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A possibilidade de ruptura com sintaxe lógica:

4. RÉPLICA INEFABILISTA

4.13 A possibilidade de ruptura com sintaxe lógica:

O modo como Hacker busca salvaguardar a possibilidade de ruptura com a sintaxe lógica já se encontra em germe em sua refutação da noção substancial de contra-senso. A refutação teve início na distinção de dois modos de interpretação do princípio do contexto em Wittgenstein. Haveria uma interpretação literal e outra, por ele defendida, mais geral. Essa segunda interpretação não advoga a idéia de que é apenas no contexto proposicional que o nome possui significado, mas que dizer algo envolve o uso de sentenças. As expressões das sentenças podem ser combinadas de maneira legítima, em uma proposição com sentido, ou ilegítima, como no caso de um contra-senso. Essas expressões são os símbolos (as velhas expressões) com as quais construirmos novas proposições.

Caso a interpretação revisionista estivesse correta, no que diz respeito à impossibilidade de ruptura com a sintaxe lógica, a leitura de Hacker se tornaria incoerente, pois não seria possível falar em modos legítimos ou ilegítimos de se combinar expressões. Em especial, sua posição cairia por terra, uma vez que contra-sensos não possuiriam símbolo algum e, dessa maneira, nenhum poder lógico poderia ser atribuído aos sinais das pseudoproposições a fim de que, em outros contextos de usos, pudéssemos afirmar que esses símbolos teriam significado.

Porém, como é possível reconhecer símbolos diferentes quanto estes possuem o mesmo sinal? Conant e Diamond tomam como pedra de toque, para responde a esse questionamento, o aforismo 3.326 em que Wittgenstein afirma: “para reconhecer [erkennen] o símbolo no sinal, deve-se atentar para o uso significativo [sinnvollen Gebrauch]”. Todavia, uma vez que os contra-sensos não constituem um uso significativo, Conant defende a idéia de que “reconhecer uma Satz [proposição] como contra-senso [Unsinn] é ser incapaz de reconhecer o símbolo no sinal”227. Ou seja, contra-sensos não possuiriam símbolos, apenas sinais, e esses sinais não teriam poderes lógicos228. Assim, tornar-se-ia incoerente afirmar que uma proposição rompe com a sintaxe lógica, pois sinais não possuem poderes lógicos; aquilo que rompe com a sintaxe não seria uma proposição. Dessa forma, não seria possível asseverar que os símbolos ilegitimamente combinados em um contra-senso poderiam vir a ser utilizados de

227 Conant, 2001, p. 194.

228 Cf. Diamond, 2001c, p. 91.

maneira legítima em outros contextos, ou que se conheça a forma lógica dos símbolos presentes em um contra-senso – como, aparentemente, Hacker defende.

Hacker concorda com Conant acerca da idéia de que a sintaxe lógica não é uma teoria; muito menos uma teoria combinatória acerca dos tipos lógicos229. Contudo, Hacker alega que ela é “um grupo de regras para o uso de expressões”230, que

“consistem de regras gerais que estabelecem [lay dow] que combinações de palavras são lícitas e quais, excluídas”231. Para isso o comentador faz uso do aforismo 3.325. Nesse, Wittgenstein afirma, em crítica à ideografia de Frege e Russel, que essas notações não excluem todos erros. Esses erros só seriam evitados com o emprego de uma notação que exclua os usos de um mesmo sinal para símbolos diferentes e de sinais que designam superficialmente de maneiras diferentes. Para evitar tais erros seria necessária uma notação “que obedeça [gehorcht] a gramática lógica – a sintaxe lógica”. É justamente essa última afirmação que é frisada por Hacker. Segundo ele, não é possível haver tal coisa como usar sinais de acordo com a sintaxe lógica (que obedeçam à sintaxe lógica) se não houver algo como usá-los à revelia da sintaxe232.

Uma notação que obedeça à gramática lógica (à sintaxe lógica) é uma notação cuja forma lógica dos sinais transparece em sua superfície (cf. 3.325). (Esse não é o caso da linguagem ordinária.) A forma lógica de um nome pode ser representada por um conceito formal que determina um local de substituição a ser preenchido por todos os valores que partilham de sua mesma forma lógica. Nesse caso, o que a sintaxe lógica faz é determinar quais substituições são permissíveis (cf. 3.344). Da mesma maneira, defende Hacker, ela também determina quais substituições não são permitidas233. Colocar um determinado termo no local em que a substituição não é prescrita não é figurar uma impossibilidade lógica, como defende os revisionistas, mas apenas utilizá-lo de maneira incorreta.

O uso incorreto não diz respeito a um uso determinando, eterno e imutável, dos símbolos, mas aos seus usos prévios. A palavra “objeto” é utilizada como variável. A

229 Cf. Hacker, 2003, p. 11.

230 Hacker, 2003, p. 11. O posicionamento de Diamond e Conant tem como pilar central a idéia de que a sintaxe lógica não é uma teoria combinatória acerca dos tipos lógicos. Ela também não versa sobre as possibilidades lícitas e taxa como ilícitas algumas outras possibilidades. Caso assim fosse, as possibilidades ilícitas seriam impossibilidades lógicas. Falar em impossibilidades lógicas, à luz do Tractatus, é algo, certamente, incoerente, uma vez que “[o] que é lógico não pode ser meramente possível. A lógica trata de cada possibilidade e todas as possibilidades são fatos seus” (2.0121).

231 Hacker, 2003, p. 13.

232 Hacker, 2003, p. 13. Nessa página Hacker, em sua glosa do aforismo 3.325, traduz “gehorcht” pela expressão “to be in accordance”.

233 Cf. Hacker, 2001, p. 366.

utilização dessa palavra como um conceito propriamente dito seria a tentativa de utilizá-la como função, em um contexto no qual nenhum sentido é atribuído à pautilizá-lavra “objeto”.

É importante notar que essa estratégia de Hacker fundamenta-se na interpretação geral do princípio do contexto e na idéia de que a sintaxe lógica não versa sobre o significado das expressões, mas consiste de uma gramática lógica dos termos. Os revisionistas vetam a possibilidade de ruptura com a sintaxe lógica, pois a compreendem como concernente apenas aos símbolos, mas não aos sinais. Em um contra-senso, como defende Diamond, as partes não possuiriam poderes lógicos, não seriam símbolos, mas apenas sinais encadeados de maneira absurda234. A expressão

“poderes lógicos”, utilizada por Diamond, refere-se ao papel lógico-sintático que um símbolo possui dentro de um contexto proposicional, a partir do qual se pode subsumi-lo a uma determinada categoria lógica. Contra isso, Hacker alega que a suposição revisionista de que, “para Wittgenstein, a sintaxe lógica concerne apenas aos símbolos e não aos sinais é simplesmente falsa”235.

A posição de Hacker, ao divergir de Conant, é mais sutil do que parece à primeira vista. Ele concorda com a idéia de que, segundo o Tractatus, não há símbolos em um contra-senso. Porém, diferentemente dos revisionistas, ele não fundamenta sua alegação em uma interpretação au pied de la lettre do princípio do contexto, mas na idéia de que “um símbolo é apenas um sinal usado de acordo com as regras para o uso correto”236. Assim, não há símbolos em um contra-senso, pois os sinais não foram usados tal qual a sintaxe lógica que os rege prescreve. Dessa forma, segundo ele, a sintaxe lógica do sinal deve ser compreendida como constitutiva do símbolo. Isso, por fim, torna evidente que a sintaxe lógica concerne também aos sinais, refutando a crítica revisionista. É necessário que a sintaxe lógica verse sobre os sinais, pois é o emprego dos sinais de acordo com a sintaxe que faz deles símbolos.

Com isso, na perspectiva de Hacker, o leitor, ao se deparar com uma proposição, não iniciará pelo sentido dela como um todo para, em um segundo momento, projetar significado nas expressões, mas projetará significado nas expressões de acordo com os usos significativos que os sinais presentes na sentença possuem dentro da sintaxe lógica.

234 Diamond, 2001c, p. 91.

235 Hacker, 2003, p. 13. Além disso, há exemplos textuais de Wittgenstein que desmentem o posicionamento revisionista. Por exemplo, no aforismo 3.33, Wittgenstein afirma que “ [n]a sintaxe lógica, o significado de um sinal nunca pode desempenhar papel algum; ela deve poder estabelecer-se sem que se fale do significado de qualquer sinal [...]”. Ou, como presente em 3.334: “[a]s regras da sintaxe lógica devem evidenciar-se por si próprias, bastando apenas que se saiba como cada sinal designa”.

Caso o emprego dos sinais na sentença esteja de acordo com a sintaxe lógica, a proposição como um todo terá sentido e as partes conteúdos. Contudo, sem o contexto proposicional as partes nada dizem; e esse seria o sentido geral do princípio do contexto na acepção de Hacker. Além disso, a projeção de significado nas partes terá como répertoire os usos significativos dos sinais nos contextos proposicionais em que o sinal tem um emprego lógico-sintático. Em momento algum há o abandono do princípio do contexto, apenas o uso de sua versão geral e a adoção de que a projeção de sentido não se inicia pela proposição como um todo, mas pelas suas partes.