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O impasse do Tractatus e a aporia da escada

1. INTRODUÇÃO

1.31 O impasse do Tractatus e a aporia da escada

Assim, para Wittgenstein, as proposições filosóficas são, em verdade, pseudoproposições e os problemas filosóficos serão, ao final, pseudoproblemas. Vê-se, dessa forma, a estratégia que Wittgenstein irá trilhar para erigir a sua crítica à filosofia.

Será por meio do entendimento acerca da lógica da linguagem que se fará a constatação de que o discurso filosófico é formado por contra-sensos. Isso permite o autor afirmar que:

“A maioria das proposições e questões que se formularam sobre temas filosóficos não são falsas, mas contra-sensos. Por isso, não podemos de modo algum responder a questões dessa espécie, mas apenas estabelecer o seu caráter de contra-senso.” (4.003).

A estratégia de Wittgenstein na construção de sua crítica à filosofia tem como ponto central a delimitação da linguagem e a constatação do caráter inefável das verdades necessárias, visadas pela filosofia. As proposições filosóficas serão apenas pseudoproposições que não logram êxito em articular sentido, pois não conferem significado a certos sinais nelas presentes. Ao fim e ao cabo, essas pseudoproposições são concatenações absurdas de sinais desprovidas de qualquer sentido.

Assim, para o autor, os problemas filosóficos repousam “sobre o mau entendimento da lógica de nossa linguagem”65. Um exame da lógica de nossa linguagem revelaria que esses problemas não são falsos, mas são pseudoproblemas.

Dessa forma, não é possível responder os problemas filosóficos, mas, tão somente, estabelecer seu caráter de contra-senso (cf. 4.003). Por meio dessa manobra, Wittgenstein, em um só golpe, pensa ter resolvido, no essencial, todos os problemas filosóficos66.

Essa estratégia é também utilizada na refutação do ceticismo, uma vez que este seja concebido como a pretensão de se duvidar das proposições filosóficas, “pois, só pode existir dúvida onde exista uma pergunta; uma pergunta, só onde exista uma resposta; e esta, só onde algo possa ser dito” (6.51). De um modo geral, para

64 Hacker, 2000, p. 17.

65 Wittgenstein, 2001, p.131.

Wittgenstein, as questões e os problemas filosóficos não existem, pois “para uma resposta que não se pode formular [e esse é o caso das pseudoproposições filosóficas], tampouco se pode formular a questão” (6.5).

É nesse ponto que surge o grande paradoxo do Tractatus. Sendo que todas as proposições filosóficas são contra-sensos, essa crítica estende-se também ao próprio Tractatus, que tampouco se salva da constatação de que suas proposições sejam contra-sensos. Ao se chegar a essa constatação, a obra é como uma serpente que come o seu próprio rabo aniquilando-se, padecendo do seu próprio veneno. É justamente a essa constatação paradoxal que se é levado nas últimas linhas do livro, em que Wittgenstein afirma que quem o entende acaba por reconhecer as proposições do Tractatus como contra-sensos (cf. 6.54). O paradoxo presente nessa afirmação pode ser formulado da seguinte maneira: se o que ele diz é de alguma forma inteligível, é possível entendê-lo a ponto de reconhecer suas proposições como contra-sensos, mas se o que ele diz é um contra-senso não é possível entender o autor a fim de reconhecer o que ele diz como contra-senso.

À primeira vista, o que Wittgenstein faz é construir uma teoria da linguagem que interdita as proposições da filosofia, classificando-as como contra-sensos, por fim, ele inclui as suas próprias proposições no grupo dos contra-sensos. Todavia, o problema é bem mais dramático, pois as proposições que culminam na construção dessa teoria da linguagem são elas mesmas contra-sensos. Assim, a seção final do livro põe-se como uma conclusão da obra, mas à luz da seção final, a obra como um todo se mostra como desprovida de sentido.

O grand finale do Tractatus é uma espécie de salto por sobre sua própria sombra em que Wittgenstein equipara as pseudoproposições do livro aos degraus de uma escada que deve ser jogada fora após se ter subido por ela. Como visto no capítulo introdutório da dissertação, no qual analisamos a metáfora da escada, o autor ilustra por meio dela o modo como suas proposições elucidam. Essa elucidação teria o seu fim, de acordo com o aforismo 6.54, na visão correta do mundo, que resulta da ação de se jogar fora a escada e, assim, sobrepujar as proposições do livro.

Na última linha do livro, Wittgenstein expõe a máxima que resume sua postura ante à filosofia: “sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar” (7). Dessa forma, o método correto da filosofia seria nada dizer, senão o que se pode dizer (proposições

66 Cf. Wittgenstein, 2001, p.132.

bipolares). Contudo, essas proposições não seriam filosóficas, mas do âmbito das ciências naturais (cf. 6.53). O filósofo, no que tange à filosofia, seria assim um silencioso guardião da fronteira do dizível, cuja função, meramente crítica e negativa, deveria “sempre que alguém pretendesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe [nachzuweisen] que não conferiu significado a certos sinais em suas proposições”

(6.53).

É importante notarmos que, na tradução de Lopes dos Santos do aforismo 6.53, o verbo nachzuweisen é traduzido como “mostrar”. Todavia, esse não tem a mesma acepção do verbo zeigen, que, como vimos, diz respeito àquilo que se mostra nas proposições com sentido e nas tautologias da lógica. Algumas versões em inglês traduzem o verbo nachzuweisen como demonstrate (demonstrar) 67. Tal tradução parece mais acurada, pois torna visível uma crucial distinção conceitual entre o zeigen e nachzuweisen. Caso se queira traduzir nachzuweisen como “mostrar”, e isso é bastante comum tanto em traduções como na bibliografia secundária, é fundamental que fique evidente que há uma distinção entre aquilo que se mostra, mas não pode ser dito, e o esforço de mostrar que não se confere significado a certos sinais nas proposições filosóficas. Contudo, atribui-se, dessa forma, um duplo sentido à palavra "mostrar" e, com isso, abre-se caminho para confusões entre os dois sentidos.

O problema no qual nos deteremos a partir de agora é como o discurso tractariano torna-se possível, uma vez que é composto por contra-sensos. Um outro problema importante a ser respondido, mas que se encontra diretamente imbricado no primeiro, é o de saber o quão radical é essa aparente autodestruição ao qual o livro se encaminha. Para isso tomarei como fio condutor a questão proposta por Cora Diamond:

“o que deve restar do Tractatus depois de termos jogado a escada fora”68? Primeiramente, averiguarei a resposta oferecida pela linha interpretativa denominada de inefabilista, que se consolidou nas analises de Peter Hacker. Posteriormente, irei me deter no estudo dos principais argumentos traçados por James Conant e Cora Diamond na tentativa de refutar a interpretação inefabilista. Por fim, o estudo se voltará aos contra-argumentos inefabilistas em resposta às indagações de Conant e Diamond, com o objetivo de aquilatar essas interpretações e buscar um veredicto quanto à plausibilidade dos argumentos por eles propostos.

67 Como é o caso de: Wittgenstein, 1999, p. 108.

68 Diamond, 2001d, p. 181.