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Capítulo III: Ainda os sentidos internos

2) As classificações de Ibn S»n«

Dando continuidade à herança do conjunto de sentidos internos que o antecedeu, Ibn S»n« pode ser lembrado, antes de tudo, pelo amplo tratamento que dedica à explicação das potências de cada faculdade e suas detalhadas articulações. Mas, restringindo-nos apenas ao aspecto das funções e da classificação das faculdades, pode se apontar duas contribuições principais. A primeira é a inclusão do sentido comum, como o registrou bem Wolfson:

“O primeiro a incluir especificamente o sentido comum em sua classificação dos sentidos internos é Avicena. A descrição característica do sentido comum que ocorre em seus escritos é análoga à caracterização aristotélica como a faculdade que distingue e compara os dados da percepção sensorial.276 (...) Sua localização, em concordância mais propriamente com Galeno do que com Aristóteles, é como a da imaginação retentiva, na cavidade anterior do cérebro." 277

Devemos lembrar, no entanto, que apesar da descrição da função do sentido comum em Ibn S»n« aproximar-se da de Aristóteles, a caracterização do sentido comum como uma faculdade separada dos sentidos externos, assim como a sua localização cerebral não se encontra no mestre grego. A segunda contiribuição é o estabelecimento da diferenciação entre a memória e a reminiscência.278 Com a introdução do sentido comum e da reminiscência, a classificação dos sentidos internos se completa, tendo no total sete funções ou sete faculdades:

1- sentido comum; 2- imaginação retentiva;

3- imaginação compositiva animal; 4- imaginação compositiva humana;

276

Não nos deteremos nesta discussão mas destacamos que há divergência sobre o pioneirismo de Ibn S»n«. Apesar de Wolfson afirmar que “ o primeiro a incluir especificamente o sentido comum em sua classificação dos sentidos internos é Avicena” (Cf. Wolfson, art. cit., p. 276), Goichon, após citar a referida sentença de Wolfson, escreve: “ Acreditamos, no entanto, que o primeiro foi Al-F«r«b»” , cf. Livre des Directives e remarques, p. 318. Ver também Verbeke Introd. III-IV, p. 49, que segue a opinião de Wolfson, da qual partilhamos.

277

Cf. Wolfson, art.cit. p.277.

278

Esta diferenciação não é original visto que o próprio Aristóteles escreveu um pequeno tratado com o título de Sobre a memória e a reminiscência. Referimo-nos, aqui, a contribuição de Ibn S»n« em relação aos seus predecessores mais próximos.

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5- estimativa; 6- memória; 7- reminiscência.

De modo geral, o que mais caracteriza cada uma dessas funções é o seguinte:

1- sentido comum - o centro para o qual todos os sentidos convergem; ele distingue entre as qualidades dos diferentes sentidos, acrescentando o elemento de consciência à sensação; no entanto não retém as impressões que recebe;

2- imaginação retentiva - retém as impressões das coisas sensíveis recebidas pelo sentido comum depois que as coisas desapareceram;

3 e 4- imaginação compositiva animal e humana - consiste na construção de novas imagens reais ou irreais;

5- estimativa - percebe as formas insensíveis conectadas aos objetos sensíveis, sabendo o que se deve seguir e o que se deve evitar;

6- memória - retém as formas da estimativa, assim como a imaginação retentiva retém as formas dos objetos sensíveis;

7- reminiscência - é a restauração de algo à memória depois de ter sido esquecido.279

As combinações feitas por Ibn S»n« em outras obras parecem não ser tão completas quanto a do Kit

«

b al- afs. Em relação ao sentido comum e à imaginação, no Canon, Ibn S»n« teria registrado duas definições: de acordo com os filósofos, o sentido comum e a imaginação seriam faculdades distintas sendo a primeira o recipiente das imagens e a segunda o retentor das imagens; por outro lado, de acordo com os médicos, as duas constituiriam uma faculdade simples, embora observe-se nela a distinção entre a força retentiva e a receptiva.280 A referência aos médicos não parece estar ligada a nenhum nome específico visto que em Galeno sequer ocorre o termo sentido comum; a enumeração dos sentidos internos, por ele apresentada, logo após os sentidos externos, comporta apenas: φαντασια, διανοητικον, µνηµονικον. Vale lembrar, no entanto, que no caso das localizações cerebrais a doutrina de Ibn S»n« talvez tenha mais proximidade com a “dinâmica da doutrina celular ” relativa às funções cerebrais e que foi introduzida por Qusta b. Luqa. Nesta teoria, a cada “célula” ( ou concavidade ) do

279

Cf. Wolfson, art. cit. p. 277.

280

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cérebro é associada uma função específica.281 Mesmo assim, a posição mais aceita parece ser a de que Ibn S»n« teria procurado indicar duas posturas em relação aos sentidos internos mais do que entrar em discussão com alguma linha médica específica.

Em sua dupla formação de médico e filósofo ele procura harmonizar as duas posições sem considerá-las excludentes, combinando essas duas vias em seus escritos. Do ponto de vista médico, as faculdades da alma seriam classificadas segundo o órgão que ocupam, ao passo que, para a filosofia, referir-se-iam a várias funções:282 “Do ponto de vista filosófico uma faculdade é a que tem uma função distintiva, independente do lugar que ocupa no cérebro.”283 Considerado desse modo, na Al- ajat e na Al-

Šif«’

Ibn S»n« teria seguido mais os filósofos e "curiosamente reproduz a palavra grega fantasia na transliteração árabe como sinônimo de sentido comum."284 No Risalat fi al- afs (Epístola da alma) ele parece ter seguido mais os médicos não só tratando as duas faculdades como uma mas até mesmo as identificando, definindo ambas em termos de sentido comum e não fazendo nenhuma distinção entre retenção e recepção.285

No que concerne à imaginativa animal e humana e à estimativa, Ibn S»n« as teria tratado no Canon como uma só faculdade. Na Al- ajat nenhum número é dado mas, pelo contexto supõe-se que a compositiva humana e a imaginação animal são tratadas como uma faculdade e a estimativa como outra286. Quanto à memória, Ibn S»n« se refere no Canon à discussão entre os filósofos sobre se ela é uma ou duas faculdades. Na Al- ajat e no Risalat fi al- afs ele não faz distinção entre as duas. Segundo essa variedade de combinações, Ibn S»n« teria no Canon três espécies de classificação. Uma primeira com três membros:

1- a- sentido comum;

b- imaginação (definida nos termos do sentido comum);

2- compositiva a - humana; b- animal; c- estimativa; 3- a- memória; 281

DELIBERA, A. A Filosofia medieval. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

282 Cf. Wolfson, art.cit. p .279. 283 Ibid. p. 280. 284 Ibid. p. 278. 285 Ibid. p. 278. 286 Ibid. p. 280.

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b- reminiscência.

Em seguida, haveria uma classificação quádrupla contando o sentido comum e a imaginação como duas faculdades, e uma quíntupla, contando a memória e a reminiscência como duas.

No Risalat fi al- afs a classificação seria a seguinte: 1- sentido comum e imaginação;

2- compositiva animal; 3- estimativa;

4- memória e reminiscência; 5- compositiva humana.

Ao considerar tais variações, Wolfson afirma que "Avicena não parece decidir quais destas sete faculdades devem se combinar e, consequentemente, várias combinações são encontradas em seu Canon, na Al-

Šif«’

,287 na Al- ajat, e no Risalat fi al- afs.”288 Esta afirmação, no entanto, não parece ser adequada na medida em que admitimos que uma das chaves que permite compreender a dinâmica, as localizaçãoes e as diversas classificações dos sentidos internos em Ibn S»n«, segundo o Kit

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b al- afs, é que, na verdade, a preeminência não é quanto ao número e à combinação dos sentidos internos, mas quanto às suas funções.

O fato de se chegar a sete faculdades ou funções não implica para Ibn S»n« que o número de sentidos internos deva ser sete ou ter uma combinação rígida. Isso se deve ao fato de que ele considera que um sentido interno pode ter mais do que uma função, o que pode reduzir o seu número para cinco em alguns casos e, em outros, até para quatro. Pode se observar que Ibn S»n« ao mesmo tempo em que estabelece com rigor as funções das faculdades não as combina com rigidez. Ao longo do Kit

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b al- afs isto pode ser verificado com frequência como, por exemplo, no caso da estimativa em que, após a definição da função básica desta faculdade, Ibn S»n« passa a apresentar as variantes compreendidas em sua dinâmica e em seus movimentos levando-a a ser também imaginativa e também memorativa. Tais variações de combinação não parecem ser, no Kit

«

b al- afs, uma indecisão do autor mas uma amostra da maleabilidade das combinações segundo o imperativo das funções das faculdades.

287

Cf. Wolfson, art.cit. pp. 277-278, n.32, esclarecendo que não se baseou no texto árabe mas que o esquema de classificação e a terminologia usados é o mesmo da Al- ajat.

288

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Desse modo, a questão de encontrarmos no Kit

«

b al- afs cinco sentidos internos deriva justamente do fato de que, não obstante serem consideradas sete funções distintas, isto não implica que elas sejam sete faculdades distintas. Assim, a combinação final, nesta obra, resulta em cinco sentidos internos com sete funções básicas. Aí, não se encontra, também, a alusão de Wolfson, quanto ao problema da dupla classificação médica e filosófica. Além disso, Ibn S»n« parece também não ter dúvida quanto à combinação básica que deve ser feita289, sendo que a classificação final do Kit

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b al- afs com os nomes que o próprio Ibn S»n« fornece é a seguinte:

1- sentido comum ou fantasia;

2- imaginação, imaginativa ou formativa;

3- imaginativa ( no animal ) e cogitativa ( no homem ); 4- estimativa;

5- faculdade que conserva e se lembra.

289

Deve se ter em conta, também, que segundo o relato de Al-Jūzj«ni, a Al-Šif«’ e o Canon foram escritos

na mesma época. Cf. GOHLMAN, W. E. The life of Ibn Sina. New York: State University of New York Press, 1974, p. 55 - 56. (Vide supra, p. 5).

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