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A possibilidade da autoria

A autoria na escrita de crianças é um campo de estudos fértil na área de ensino de língua materna (CALIL, 2004; 2008, POSSENTI, 2002; 2013). Nesses trabalhos, autoria é compreendida como a possibilidade de os sujeitos apropriaram-se das palavras alheias.

Os trabalhos de Eduardo Calil (2004, 2008), por exemplo, tomam como objeto de estudo a relação entre quem escreve e o texto escrito, para tanto, estudam o processo de escrita de manuscritos escolares, apreendido através do registro da interação de duas crianças, Nara e Isabel, trabalhando juntas na escrita de diversos textos.

Na análise dos dados de pesquisa, o autor (CALIL, 2004) apontou que o sentido surge “nas relações entre os textos e suas articulações com as formações discursivas” (p. 18). Esses movimentos são marcados pela submissão do sujeito à língua e ao discurso. Contudo, essa

mesma submissão que limita o que pode ser dito, é também o que abre brechas para a ruptura, a transformação. Nas palavras do autor:

[...] nas práticas de textualização há o ‘já dito’ e através dele o sujeito ‘se mostra como uno’ (processo de identificação (imaginária)), mas também há a possibilidade para o inesperado, para a ruptura na medida em que o sujeito é capturado por termos que formam outras redes de interpretações, rompendo com formações discursivas dadas (CALIL, 2004, p. 52).

Reproduzimos um exemplo de como essas rupturas aparecem no processo de escrita de Nara e Isabel, registrado por Calil (2004, p. 144):

[...]

NARA: – Um dia...

ISABEL: – (entendendo outra coisa) Bom dia?!.. aiiiii...

NARA: – Um dia umm... não... Era uma vez! Não... Ééééé... não, não, não, não... Então...

ISABEL: – Ah! vai Nara isso é (S.I)... (rindo)

NARA: – ... vai tá bom. Era uma... era uma vez... (Isabel escrevendo) ... então era uma vez... então era uma vez... então era uma vez em... (olhando para outras crianças) ISABEL: – Era uma vez um japonês...

NARA: – que cagô na boca dos cêis treis... ISABEL: – Ah, não! Pára.

(PEQUENA PAUSA)

NARA: – Então... então... uma rainha... uma raiinhaaa... [...]

Esse diálogo ocorreu no momento em que as duas meninas escreviam a história, que se chamaria A rainha comilona. Ao discutir com Isabel como poderiam começar a história, Nara repete diversas vezes a expressão “era uma vez”, comumente utilizada no início de contos de fada. Interrompendo a colega, Isabel adicionou a expressão “um japonês”, que foi prontamente completada por Nara com o enunciado “que cagô na boca dos cêis treis...”.

Para o autor (CALIL, 2004), percebe-se, nesse registro, o caráter cômico das sugestões de Isabel e Nara para completar o enunciado “Era uma vez”. Aproveitando-se da sonoridade da expressão, as meninas propuseram complementos inusitados, considerando o que esperado para um conto de fadas tradicional.

Partindo da análise feita por Calil (2004), gostaríamos de salientar o momento em que Isabel deixa de concordar com a brincadeira, afirmando: – Ah, não! Pára. Em nossa avaliação, essa desistência em continuar o jogo verbal ocorre pois, provavelmente, a menina sabia que o texto que elas estavam escrevendo era uma produção escolar, que passaria pelo crivo de um professor. Sabia, ainda, que na cultura escolar, há elementos que, validam, ou não, os enunciados com os quais ela mesma e sua colega brincavam.

Ademais, sendo crianças que tiveram contato com diversos materiais de leitura, possivelmente, conheciam as características de um conto de fadas e dos tipos de personagens e ações que, geralmente, fazem parte dessas histórias. Isso significa que as meninas elaboraram hipóteses a respeito do que pode ou não ser dito (no caso, escrito) em uma dada conjuntura, ou seja, estiveram submetidas à incidência das formações discursivas que circulam na instituição escolar (PÊCHEUX, 1983/ 1997).

Se todo discurso, incluindo o escolar, está submetido a leis externas que regulam o que pode ou não ser dito, qual é a medida em que o aluno pode e/ou consegue arriscar e, ao mesmo tempo, ser reconhecido como parte daquela comunidade linguística? É a respeito dessa possibilidade que discorreremos, a seguir, a partir dos trabalhos de Possenti (2002; 2013).

Para discutir um conceito de autoria que abarcasse textos escolares, Possenti (2002, 2013) partiu da noção trabalhada por Foucault (1970/ 1996; 1970/ 2001). Para este, a autoria é pensada em termos discursivos, caracterizada pela fundação de uma discursividade e a construção de uma obra. Estudando a questão da autoria, Possenti (2013) afirmou que há uma lacuna no que se refere a outros espaços que não sejam os de uma obra ou de uma discursividade. Em suas palavras,

Nada disso, evidentemente, se aplica a narrativas quotidianas ou a textos escolares, nem mesmo à maioria dos textos jornalísticos como os que são assinados, sejam reportagens ou colunas de opinião (que, no entanto, selecionadas e agrupadas, podem ser uma das vias da constituição de um autor) ((POSSENTI, 2013, p. 242).

Em busca de uma definição de autoria que considerasse textos que não compõem uma obra, Possenti (2001) apresentou uma noção de autoria compatibilizada com a Análise do Discurso e com as noções de enunciação e estilo. Nessa perspectiva, autoria poderia ser pensada como uma manifestação peculiar relacionada à escrita que pressupõe a inscrição em uma determinada discursividade, levando em consideração a singularidade de quem escreve. Seria, nas palavras do autor,

[...] postular não uma espécie de média estatística entre o social e o individual, mas de tentar captar, através de instrumentos teóricos e metodológicos adequados, qual é o modo peculiar de ser social, de enunciar e de enunciar de certa forma, por parte de um certo grupo e, eventualmente, de um certo sujeito. Trata-se, em suma, de priorizar o pequeno, o quase desprezível indício [...]. (POSSENTI, 2001, p. 96)

Para dar objetividade à noção de autoria, Possenti (2002) indica três atitudes assumidas por um “autor”:

a) Dar voz aos outros enunciadores: Trata-se, nos termos de Ducrot (1987) de assumir-se como um locutor (L) e gerenciar os enunciadores (E) que traz para seu texto. O “como” estaria no arranjo dos diferentes enunciador(es) no texto.

b) Manter a distância em relação ao próprio texto: Nesse caso, relacionada ao item anterior, seria a habilidade do autor em separar-se, enquanto pessoa, do locutor (L) e dos enunciadores que gerencia em seu escrito.

c) Evitar a mesmice: Se um bom texto tem a ver com um “como”, este item trata da maneira singular através da qual pode-se dar voz aos outros enunciadores em um texto.

O conceito de indícios de autoria (POSSENTI, 2002), ao tratar dos modos pelos quais um sujeito, que ainda não tem uma obra, encontra possibilidades de incluir sua singularidade na comunidade discursiva da qual faz parte, nos é muito caro. Contudo, nosso interesse está em evidenciar, em textos escolares, quais são as marcas recorrentes na produção de um mesmo sujeito. A partir da discussão de Possenti (2002) pressupomos que essas marcas podem estar em como os sujeitos gerenciam os enunciadores do próprio texto.