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Façamos um rápido exercício. Considerando-se os últimos 100 anos, quem são as personalidades que, com sua arte, reconhecidamente marcaram a geração a qual pertencem ou pertenceram? O que elas fizeram para que suas obras e seu nome permanecessem na história? A primeira personalidade que veio ao pensamento da autora deste trabalho foi o escritor brasileiro Guimarães Rosa. Ao refletir a respeito da obra rosiana, Coutinho (2006) destaca dois aspectos que, a princípio, podem parecer dissonantes: a renovação e a tradição. O primeiro refere-se ao trabalho linguístico empreendido na construção das narrativas e, o segundo, aos falares do sertão de Minas Gerais e à exploração de mitos e lendas. Em suas palavras (COUTINHO, 2006, p. 1-2), Guimarães Rosa é:

Avesso a tudo o que se apresenta como fixo ou natural, cristalizado pelo hábito e instituído como verdade inquestionável, Guimarães Rosa empreende ao longo de toda a sua obra verdadeira cruzada em prol da reflexão, desencadeando, por meio da linguagem, um processo de desconstrução, que desvela constantemente sua própria condição de discurso e seu consequente caráter de provisoriedade.

[...]

Seu discurso, construído de antemão pela comunidade a que pertence, é incorporado por ele sem nenhuma indagação, e sua expressão se revela como a ratificação de uma prática tradicional, que se impõe inexoravelmente, naturalizando o não-naturalizável e camuflando consequentemente o seu caráter de construção.

Se repetirmos o exercício proposto no início deste item e listarmos outros artistas, provavelmente, destacaremos seu caráter subversivo e/ ou inédito. Assumir essa posição é assumir um risco, afinal, trata-se de colocar à prova de uma comunidade algo que, até então, não foi experimentado. Discorreremos, a seguir, a respeito dessa posição subjetiva.

O Sujeito ($), clivado pelo inconsciente, encontra seus modos de ser e estar no mundo na instância do grande Outro (A), “lugar do tesouro do significante” (LACAN, 1960/1998, p. 820). Essa instância vai constituindo-se a partir do que a cultura, a família, os pares ofereceram a esse sujeito e da resposta desse sujeito a esses significantes que lhe atribuíram. Estamos referindo-nos ao registro Simbólico (LACAN, 1954-1955/1985), o sistema de significantes que constitui um sujeito e o agrega em uma cultura.

Sendo constituído por uma cadeia de significantes, o Outro não tem todas as respostas ou, nas palavras de Lacan (1960/1998), “não há Outro do Outro” (p. 27). Quando o Sujeito considera essa falta, pode responder a ela com o mais singular de sua criação e ser reconhecido por aquilo que produziu. Posteriormente, em suas elaborações, Lacan (1975-1976/2007) indica que o que faz suplência ao furo da linguagem é o Real, entendido como o registro do que não pode ser simbolizado.

Essa compreensão é substancial para a discussão a respeito do estilo. De acordo com Lacan (1975-1976/2007), a linguagem não exprime a totalidade das experiências humanas. Como verbalizar, por exemplo, o sentimento decorrente da perda de um ente querido? Ou a emoção de ver nascer seu primeiro filho? Voltando ao exemplo da prosa de Guimarães Rosa, ainda que possamos descrever as marcas estilísticas que compõem os seus textos, não é possível depreender a sensação que essas escolhas causarão em cada leitor, tampouco, sabe-se o que levou o escritor mineiro a escrever do modo como escrevia. Esse “furo” vem a ser habitado pelo Real.

O Real, segundo o autor (LACAN, 1975-1976/2007), apenas tem ex-sistência ao encontrar redenção através do Simbólico e do Imaginário. Para representar a interdependência

dos três registros, que representariam o essencial da atividade humana (LACAN, 1975- 1976/2007), Lacan elaborou uma representação topológica do nó borromeano.

No seguimento de suas pesquisas, Lacan (1975-1976/2007) atentou para o fato de que nem sempre é possível que os três registros se complementem mutuamente. Para esses casos, indicou a possibilidade do sinthoma, que representou como uma amarração para os três registros, o Real, o Simbólico e o Imaginário.

Figura 5 – O sinthoma borromeano

Fonte: LACAN (1975-1976/2007, p. 91)

O simbólico, relacionados à metáfora paterna, não necessariamente será uma instância que funcionará para todos os sujeitos. Ora, conforme discutimos neste capítulo, o assujeitamento ao Outro simbólico é condição para o estilo. Contudo, para Lacan (1975- 1976/2007), é possível fazer suplência a essa falta e, assim, deixar sua marca singular no mundo. Essa suplência, que amarra os três registros, é o sinthoma.

A noção de sinthoma foi elucidada na obra lacaniana (LACAN, 1975-1976/2007) a partir do estudo da vida e da obra do escritor Irlandês James Joyce. Na perspectiva de Lacan (1975-1976/2007), o sintoma (sem “h”) de Joyce está centrado na figura paterna, pois “seu pai era carente, radicalmente carente” (p. 91). A questão paterna foi, então, para Joyce, suprida com sua obra, o seu sinthoma. Lacan (1975-1976/2007) admite que o escritor irlandês não teve oportunidades de construir uma relação de assujeitamento com o Outro simbólico linguageiro. A respeito desse aspecto, Lacan (1975-1976/2007, p. 23) explica que:

O Outro do qual se trata manifesta-se em Joyce, uma vez que ele, no final das contas, é sobrecarregado de pai. Na medida em que esse pai, como se verifica em Ulisses para subsistir, deve ser sustentado, Joyce, através de sua arte – essa arte que, desde o recôndito dos tempos, aparece-nos sempre como nascida do artesão –, não apenas faz sua família subsistir, como vai torná-la, se podemos dizer assim, ilustre. [...] É essa a missão que Joyce se dá.

A arte de Joyce, conforme Lacan (1975-1976/2007), faz suplência ao peso do simbólico. Sua literatura, por meio da qual ele reinventa a sua língua materna, é o seu sinthoma.

2.2.1 O risco: do chamado para a aventura à arte

Devido à faixa etária dos participantes desta pesquisa, não temos condições de conjecturar a medida na qual suas produções seriam resultantes de seu sinthoma, posto que, na teoria psicanalítica, esse conceito é utilizado para discutir o percurso de sujeitos adultos, já constituídos. Contudo, podemos tentar, seguindo as recomendações de Freud (1937), construir, a partir dos indícios encontrados em seus textos, instâncias da implicação subjetiva necessária para o processo criativo e, consequentemente, para as manifestações do estilo.

Dando consequência ao dizer de Lacan (1966/1998), segundo quem O estilo é o homem a quem nos endereçamos, discutimos o papel da alteridade na constituição subjetiva, evidenciando que é na relação com os pares que se constitui a subjetividade. Assim, por meio do vínculo com o outro empírico, representado pela figura materna, construímos o registro do Imaginário. A partir da apreensão dos diferentes papéis que os seres humanos ocupam na sociedade, estrutura-se o registro Simbólico. E, finalmente, tudo o que não pode ser simbolizado, faz parte do registro do Real.

Como explicitado na introdução deste texto, a tese que norteia este trabalho é a de que as manifestações do estilo estão relacionadas às possibilidades de transcender a instância do Outro (A). Sendo o Outro constituído por todos os significantes da cultura e formado no inconsciente dos sujeitos, é na perene desconstrução de si e da cultura que o estilo pode vir a existir. Assim, propomos que o estilo é uma das respostas para incompletude do Outro, a qual é representada, na topologia lacaniana, pelo símbolo A. É um a-riscado. Partimos, assim, dessa homofonia para nomear as formas de transcendência da cultura. Trata-se de arriscar.

A noção mais usual de arriscar sinaliza para uma atividade realizada de maneira despretensiosa e, até, inconsequente. Não intencionamos, contudo, que se associe as possibilidades de manifestação do estilo com uma sujeição ao acaso. Permitimo-nos, para esclarecer nossa posição, recorrer a uma metáfora. Arriscar-se, para nós, pode ser aproximado

do que Campbell (1949/1989) nomeou como chamado para a aventura. Trata-se do começo da saga de um herói que, apresentando-se como casualidade, revela algo sobre o protagonista.

Um erro – aparentemente um mero caso – revela um mundo insuspeito, e o indivíduo entra numa relação com forças que não são plenamente compreendidas. Como Freud demonstrou, os erros não são um mero acaso; são, antes, resultado de desejos e conflitos reprimidos. São ondulações na superfície da vida, produzidas por nascentes inesperadas. E essas nascentes podem ser muito profundas – tão profundas quanto a própria alma. O erro pode equivaler ao ato inicial de um destino (CAMPBELL, 1949/1989, p. 50).

Arriscar-se é tomado, portanto, como uma escolha subjetiva. Uma oportunidade de responder a uma demanda com o que há de mais representativo de si, o falasser (LACAN, 1975-1976/2007), termo cunhado por Lacan para enfatizar a dimensão da linguagem enquanto constitutiva do inconsciente.

Nessa discussão, a partir de uma analogia com o sobrenome de James Joyce, Lacan (1975-1976/2007) assinala as possibilidades de gozo – joy (em inglês) – através da arte. Para ele, a criação artística, ao implicar o corpo na construção de uma obra, suscita no artista uma sensação de prazer. Esse gozo, por ser uma conjugação entre o Simbólico e o Real, pode ser compartilhado com os pares. Por isso que a arte, ao representar o que há de mais singular de quem a produziu, ressoa no corpo de quem a aprecia (LACAN, 1975-1976/2007). Assim, podemos afirmar que os seres humanos se valem da falta constitutiva da linguagem para se conectarem por meio da arte

O percurso realizado até aqui buscou evidenciar como se constrói uma posição subjetiva cujo desenlace possa ser o estilo. Enfatizamos que, para tanto, faz-se necessário considerar a falta que é constitutiva da linguagem, bem como as possibilidades de subversão desse sistema.. É a partir dessa relação do sujeito com a cultura em que está inserido que se produz e se aprecia a arte.

Os estudos da linguagem, voltados para as manifestações do estilo, consideram, a partir da análise das produções linguageiras, o desvio como constituinte do estilo individual. Esse será o assunto do próximo item deste capítulo.