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A posteridade na trilha de Ibn S»n«

Capítulo III: Ainda os sentidos internos

3) A posteridade na trilha de Ibn S»n«

A tradição posterior árabe e judaica seguiu no geral o exemplo de Ibn S»n«, passando a incluir o sentido comum em suas classificações. Assim, por exemplo, Šarastani reproduz a classificação da Al- ajat. Al-¾azal», mesmo diferindo em seus escritos quanto à combinação e, por vezes, quanto à localização, segue em linhas gerais o estabelecido por Ibn S»n«.290 A influência da classificação de Ibn S»n« pode ser encontrada também nos escritos de Juda-ha levi, Bahya Ibn Pakuda e Abraham Ibn Daud.291 Um afastamento desse tipo de classificação é encontrado em Ibn Rušd. Em seu Epítome da Memória e Reminiscência, ele fornece uma classificação quádrupla do que denomina “sentidos espirituais”:

1- sentido comum, 2- imaginativa

3- cogitativa ou descriminativa 4- memorativa. 292

Ibn Rušd parece omitir a compositiva animal e a estimativa por considerá-las sub-funções da imaginação. Em seu comentário ao De anima de Aristóteles diz que este apresenta quatro estágios das faculdades imateriais: sentido comum, imaginação, cogitação e memória. No Epítome da Memória e Reminiscência afirma que aquilo que o homem realiza por “pensamento e deliberação” os animais fazem por “natureza” . Mas “natureza,” diz ele, não tem um nome especial. Ibn S»n«, no entanto, a chama de estimativa. De acordo com Ibn S»n« esta é uma faculdade separada; de acordo com Ibn Rušd, seria uma sub-função da imaginação.293

Quanto ao ocidente, pode se verificar que por intermédio das traduções dos escritos árabes para o latim nos séculos XII e XIII, tanto a classificação dos sentidos internos de Ibn S»n«, como a de Ibn Rušd, tornaram-se conhecidas dos escolásticos.294 A penetração da psicologia de Ibn S»n«, além dessa via direta da tradução de suas obras, também ocorreu por uma outra via, indireta, tanto pela tradução latina do Maq

«

sid al-

290

Cf. Wolfson, art. cit. pp. 282-283, apresentando algumas varições na classificação de Al-¾azal».

291

Ibid. pp.285-287, fornecendo as suas classificações.

292

Ibid. p.289.

293

Ibid. pp.289-290.

294

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fal

«

sifah (As intenções dos filósofos) de Al-¾azal»295 que apresentava algumas teses de Ibn S»n«, quanto por tratados apócrifos que levavam o seu nome, como por exemplo, o anônimo Liber Avicenne, in primis e secundis substantiis et de fluxu entis.296A presença das teses de Ibn S»n« pode ser detectada imediatamente através dos primeiros pensadores latinos que tiveram acesso às suas obras. Isto pode ser notado desde o final do do século XII, em que há a presença da filosofia de Ibn S»n« nos “agostinistas”, até o início do século XIV, em que o filósofo árabe foi tido por Gilson como “ o ponto de partida de Duns Escoto ”.297 Esta presença, considerada como uma primeira etapa do pensamento de Ibn S»n« na filosofia ocidental, é marcada também pela classificação dos sentidos internos. Apenas para registrar alguns nomes de peso que no ocidente se referiram a Ibn S»n« nessa área, ora aceitando ora divergindo de suas teses, citamos Alberto Magno, Tomás de Aquino e Rogério Bacon. Alberto Magno menciona o VI aturalibus, Tomás de Aquino o De Anima de Ibn S»n« e Rogério Bacon o De Anima e o De Animalibus, referindo-se indiretamente ao Canon.298 Retomemos rapidamente as classificações destes autores.

Em Alberto Magno encontramos quatro tipos de classificação. A primeira,299 na qual cita explicitamente Ibn S»n« (Avicena)300 é a que se segue:

1- sentido comum ; 2- imaginação retentiva;

3- imaginação compositiva animal e humana; 4- estimativa;

5- memória e reminiscência.

Na segunda classificação301 os nomes se conservam, mas há uma inversão de ordem em relação à imaginação compositiva e a estimativa:

1- sentido comum; 2- imaginação retentiva; 3- estimativa;

295

A respeito dos termos latinos para os sentidos internos em Al-¾azal» e Ibn S»n« Cf. GILSON, E. “ Les sources gréco-arabes de l’augustinisme avicennisant” pp. 74-78.

296

Cf. BADAWI, A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 692 - 693.

297

Ibid. p. 693

298

Cf. Wolfson, art. cit. p.296.

299

Ibid. pp. 297-298; esta classificação está na Isagoge in Libros de Anima, Cap. XIV-XIX.

300

Não é demais lembrar que todas as referências dos latinos a Ibn S»n« se encontram sob a forma de seu nome latino, isto é, ‘Avicenna’; assim como as de Ibn Rušd encontram-se sob a forma de ‘Averroes’.

301

98

4- imaginação compositiva animal e humana; 5- memória e reminiscência.

A terceira classificação302 é basicamente como a segunda mas o termo reminiscência, que aparecia juntamente com a memória, é retirado e há uma inversão da ordem das duas últimas faculdades, isto é, a memória aparece antes da imaginação compositiva:

1- sentido comum; 2- imaginação retentiva; 3- estimativa;

4- memória;

5- imaginação compositiva animal e humana.

Finalmente na quarta classificação303 verifica-se a separação entre a memória e a reminiscência, tomadas como duas faculdades distintas. Nota-se também a ausência do sentido comum o qual, neste caso, teria sido explicitamente colocado sob os sentidos externos. Vejamos :

1- imaginação retentiva;

2- imaginação compositiva animal e humana; 3- estimativa;

4- memória;

5- reminiscência.

Tais diferenças talvez possam ser explicadas pela diversidade das fontes que Alberto usou: nas primeiras três deve ter seguido a ordem do Kit

«

b al- afs, na última a do Maq

«

sid Al-Fal

«

sifah de Al-¾azal».304 Observa-se, ainda, que nos casos em que Alberto Magno reproduz exatamente as classificações de Ibn S»n«, ele por vezes não interpreta fielmente alguns termos usados pelo filósofo árabe.305Isto talvez se deva ao fato de que, apesar da reprodução dos termos seguir Ibn S»n«, no conjunto, a influência da psicologia deste sobre Alberto parece não ter sido pura, mas um tanto matizada .306

302

Ibid. p. 298; esta classificação está em De Anima, Lib II, Trat. IV, Cap. VII.

303

Ibid. p. 298; esta classificação está na Summa de Creaturis, Parte II: De Homine.

304

Cf. Wolfson, art. cit. pp. 297-299.

305

Ibid. p. 305.

306

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Em relação a Tomás de Aquino podemos constatar, na Suma de Teologia,307 um tratamento específico dos sentidos internos. Baseando-se numa exposição dos requisitos de um animal perfeito, Tomás, como que “deduz” os sentidos internos, em número de quatro:

1) sentido comum - associado aos sentidos próprios e tido como a “raiz e o princípio destes”;

2) fantasia ou imaginação - caracterizada como “um tesouro das formas recebidas pelos sentidos” ;

3) estimativa - que apreende as “intenções” não recebidas pelo sentido; 4) memorativa - “que é um tesouro destas ‘intenções’ ”.

Tomás apresenta a cogitativa e a reminiscência como as formas humanas do que nos animais aparece respectivamente como estimativa e memória. A diferença entre a cogitativa e a estimativa é que os outros animais “percebem as intenções apenas por um certo instinto natural ” ao passo que “o homem as percebe também por um modo de comparação”. Daí receber o nome de razão particular, por descobrir tais intenções por um modo de comparação das intenções individuais, tal como a razão descobre as intenções universais por meio também de uma comparação. O mesmo tipo de diferença se verifica em relação à reminiscência comparada com a memória. O homem não tem apenas memória como súbita recordação do que passou; ele é dotado também de “reminiscência, como que inferindo silogisticamente, de acordo com as intenções individuais, a memória do que passou”. Ao final do corpo do artigo, Tomás critica explicitamente a distinção aviceniana entre imaginação (retentiva) e imaginativa (a imaginação compositiva). Rejeita ele, assim “uma quinta potência, intermediária entre a estimativa e a imaginativa”. Sua razão para isso é que tal operação é exclusiva do homem ( não existindo nos outros animais ) e neste para tal basta a imaginação. É, aliás, a esta que Ibn Rušd atribui tal operação.

Vemos, pois, que Tomás segue de preferência a classificação dos sentidos internos de Ibn Rušd. 308 Seu texto revela, no entanto, um bom conhecimento

307AQUINO,T. Suma teológica, Iª, q.78, a.4. Rio Grande do Sul: Est.Sulina.UCS, 1980, pp. 690-693 .

Ver também IVANOV, A. A cogitativa em Tomás de Aquino. Dissertação de mestrado. SP.FFLCH.USP, 1998, onde se encontra uma boa bibliografia.

308

Cf. supra p.110. Em seu artigo, Wolfson afirma que “enquanto Alberto Magno em suas quatro espécies de classificações dos sentidos internos reproduz a classificação de Ibn Sina com estrita exatidão, a mesma exatidão não é encontrada em Tomás de Aquino.” (Cf. Wolfson art. cit. p. 301). Talvez a impressão de pouca exatidão na reprodução da classificação de Ibn S»n«, sentida por Wolfson, derive do fato de que Tomás, assim como outros escolásticos latinos, não pretendiam reproduzir as classificações anteriores dos árabes, mas utilizá-las como meio de formular seu próprio pensamento.

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de Ibn S»n«: em primeiro lugar a crítica precisa acima mencionada; além disso, o exemplo da ovelha que foge do lobo e do pássaro que recolhe palhas para fazer o ninho, mencionados no corpo do artigo; a “dedução” dos sentidos internos e a distinção entre memória (animal) e reminiscência (humana).309

Em Rogério Bacon também podemos comprovar a presença da classificação dos sentidos internos de Ibn S»n«. Especificamente na Perspectiva (5ª parte do Opus Majus) a identificação das fontes de Bacon não se mostra problemática pois ele mesmo se incumbe de citá-las explicitamente. Dentre os nomes mais importantes destacamos Ptolomeu, Euclides, Ibn Al-Haytham (Al-Hazen), Aristóteles, Ibn Rušd, Boécio, Sêneca, S. Agostinho e o próprio Ibn S»n«.310 A título de comparação podemos verificar que Aristóteles tem um lugar de destaque. Bacon cita 14 obras do mestre grego sendo o De anima a mais citada (20 vezes). No caso de Ibn S»n«, de acordo com o número de citações encontradas, pode se afirmar que o nosso filósofo é uma fonte importante para Bacon notadamente no que se refere aos dados fisiológicos e psicológicos. O De anima de Ibn S»n« é referido por 14 vezes, o De animalibus por 12 vezes e os livros de medicina por 9 vezes.311 Afirma Vescovini: “Na elaboração de sua Perspectiva, Bacon se serviu largamente da doutrina biológica e psicológica da sensação visual contida no De anima ou Liber sextus naturalium de Avicena que teve grande influencia na idade média.”312

Bacon, ao discutir as faculdades sensíveis internas, cita expressamente o nome “Avicena” por nove vezes num trecho que ocupa menos de oito páginas. Apenas para tomarmos um exemplo, reproduzimos o início do capítulo, no qual é apresentado o sentido comum e a imaginação:

“(...) portanto, em vista de descobrir o que é requerido para a visão, devemos começar com as partes do cérebro e as forças da alma (...) E o cérebro tem três seções, chamadas ‘câmaras’, ‘celas’, ‘partes’ ou’ divisões’. Duas faculdades têm lugar na primeira cela. Uma delas é o

309

Seria necessário um estudo comparativo mais acurado, pois Tomás teve acesso direto aos textos de Ibn S»n«, Ibn Rušd e escolásticos anteriores a ele (Alexandre de Hales, por exemplo). O nosso objetivo, por enquanto, é apenas apontar através da trajetória dos textos escolásticos latinos que Ibn S»n« continua presente.

310

Cf. BACON, R. Perspectiva. in Roger Bacon and the Origins of Perspectiva in the Middle Ages. A critical edition and english translation of Bacon’s Perspectiva with Introduction and notes by David C. Lindberg. Oxford: Clarendon Press, 1996, Index.

311

Cf. NASCIMENTO, C. A. “A perspectiva de Bacon”. Manuscrito, p. 6.

312

Cf. Vescovini, Studi, p. 77; cf.pp. 89-90. Citado em NASCIMENTO,C.A. “A perspectiva de Bacon”. Mimeografado, p. 8.

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sentido comum, situado em sua parte anterior, como Avicena diz em seu De Anima, Livro I. (...) A operação final do sentido comum é receber as espécies vindas dos sentidos particulares e completar o julgamento a respeito delas. No entanto, pela extrema instabilidade de seu órgão ele não as retém, de acordo com Avicena, De Anima, Livro I. Consequentemente, deve haver outra faculdade da alma na parte final da primeira câmara (do cérebro) que se incumbe de reter as espécies vindas dos sentidos particulares, tendo secura e umidade moderadas, e sendo chamada de ‘imaginação’.”313

Rogério Bacon também parece estar correto do ponto de vista histórico na medida em que sabe que Aristóteles não fez menção explícita dos sentidos internos mas, equivocadamente, supõe que os tradutores das obras de Ibn S»n« (De Anima, De Animalibus e Canon) não usaram um vocabulário uniforme.314 Bacon nos dá neste capítulo 315 uma boa visão de conjunto da classificação dos sentidos internos. Estes são os mesmos apresentados por Ibn S»n« em seu De Anima: sensus communis, imaginatio, cogitativa, aestimatio, memoria. A localização dos sentidos internos no cérebro, fornecida por Bacon, traz o sentido comum na parte anterior do cérebro vindo em seguida a imaginação, a cogitativa e a estimativa em direção à parte posterior do cérebro onde está a memória.316 Esta localização segue exatamente a de Ibn S»n« conforme apresentamos em anexo:

1- sensus comunis e phantasia 2- imaginação retentiva (imaginatio) 3- estimativa (aestimativa)

4- memória (memorativa)

5- imaginação compositiva humana e animal (cogitativa, logística, rationalis).317

Nesta classificação, Bacon não reproduz Ibn Rušd, mas antes Ibn S»n«, revelando, entretanto, também um uso diverso do termo cogitativa, embora não do

313

Cf. BACON, R. Perspectiva. in Roger Bacon and the Origins of Perspectiva in the Middle Ages. A critical edition and english translation of Bacon’s Perspectiva with Introduction and notes by David C. Lindberg. Oxford: Clarendon Press, 1996, pp. 7 e 9.

314

Ibid. Cap. V, p. 17.

315

Ibid. Cap. V, pp. 17-18.

316

Cf. NASCIMENTO,C.A. “A perspectiva de Bacon”. Mimeografado, pp.18-19.

317

Wolfson indica as mesmas faculdades apresentando-as, no entanto, em outra ordem: Cf. Wolfson, art. cit. pp. 303-304, n. 43 indicando Opus majus, V: perspectiva, Pars I, Dist. I, Cap II-IV.

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mesmo tipo do que ocorre em Tomás. Wolfson chega a afirmar que “esses três filósofos (Alberto, Tomás e Bacon) falharam ao reproduzir com exatidão o uso do termo cogitativa tanto em Avicena quanto em Averróes.” 318 Esta mesma característica aparecerá nos filósofos latinos posteriores, adentrando já as raias da modernidade. Mas, para o nosso desiderato, as breves passagens que citamos nos parecem suficientes para indicar a notável presença da classificação e das determinações conceituais dos sentidos internos formuladas por Ibn S»n«.

318

Wolfson, em seu comentário, acrescenta que Tomás interpretou mal a classificação de Ibn S»n« ao reproduzí-la, principalmente no uso do termo cogitativa e que, sua reprodução da classificação de Ibn Rušd revela um deslocamento do termo estimativa. (Cf. Wolfson, art. cit. pp. 310-305). Talvez a inexatidão venha do fato de que estes escolásticos não pretendiam reproduzir nem Ibn S»n« nem Ibn Rušd, mas apoiar-se neles para propor, por conta própria, uma classificação dos sentidos internos, como já observamos.

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COCLUSÃO

Ao final deste percurso gostaríamos apenas de reiterar a importância do estudo de Ibn S»n« sob os dois aspectos principais que procuramos expor em nosso trabalho: o primeiro refere-se ao próprio conteúdo do Kit

«

b al- afs e o segundo refere- se à sua contribuição na formação do pensamento ocidental. Para tal, não seremos exaustivos e apresentaremos, em linhas gerais, apenas alguns comentários que acentuem isto e que justifiquem a sua presença nas discussões atuais tanto no que tange à psicologia e à epistemologia, quanto à própria filosofia em seu caráter mais geral.

Um dos aspectos singulares que podemos observar e que pode estar contido no que dissemos acima é o procedimento de Ibn S»n« em procurar contemplar a análise das realidades externas e internas do homem de modo que isto resulte numa unidade de compreensão deste. Isto pode ser verificado se tomarmos, por exemplo, as duas vias de constatação da existência da alma propostas na abertura e no encerramento da Seção 1 do Capítulo I. As sentenças que abrem essa seção se detêm em um exame atento das realidades externas observáveis nos levando a verificar, através dos sentidos, que o diferencial dos puros corpos em relação aos corpos animados confirma a presença de um princípio incorpóreo denominado alma. De modo diverso, ao final da seção, Ibn S»n« propõe uma via diametralmente oposta à primeira, pois destitui o sujeito da percepção de todos os caracteres sensíveis em que este poderia estar imerso: tal homem teria os olhos velados, estaria no vácuo e não poderia sequer tocar o próprio corpo. Neste segundo caso, a constatação da existência da alma é alcançada por uma via interna, não mediada pela experiência exterior e nem por qualquer um dos sentidos; ou seja, esta segunda via é uma consciência imediata da existência da alma que mesmo parecendo contrária à primeira, na qual o homem estava revestido de toda a sensibilidade e de seus caracteres materiais, no caso de Ibn S»n«, resulta por completá- la.

Naturalmente poderíamos, no primeiro caso, aproximá-lo tanto de Aristóteles quanto da ciência moderna, na medida em que realiza um exame através da experiência sensível para explicar a realidade. Por outro lado, no segundo caso, poderíamos aproximá-lo tanto de Plotino como de Agostinho e do próprio modo como os monoteístas leram Platão, na medida em que as constatações são alcançadas sem a mediação dos sentidos externos. No entanto, justamente o que queremos ressaltar é a

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impossibilidade de reduzir a psicologia de Ibn S»n« a um destes perfis, impossibilidade esta que justifica, dentre outras coisas, a sua originalidade.

O modo como Ibn S»n« procura contemplar ao longo do Kit

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b al- afs estas duas realidades: externa e interna; sensível e não sensível; material e imaterial, estabelece uma unidade e uma complementação tal que se distancia, em alguns casos, do modo pelo qual ela é tratada por outros autores. Nunca é demais lembrar, por exemplo, que na modernidade a concepção de Descartes, por um lado, e dos empiristas, por outro, acentuaram uma das duas vias em relação à outra, ocorrendo geralmente, que ao se privilegiar a externa, a interna tornou-se-lhe subordinada e vice-versa.

No caso de Ibn S»n« as esferas do externo e do interno parecem apresentar-se muito mais como realidades que se completam do que como realidades que se subordinam. O homem, unidade, se apresenta em meio a dois mundos. Uma boa imagem disto, que consideramos uma das matrizes de seu pensamento, é a da alma humana como sendo aquela que possui duas faces, uma voltada para a matéria e outra voltada para o imaterial. O homem, nesse caso, é um ente não somente capaz de tocar as duas realidades mas é, também, tocado por elas. Pode se atestar isto, por exemplo, pelas passagens em que o movimento dos astros influencia os sonhos através da faculdade imaginativa, assim como, de modo oposto, pelas passagens em que se afirma que as almas fortes e nobres são capazes de “tornar fogo o que não é fogo” e dirigir a matéria à sua vontade. Entendido deste modo, Ibn S»n« se apresentaria, nos debates atuais, como um agregador do homem, procurando lhe dar a medida certa de suas duas realidades: - o que é o corpo e a alma - e, além disso, como elas deveriam se inserir harmoniosamente na sociedade e no cosmos.

Por essa razão, entendemos que é através deste princípio agregador de sua psicologia, presente no Kit

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b al- afs, que podemos tomar sua filosofia como um todo. O próprio Ibn S»n« não nos autoriza a fazermos o contrário, pois ele mesmo não foi, historicamente, um divisor de conhecimentos mas, ao contrário, um agregador destes em um sistema próprio. Por essa razão, parece nos que, para compreendermos o seu pensamento nesta obra, é mister ter em mente que se, por um lado, tomarmos o Kit

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b al- afs com os olhos da ciência moderna nos decepcionaríamos com afirmações no campo do não verificável e se, ao contrário, quisermos lê-lo com olhos místicos, procurando nesta obra uma poesia da alma, teríamos dificuldade em manejar o caráter científico que ele propõe. O erro certamente não é dele mas é nosso, na medida em que

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geralmente podemos querer acentuar apenas uma dessas características. A unidade a que nos referimos é aludida por Goichon319 que atribui, além disso, o estudo fragmentário que pode ser feito de sua obra justamente à amplitude e ao modo como trata os diversos aspectos do conhecimento.

Uma outra característica que justifica a sua presença nas questões contemporâneas e que confirma a sua originalidade no estudo da alma é a afirmação desta como uma substância que, no caso da alma racional humana, possui sobrevivência após o desaparecimento do corpo por não estar ligada a nenhum órgão corporal e ser capaz de apreender os inteligíveis. É de se notar que nesse caso, a doutrina de Ibn Sina encontra um meio de não aceitar a preexistência da alma e nem a sua transmigração, ao mesmo tempo em que não desautoriza a sua permanência. Assim, a alma individual tem início no ser mas jamais cessa. Esta teoria não é encontrada em toda a sua extensão em

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