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4.2 A Comunidade Européia como instituição jurídica regional

4.2.4 A posição da instituição jurídica européia perante a OMC

Não obstante a ausência de um desfecho quanto à avaliação de conformidade da exceção regional da CEE – e seus posteriores alargamentos –, o êxito da última rodada de negociações do GATT, iniciada em 1986 e terminada em 1994, teve ao seu final a formalização de uma série de mudanças no sistema jurídico positivo que regia os intercâmbios comerciais.

Na época do lançamento da rodada, a Comunidade “dos doze” já era a mais importante pot ência comercial no mundo. Contudo, a Europa demonstrava sinais de fraqueza interna para o mundo exterior . Isso porque, apesar de a Comissão Européia ter de iniciar e executar decisões para seus Estados -membros nas negociações comerciais internacionais , suas propostas pr ecisavam ser aprovadas primeiramente pelo Conselho Europeu . Diante disso, alguns autores afirmam que essa divisão interna era prejudicial ao papel da instituição européia como líder do sistema internacional de comércio .

Por outro lado, em direção ao final da Rodada Uruguai (começo dos anos 90), a liderança dos EUA também foi enfraquecendo . O presidente Clinton, valendo- se de pressão protecionista de seus agricultores, emperrou a conclusão de um Acordo na Rodada Uruguai . Em contraste, Leon Brittan, Comiss ário Europeu naquele tempo e respons ável pela política comercial da Comunidade, adotou um papel mais afirmativo. Nessa condição, em novembro de 1992 costurou-se o acordo de “Blair House” entre os EUA e a Europa, dirimindo suas divergências no tema da

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agricultura. Esse fato tornou a liderança entre os EUA e Europa no âmbito da Rodada Uruguai mais equilibrada314

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Como resultado final, o Acordo OMC contemplou, em disposição específica, o novo status da instituição européia como membro originário da OMC:

Artigo XI, § 1º. As Partes Contratantes no GATT de 1947 à data da entrada em vigor do presente Acordo e as Comunidades Européias, que aceitem o presente Acordo e os acordos comerciais multilaterais e para as quais são anexas listas de concessões e de compromissos a o GATT/1994, bem como listas de compromissos específicos ao GATS, tornam -se Membros originários da OMC. [grifou-se]

A partir desse momento, a s Comunidades Européias , além de todos os seus Estados-membros, passaram a integrar formalmente o quadro de membros da OMC. Isso decorre da divisão de competência entre as Comunidades Européias e os Estados-Membros em várias áreas cobertas pelo acordo OMC (comércio de bens, serviços, propriedade intelectual).

Como está claro no mencionado artigo XI e ainda nos artigos IX315

e XIV316

do acordo OMC, as Comunidades Européias (e não a Comunidade Européia ou União Européia), em conjunto, é que passaram a deter status de membro da OMC. Esse fato se deu em virtude de, ao tempo das negociações para sua acessão, não estar claro se a CE (uma dessas três Comunidades) tinha a competência necessária para concluir o acordo OMC.

Na opinião 1/94, a Corte Européia de Justiça (CEJ) estabeleceu que, das então três Comunidades (CE, CECA e Euratom), só a CE precisava estar envolvida na OMC. Entretanto, a clarificação da CEJ sobre a situação legal não veio a tempo da assinatura do acordo OMC. Além disso, as Comunidades Européias e os Estados

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LEAL-ARCAS, Rafael. The EC in GATT/WTO negotiations: From Rome to Nice – Have EC Trade Policy Reforms Been Good Enough for a Coherent EC Trade Policy in the WTO? European Integration online Papers (EIoP) Vol. 8, n° 1, 2004. Disponível em: <http://eiop.or.at/eiop/pdf/2004 - 001.pdf>. Acesso em: 24 nov. 2008.

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Acordo OMC. Tomada de decisões. Art. IX, § 1º, [...] N os casos em que as Comunidades Européias exerçam o seu direito de voto, disporão de um número de votos igual ao número dos seus Estados membros que sejam Membros da OMC [...]. (nota 2) O número de votos das Comunidades Européias e dos seus Estados-membros não ultrapassará, em caso algum, o número dos Estados-membros das Comunidades Européias. [grifou-se]

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Acordo OMC. Aceitação, entrada em vigor e depósito . Art. XIV, §1º. O presente Acordo ficará aberto à aceitação, através de assinatura ou de qualquer outro modo, das Partes Contratantes no GATT de 1947 e das Comunidades Européias , que são elegíveis pa ra se tornarem Membros originários da OMC em conformidade com o disposto no artigo XI do presente Acordo [...] . [grifou- se]

membros da União Européia são membros plenos da OMC e as obrigações do acordo se aplicam igualmente a todos317

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Apesar da conformação do direito positivo OMC em relação à condição da instituição jurídica européia perante o sistema multilateral de com ércio, bem como a opinião da própria CEJ, a situação permanecia não resolvida .

O duplo status jurídico que a CEE e seus Estados-Membros possuíam no GATT, agora ocorria entre a CE e seus Estados -Membros. Esse múltiplo status evidenciava a possibilidade de que, em diferentes situações, a instituição jur ídica européia pudesse escolher a que lhe melhor aprouvesse. Embora explicitamente mencionada como membro, a CE ainda recaía nos comandos do Artigo XXIV do GATT, e da mesma maneira que ao tempo do GATT/1947, a CE se utilizava uma vez mais da ampla interpretação do artigo XXIV318

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Ademais, a estrutura interna da institui ção européia permite aos membros da OMC endereçarem suas reclamações para um grupo de membros individuais da CE e não para a CE como um todo. Esses casos acabam sendo geridos, de qualquer modo, pela representação supranacional da CE , e seu significado parece ser puramente político.

Segundo Likovà, sob o GATT/1947 bem como sob a OMC, os Estados - membros da UE se beneficiam do poder negociador e político da Comissão Européia. Nesse contexto, terceiros Estados concordaram em considerar a divisão interna de poderes comerciais do bloco europeu. Daí a facilidade de resolver a questão da posição nos litígios que envolvem a CE. Isso porque seus Estados- membros permanecem membros soberanos da OMC, podendo lá atuar – ao menos em teoria – de modo autônomo, inclusive no procedimento de solução de controvérsias, o que, entretanto, é improvável de ocorrer, pois essa ação violaria a divisão interna dos poderes comerciais da UE. Uma ação autônoma por parte de um membro da UE na OMC poderia constituir violação do direito comu nitário e deflagrar um procedimento sobre a respectiva violação. Essa informação ajuda a entender a

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VAN DEN BOSSCHE, 2005, p. 105 -106.

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BARTELS, Lorand. The Legality of the EC Mutual Recognition Clause Under WTO Law, Journal of International Economic Law, Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 712 -717. Outras solicitações foram feitas no sentido de reconhecer o status especial da CE em razão de seu caráter político mais desenvolvido, argumentando ser uma espécie de Estado com c omposição soberana que a impede de recair na acepção do termo união aduaneira ou área de livre comércio do artigo XXIV.

razão pela qual, em raras ocasiões, os membros da OMC endereçam suas reclamações para um grupo de membros individuais da CE e não para a CE como um todo. Dentre os terceiros Estados que se valem dessa estratégia se incluem os Estados Unidos, com a adesão ocasional de outros Estados319

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Esse caráter ambivalente chegou ao Órgão de Apelação da OMC320

, em decisão recente para o caso EC – Selected Customs Matters . Na controvérsia, os EUA atacaram a consistência da classificação e valoração aduaneira utilizada pela Europa frente às regras da OMC, mas tomou-se o cuidado especial em evitar lidar com possíveis conseqüências externas dessa divisão interna de poderes existen tes na UE

A peculiaridade da alegada violação resultou da mistura de natureza jurídica de suas origens. Embora emoldurado por uma série de regulamentos da CE, a administração aduaneira é tradicionalmente executada pelas autoridades nacionais dos Estados -membros da CE, como no caso de qualquer outra disposição do Direito Comunitário. Portanto, enquanto identificava as medidas tidas como inválidas, os EUA se reportavam não somente à legislação supranacional , mas também às inúmeras formas de administração dess as medidas introduzidas pelas autoridades aduaneiras dos Estados -membros. Os EUA denunciaram como inconsistente frente à OMC:

na ausência de quaisquer processos ou instituições que obriguem diferentes partes do aparato da administração aduaneira da CE a ag ir uniformemente, a concepção e a estrutura do sistema aduaneiro europeu, é necessariamente resultado de uma administração não uniforme321.

Com efeito, os EUA afirmaram que a administração aduaneira da instituição européia é organizada por meio de 27 autoridades aduaneiras separadas , independentes e que não fornecem nenhuma instituição ou mecanismo para conciliar as divergências automaticamente e questões legais quando elas ocorram .

Aceitando parcialmente a reclamação norte -americana, o Órgão de Apelação recusou o convite para desaprovar o sistema aduaneiro europeu “como um

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LIKOVÁ, Magdalena. European Exceptionalism in International Law, The European Journal of International Law, Vol. 19, nº 3, 2008. Disponível em: <http://ejil.oxfordjournals.org/cgi/content/full/19/3/463#RFN44>. Acesso em: 24 nov. 2008.

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WT/DS315, EC – Selected Customs Matters

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todo”322

, afirmando que não estava apto a completar essa análise em razão de o Grupo Especial ter examinado “a operação dessas instituições e mecanismos isoladamente, não discutindo como eles interagem na administração aduaneira do Direito Comunitário da CE”323

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Esse caso demonstra, particularmente, a desafiadora situação que o processo de integração europeu pode acarretar aos seus Estados -membros. Embora nenhum deles tenha sido alvo individual da reclamação dos EUA, qualquer dos Estados-membros da CE poderia ter sido acionado . A Comissão Européia certamente teria interferido, e muito provavelmente encarado a disputa. No entanto, alguém poderia ter sustentado novamente que a origem das medidas a duaneiras nacionais da CE é bastante remota e sua causa imediata é nacional .

Por outro lado, todo empreendimento da integração Européia repousa na capacidade de os Estados-membros implementarem e administrarem o direito comunitário. Como já mencionado, es sa última característica é uma parte dos arranjos domésticos da UE que terceiros Estados podem ou não levar em consideração. Dentro da OMC, isso é geralmente o caso porque a CE usualmente abriga os Estados-membros diante das reclamações de medidas da UE confrontadas com o direito OMC .

No entanto difere de outras áreas internacionais quando a CE ou UE não tenha adquirido a plena condição de membro . Dois exemplos proeminentes são a Corte Européia de Direito Humanos e a Carta das Naç ões Unidas; nenhuma delas permite a participação de outros sujeitos internacionais que não sejam os Estados . Em respeito a ambas, a UE tem engendrado um direito com efeitos não negligenciáveis, capaz de responsabilizar internacionalmente seus Estados - membros324

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Investigada a situação da CE – agora diante da OMC – cabe ainda fazer algumas digressões a respeito das repercussões que a experiência de integração européia tem deixado para os membros da Comunidade Econômica Internacional.

322 WT/DS315/AB/R, §§ 271 -287. 323 WT/DS315/AB/R, § 287. 324 LIKOVÁ, 2008.