referencial sensível no tempo-espaço noturno. Estas foram as principais constelações sobre as quais tive oportunidade de conversar com senhor Alcindo ao longo do trabalho de campo, além de algumas outras reconhecidas por ele, como o Guyra Nhandu (ema), o Guatchu (veado) e o Tudja‟i (velhinho), sobre as quais infelizmente não aprofundamos o diálogo.