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O percurso teórico empreendido neste capítulo permitir-nos-á realizar, na sequência, algumas afirmações a respeito do estilo.

A partir das contribuições da psicanálise de orientação lacaniana, tomamos o estilo como uma posição subjetiva que se constrói, em dois tempos, na relação com a alteridade. Assim, as manifestações do estilo estão, primeiramente, relacionadas com os modos por meio dos quais os seres humanos se assujeitam a uma cultura. Posteriormente, conectam-se aos modos como eles colocam-se em uma posição desde a qual possam transcendê-la em suas produções. A transcendência é aqui tomada como a possibilidade de ir além do que é esperado ou determinado em uma dada comunidade linguística. Trata-se, conforme já afirmamos, de arriscar. O risco, contudo, não é inconsequente.

Tomemos, para dar um exemplo, um pequeno manuscrito que ganhou grande popularidade nas redes sociais, em agosto de 2018. A partir de uma breve análise do escrito e de seu contexto de produção, ilustraremos como o risco é constitutivo do estilo na escrita.

O texto é um bilhete, produzido por Gabriel Lucca, um menino de 5 anos que vive em um município do interior do estado de São Paulo (MARTINS, 2018):

Figura 6 – Bilhete escrito por Gabriel Lucca

O texto aqui reproduzido, entregue à mãe de Gabriel, Geovana Santos, pelo próprio menino, inicia-se com o vocativo, “senhores paes (sic)”, e informa ao interlocutor a respeito de um suposto recesso escolar, ocasionado por um possível feriado. O comunicado é assinado por “tia Paulinha” e apresenta, na última linha, uma ressalva: “é verdade esse bilete (sic)”.

Segundo Geovana, Gabriel lhe entregou o comunicado rindo da própria brincadeira. Ela, então, enviou uma fotografia do bilhete para a professora, que o divulgou em uma rede social. A partir de então, o texto foi compartilhado por milhares de pessoas. Posteriormente, originou uma série de montagens nas quais o início da mensagem retratava uma informação não verídica acerca de um determinado assunto e eram concluídas com a frase “é verdade esse bilete (sic)”. Para que se tenha uma noção da repercussão da brincadeira de Gabriel, o enunciado “É verdade esse bilete (sic)” foi o terceiro meme17 mais buscado por brasileiros por meio do portal Google,

no ano de 201818.

O que fez essa brincadeira de criança tomar proporções tão grandes?

Em primeiro lugar, Gabriel demonstra conhecer os modos de funcionamento das escolas, no que diz respeito à comunicação com os pais. Sabe que eventos escolares como reuniões, celebrações ou recessos são informados aos pais por meio de comunicação escrita.

Em relação a essa escrita, o menino reproduziu elementos constitutivos do gênero textual bilhete: iniciou a produção com um vocativo – senhores pais –, escreveu uma mensagem curta e objetiva e, ao final do texto, e incluiu a assinatura do suposto remetente, a tia Paulinha.

Gabriel também conhecia o funcionamento desse tipo de comunicação: o bilhete seria enviado por sua professora, a quem o menino atribuiu a autoria da comunicação, e deveria ser entregue aos responsáveis, o que o garoto garantiu que acontecesse.

O fato de uma criança produzir um “falso” bilhete, a sério ou por brincadeira, não é algo que chamaria a atenção de muitas pessoas. No entanto, a produção de Gabriel tem uma particularidade: a afirmação da veracidade da mensagem ao final do texto. Lembremos que, segundo o relato da mãe, Gabriel já entregou o bilhete rindo da situação. Assim, o é verdade esse bilete, consiste, na verdade, da afirmação de sua invenção.

17 Um meme, de acordo com o Dicionário Cambridge online é uma ideia, uma imagem, um vídeo etc.

compartilhado rapidamente através da internet. Fonte:

<https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/meme>. Acesso em 24 jan. 2018.

18 Dados divulgados pelo portal Google Trends, que registra os assuntos mais buscados no portal Google.

A brincadeira de Gabriel poderia não ter sido bem-sucedida. Sua mãe poderia, por exemplo, ter julgado que a escrita era uma amostra de falta de compromisso do menino em relação aos estudos. Isso poderia ter lhe acarretado algum tipo de punição ou advertência. Assim, pode-se afirmar que Gabriel assumiu um risco. Esse risco foi inconsequente?

Consideramos que não foi inconsequente, pois Gabriel calculou seu interlocutor e ofereceu pistas para que sua mãe entrasse em sua brincadeira e não a compreendesse como um real desejo de faltar à escola. Assim, foi a sua subversão que gerou o efeito humorístico e chamou a atenção de tantas pessoas

O sucesso da brincadeira de Gabriel pode ser comprovado pelo surgimento de outras versões de bilhetes nas quais alguém contava uma mentira sobre si e incluía, ao final da mensagem, a frase é verdade esse bilete (sic) (BONORA; MARTINS, 2018). Dizendo de outro modo, ao propor algo inesperado, Gabriel conseguiu a adesão de seu interlocutor e, consequentemente, mostrou o seu estilo. Vale mencionar, ainda, que o estilo de Gabriel se manifestou em um gênero textual considerado menos favorável para a apreensão do estilo, conforme vimos em Bakhtin (1952-1953/1997). Sendo assim, podemos supor que, na escrita de crianças, o estilo pode aparecer em diferentes gêneros textuais e sob diversas formas. No que se segue, daremos consequência a essas afirmações a partir da análise das produções que compõem nosso corpus de pesquisa.

3 SOBRE EFEITOS E AFETOS: ANÁLISE ESTILÍSTICA

Pregão do vendedor de lima Lima rima pela rama lima rima pelo aroma. O rumo é que leva o remo. O remo é que leva a rima. O ramo é que leva o aroma porém o aroma é da lima. (MEIRELES, 1964/1987, p. 31)

Neste capítulo, objetivamos descrever os recursos expressivos que apareceram com maior frequência nos textos que compõem nosso corpus e, assim, elucidar como os participantes desta pesquisa se expressam por meio de recursos estilísticos da Língua Portuguesa. Para tanto, partiremos da descrição dos elementos expressivos da língua portuguesa realizada por Martins (2012). Antes, contudo, discutiremos a relação que os sujeitos estabelecem com os aspectos estéticos da linguagem: o que nos leva, desde muito pequenos, a apreciar cantigas e a brincar com os efeitos dos significantes?