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O princípio do contexto em Frege e Wittgenstein: um possível equívoco

4. RÉPLICA INEFABILISTA

4.12 O princípio do contexto em Frege e Wittgenstein: um possível equívoco

Antes de darmos voz novamente a Hacker, com o intuito de averiguarmos como o comentador salvaguarda a possibilidade de ruptura com sintaxe lógica, nos deteremos, brevemente, em uma possível crítica ao modo como os revisionistas compreendem o papel do princípio do contexto em Frege. Caso essa crítica esteja correta, ela será de grande valia ao modo como Hacker busca refutar a interpretação revisionista.

Atendo-se firmemente a uma interpretação au pied de la lettre do princípio do contexto em Wittgenstein, os revisionistas buscaram mostrar que é incoerente a noção de choque categorial (noção atribuída por eles à interpretação de Hacker). Na seção anterior, averiguamos que o modo como o choque categorial supostamente ocorre em um contra-senso substancial não se encontra de acordo com a interpretação de Hacker.

Há dois pontos do modo como os revisionistas articulam o argumento que negligencia aspectos importantes do posicionamento do comentador. O que pretendo mostrar a partir de agora é como os revisionistas poderiam estar equivocados ao utilizar o principio do contexto fregeano como um critério para determinar se uma dada proposição é dotada de sentido ou não. É esse uso que permite aos revisionistas afirmar

a impossibilidade de romper com a sintaxe lógica e construir uma concepção austera de contra-senso, rival da interpretação inefabilista. Essa concepção fregeana seria, segundo os revisionistas, também o modo como Wittgenstein concebe o princípio do contexto no Tractatus.

Com o intuito de mostrar como Frege seria partidário da concepção austera de contra-senso os revisionista tomam como ponto de partida o tratamento dado por Frege à proposição “Trieste não é Viena”. Segundo Conant, Frege não conclui que a proposição “Trieste não é Viena” é sem-sentido, mas que o que preenche o lugar de argumento de uma expressão de conceito é realmente a expressão de um conceito. A partir disso, Frege sugere qual conceito a palavra “Viena” significa nesse caso. Dessa forma, diferentemente das elucidações filosóficas, a proposição “Trieste não é Viena”

será compreendida por Frege como dotada de sentido. Esse episódio permite Conant afirmar que “a metodologia de Frege aqui é começar com nosso entendimento da proposição como um todo e usar isso como base para segmentá-la em componentes logicamente distintos”216.

Assim, para determinar se uma proposição é ou não dotada de sentido, os revisionistas, tomando como base a interpretação de Frege, defendem o seguinte procedimento: deve se atentar para a proposição como um todo, de maneira completa, e a partir disso projetar sentido nas expressões. No caso de um contra-senso, ao proceder dessa maneira, constata-se que nem a proposição como um todo nem suas partes possuem sentido. O procedimento revisionista daria primazia ao sentido da proposição como um todo para, em um segundo momento, segmentá-la em componentes logicamente distintos. Caso o caminho tivesse por início as partes da sentença, isso seria, dentro da interpretação revisionista, uma ruptura com o princípio do contexto. A crítica aos inefabilistas tem como ponto central a suposta primazia por eles concedida ao sentido das expressões e ao papel lógico desempenhado por essas expressões que, por fim, uma vez combinadas formariam o sentido da proposição como um todo (embora isso não ocorra em um contra-senso).

Porém, como bem aponta Noronha Machado, há uma grande diferença entre os seguintes questionamentos: (1) “essa sentença tem sentido?”, (2) “qual é a forma lógica dessa sentença?” 217. O modo como os revisionistas interpretam o princípio do contexto tem em vista, principalmente, o questionamento (1). O modo correto de responder à

216 Conant, 2001, p.190.

217 Cf. Machado, 2002, p. 22.

questão “essa sentença tem sentido?” seria atentar para a proposição como um todo, de maneira completa, e a partir disso projetar sentido nas expressões. Todavia, como é possível atentar para a proposição como um todo sem antes projetar sentido nas expressões? Caso seja realmente necessário projetar sentido nas expressões para compreender o sentido da proposição como um todo, o entendimento da proposição não começaria pelo todo, como pensa Diamond e Conant, nem o princípio do contexto teria uma validade irrestrita218. O que pretendo mostrar é que esse impasse em parte decorre de uma possível utilização do principio fregeano do contexto para um propósito ao qual, aparentemente, não foi destinado.

O papel do princípio do contexto na obra de Frege, como se pode atestar em Dummett219, é deveras discutível e seu escopo incerto. Porém, uma possibilidade interpretativa bastante plausível, defendida por Machado, é que o horizonte em que o princípio foi formulado por Frege não tinha por objetivo a questão (1), mas, sim, o questionamento (2)220. Seu objetivo não seria distinguir proposições com sentido de contra-sensos, mas “orientar a análise lógica de proposições com sentido (principalmente as proposições da aritmética)”221. Dessa forma, caso a interpretação de Machado esteja correta, a utilização do princípio como um critério para a determinação do sentido ou não de uma dada proposição seria um uso deslocado do papel atribuído inicialmente por Frege222.

O princípio fregeano do contexto afirma que “apenas no contexto de uma sentença uma palavra tem significado [meaning]”223. Caso o princípio seja compreendido tendo em vista o questionamento (2) (“qual é a forma lógica dessa sentença?”) pode ser interpretado da seguinte maneira. A determinação das partes lógicas de uma sentença deve atentar, primeiramente, ao sentido da sentença como um todo e, a partir disso, à função lógica desempenhada pelas partes dentro do contexto da sentença. Assim, a afirmação de Conant, de que “a metodologia de Frege aqui é começar com nosso entendimento da proposição como um todo e usar isso como base para segmentá-la em componentes logicamente distintos”224, não estaria equivocada. O

218 Cf. Machado, 2002, p. 22; 2004, p. 38.

219 Dummett, 1981, p. 360-427.

220 Embora isso seja discutível. Dummett, aparentemente, defende a interpretação do princípio do contexto como uma tese sobre o sentido em 1981, p. 369-387,

221 Machado, 2002, p. 22.

222 A controvérsia acerca do papel do princípio fregeano do contexto é bastante prolífica e ater-se aos pormenores dessa controvérsia extrapolaria em muito os propósitos desta dissertação.

223 Dummett, 1981, p. 360.

224 Conant, 2001, p.190.

equivoco ocorre ao achar que esse procedimento pode ser aplicado para determinar se uma proposição é um contra-senso ou não. O princípio visaria excluir erros como o de Benno Kerry, cuja análise da proposição “o conceito ‘cavalo’ é um conceito de fácil aquisição”225 não levou em consideração a função lógica desempenhada pelas partes da proposição dentro do contexto da proposição como um todo.

Diamond e Conant afirmam que, para determinar se uma proposição é ou não um contra-senso, deve-se inicialmente atentar para o sentido da proposição como um todo, de maneira completa, e a partir disso tentar projetar sentido nas expressões. Caso isso fosse correto, esta questão seria inevitável: como se poderia projetar sentido nas partes de um contra-senso, se o todo é sem sentido? É justamente por meio desse tipo de questionamento que o revisionista tenta encurralar o proponente da leitura inefabilista.

Porém, esse questionamento cai por terra ao se compreender o uso do princípio do contexto tendo em vista a análise lógica das proposições.

A interpretação de Diamond e Conant mostra-se também equivocada ao atentarmos para fato de que, para determinar de se uma dada proposição possui ou não sentido, eles utilizam como critério o sentido como um todo da proposição. Porém, o questionamento sobre o sentido de uma proposição não pode começar pelo sentido da sentença sem que isso leve à circularidade.

Assim, talvez faça mais sentido, a favor de Machado, conceber o princípio como destinado a orientar a análise das proposições. Porém, isso não implica que as palavras tenham significado fora do contexto proposicional. Apenas que se pode pensar o sentido proposicional iniciando pela projeção de sentido das partes da proposição sem que isso seja uma ruptura com o princípio do contexto. Projetar-se-ia os sentidos das partes de acordo com as possíveis funções lógicas das expressões sempre tendo em vista a contribuição dessas partes para possíveis proposições. Ou seja, “sempre que consideramos o sentido de uma parte de uma proposição, o consideramos como parte de alguma ou algumas proposições”226.

225 Frege, 1978, p. 92.

226 Machado, 2002, p. 22.