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O que deve restar do Tractatus depois de termos jogado a escada fora?

2. INTERPRETAÇÃO INEFABILISTA

2.2 O que deve restar do Tractatus depois de termos jogado a escada fora?

Após essa reconstrução do modo como Hacker interpreta o estatuto do discurso filosófico no Tractatus, podemos agora nos voltar aos questionamentos levantados no início do capítulo. O objetivo é compreender como essa interpretação poderia lançar luz sobre tais indagações.

A primeira das questões diz respeito ao problema de como é possível o Tractatus, uma vez que é composto por contra-sensos. A partir da interpretação de Hacker, pode-se oferecer uma resposta a essa questão através das distinções entre os

111 Cuter, 2000, p. 65.

112 Cuter, 2000, p. 66.

113 cf. Hacker, 1986, p. 92.

tipos de contra-senso. Embora os contra-senos filosóficos sejam, do ponto de vista lógico, meros contra-sensos, é possível traçar a distinção entre contra-sensos encobertos e contra-sensos manifestos. Essa distinção permite sustentar a idéia de que, no caso do discurso filosófico, não se vê à primeira vista que estas proposições carecem de sentido, uma vez que isso não transparece em sua superfície (como no caso do contra-senso manifesto). Tem-se, nesses casos, uma ilusão de sentido. Por meio desses contra-sensos encobertos, Wittgenstein intenta dizer o que não pode ser dito e elucidar o leitor. Esse contra-senso de télos elucidativo seria o contra-senso iluminador, cujo objetivo é

“gradualmente trazer o leitor perceptivo para um ponto de vista logicamente correto”115. O contra-senso iluminador seria utilizado, segundo Hacker, pelo “metafísico esclarecido”, que compreende a sintaxe lógica116.

Se esta resposta é satisfatória ou não, será o objeto de estudo de capítulos posteriores. Todavia, antes mesmo de uma analise pormenorizada, é possível localizar alguns pontos críticos da argumentação de Hacker. Embora a distinção entre contra-senso encoberto e manifesto seja bastante plausível, e esteja de acordo com uma intuição comum que temos frente às proposições filosóficas, não fica evidente em seu posicionamento como essa ilusão de sentido opera. Menos evidente ainda é como os contra-sensos encobertos possam vir a ser contra-sensos iluminadores. Ou seja, como é possível que contra-sensos, que são do ponto de vista lógico indistintos dos meros contra-sensos, possam ser utilizados como recursos iluminadores. Essa passagem do contra-senso encoberto ao iluminador (que, a meu ver, guarda o mistério do Tractatus) é, infelizmente, abordada por Hacker en passant. Ao se colocar frente a esse problema ele recua ao uso da metáfora da escada e à idéia de que Wittgenstein tenta assoviar o que não pode ser dito. Todavia, uma coisa é certa, a interpretação de Hacker sustenta-se na idéia de que é possível apreender isto que não ser dito e que os esforços de Wittgenstein buscariam, de alguma forma, gesticular na direção disso que não tem sequer como ser pensado.

Mesmo assim, a sua resposta parece plausível e em sincronia com pensamentos mais tradicionais acerca da metafísica. Wittgenstein, segundo ele, sustentaria a possibilidade de verdades metafísicas. Essas verdades mostrar-se-iam no uso significativo da linguagem e espelhariam a forma essencial da realidade. A

114 cf. Hacker, 1986, p. 104.

115 Hacker, 2003, p. 22.

116 Cf. Hacker, 2000, p. 17.

possibilidade do discurso tractariano repousaria sobre a capacidade do leitor de apreender o que é indizível (que se mostra no uso significativo da linguagem), ao compreender (grasp) o que é tencionado pelos esforços de Wittgenstein, por meio de seus contra-sensos; incluindo aqui a própria ilegitimidade dessas proposições117.

A outra pergunta introduzida no início do capítulo é a seguinte: o que deve restar do Tractatus após termos jogado a escada fora? Na interpretação de Hacker, ao se alcançar um ponto de vista logicamente correto, constatando que as proposições que serviram de degraus são tentativas fadas ao fracasso de dizer o que não pode ser dito, joga-se, assim, a escada fora. A revogação do Tractatus é, então, o abandono, por completo, da tentativa de dizer o que não pode ser dito. Todavia, isso não equivale à constatação da impossibilidade daquilo que é tencionado pelos contra-sensos. Ao se jogar a escada fora restará tudo aquilo que se mostra no uso significativo da linguagem.

Certamente, além disso, do ponto de vista da linguagem, restarão também todas proposições bipolares, da lógica, as equações matemáticas etc.

Assim, o questionamento levantado por Diamond (“o que deve restar do Tractatus depois de termos jogado a escada fora?”118) ganharia na interpretação inefabilista, por meio da idéia de que a obra é uma reabilitação da metafísica enquanto silêncio, a seguinte resposta: ao se jogar a escada fora conquista-se o acesso aos objetos tradicionais da metafísica: Deus, o sujeito, o mundo como totalidade (a substância do mundo), os valores etc. Assim, o que resta é a contemplação das verdades necessárias não-lógicas que constituem a estrutura essencial e formal do mundo.

117 Essa interpretação parece poder ser confirmada pela afirmação do prefácio em que Wittgenstein diz: “a verdade dos pensamentos aqui comunicados parece-me intocável e definitiva”. Essa passagem é tão importante quanto problemática e constitui um nó cuja tensão exegética gera enormes dificuldades às interpretações; quer seja inefabilista ou não. Do ponto de vista inefabilista, o problema é o modo como Wittgenstein utiliza os termos “verdade” e “pensamento”. Embora o termo “verdade” encontre-se em itálico, sinalizando um uso desviado do seu sentido mais comum, a palavra também não estaria de acordo com o uso tractariano. A verdade é um dos pólos da proposição com sentido, ou o valor de verdade de uma tautologia, mas a uma proposição que rompe com a sintaxe lógica não pode ser atribuída nem a verdade nem a falsidade. Mesmo assim, a passagem parece sugerir que se trata da verdade dos aforismos de Wittgenstein que tentariam expressar verdades necessárias não lógicas. Porém, isso nos leva ao segundo problema dessa citação. A verdade, nesse caso, é “a verdade dos pensamentos” comunicados no Tractatus. O problema todo reside no fato de que, uma vez que o que é indizível também é impensável, não se poderia, ao pé da letra, afirmar que os aforismos do Tractatus seriam pensamentos e, muito menos, verdadeiros. Essa tensão parece sugerir que isso que é comunicado no Tractatus seria verdadeiro, embora não no mesmo sentido que as proposições bipolares podem ser verdadeiras. Tudo parece encaminhar, na passagem do prefácio acima, à idéia de que o Tractatus tenta comunicar verdades necessárias indizíveis.

118 Diamond, 2001d, p. 181.