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MIGUEL ATTIE FILHO OS SE TIDOS I TER OS EM IB Sº ª ( AVICE A )

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OS SETIDOS ITEROS

EM IB Sº

ºººª

ª

ª

ª

( AVICEA )

MESTRADO EM FILOSOFIA PUC - SP

1999

(2)

2

OS SETIDOS ITEROS

EM IB Sº

ºººª

ª

ª

ª

( AVICEA )

Diss ertação apres entada como requi sito parcial para a obt enção do tí tulo de M estre em Filosofia à Banca Exami nadora do Programa de Estudos Pós -graduados em Fil osofi a da Pontifí cia Uni versi dade Católica de S ão P aul o, s ob a ori ent ação do Prof. Dr. Carlos Arthur R ibeiro do Nas cim ent o.

PUC - SP

(3)

3

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________ Prof. Dr. Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento - PUCSP _________________________________________ Prof. Dr. Jamil Ibrahim Iskandar - PUCPR _________________________________________

(4)

4

Ao Prof. Carlos Arthur, por me auxiliar a encontrar o caminho de volta para casa.

(5)

5

Todos os agradecimentos:

Ao Prof. Ênio José da Costa Brito porque acreditou em mim e me trouxe de volta para a PUCSP; ao Prof. Porphírio Aguiar pela iniciação filosófica; à Irmã Maria Helena que viu o futuro; a todos os colegas, professores e funcionários da FAI; à Profª Mônica Galliano pelo indizível, je vous remercie vivement; ao Prof. Jamil Ibrahim Iskandar pela fidalga generosidade; ao Prof. José Carlos Estevão pela elegância filosófica e pelas dicas em Paris; em Paris ao Prof. Michel Patty que lá me recebeu; ao Prof. Ahmed Hassnaoui e ao Prof. e amigo Maroun Aouad do CNRS por todas as dicas e textos; ao Prof. Moacyr Novaes que me recebeu cordialmente no CEPAME, a todos os colegas do CEPAME; ao Tadeu, meu amigo de valorosas horas; à Rosalie que me forneceu o primeiro De anima; ao “Grupo das arábias”; à Natália pelo alto astral; à Profª Safa Jubran que me levantou num momento difícil e ao Prof. Mohamed Jarouche pela força; à Profª Jeanne Marie pela confiança em meu trabalho; à Profª Rachel Gazzola pelas preciosas oportunidades; ao Prof. Ivo Assad Ibri por não me cobrar as ‘esfihas’ que devo; ao Prof. Edélcio, pelo mesmo motivo; ao Prof. Marcelo Perini pelo incentivo inicial; à Cida da secretaria do pós que sempre me recebeu com um sorriso; a todos os professores, colegas e funcionários da PUCSP; a todos que me tiraram xerox; ao CNPQ pela bolsa para tirar os xerox; à Marisa, por tudo; à Paula e ao Mateus por olharem um ao outro; à Sonia, à Solange e à Maria pelo brilho nos olhos e ao ‘bayu’ Miguel (in memoriam) pela presença constante; a todos os amigos que me incentivaram ou me criticaram; aos que não me conhecem e que eu não conheço e que nunca saberei que me ajudaram; aos que atrapalharam; a todos que esqueci de citar... ao professor, amigo e mestre Carlos Arthur por ter tornado tudo isto possível. MUITO OBRIGADO!

(6)

6

RESUMO

A primeira parte deste trabalho se ocupa em fornecer alguns

dados básicos sobre a vida e a obra de Ibn S»n« -Avicena-(980-1037).

Em seguida, no Capítulo I, são apresentadas as principais

características de sua obra

Al-Šif«’

(A Cura), sua divisão, e como o Livro

VI (Kit

«

b al- afs) se insere nesta enciclopédia. Além disso, é apresentada

a importância histórica dessa obra na formação do pensamento ocidental a

partir de sua tradução do árabe para o latim em meados do século XII d.C.

No Capítulo II, após a indicação de um itinerário da estrutura

geral do Kit

«

b al- afs, são apresentadas as principais teses de Ibn S»n« a

respeito da alma nesta obra. Em seguida, o tema dos sentidos internos é

exposto de modo mais detido, percorrendo sua classificação, a definição de

cada faculdade e a dinâmica de seus movimentos.

O Capítulo III se inicia com um breve histórico das

transformações de tratamento que as faculdades pós-sensoriais sofreram

através dos autores anteriores a Ibn S»n« e como o filósofo árabe chegou à

sua própria classificação. Em seguida são indicadas algumas variações

sobre o tema fornecida pelo próprio Ibn S»n« em outras obras e como o

tema dos sentidos internos atingiu alto grau de excelência em sua filosofia

podendo ser considerado um dos pontos altos de sua psicologia. Ao final,

focaliza-se a repercussão das classificações dos sentidos internos de Ibn

S»n« em autores posteriores a ele tanto no Oriente quanto no Ocidente.

Ao final, procura-se mostrar como este tema se torna relevante

nos dias de hoje tanto nas discussões filosóficas de caráter mais geral

quanto nos temas de psicologia e de epistemologia de modo mais particular

e como, nessa medida, a presença das teses de Ibn S»n« se mostra de grande

importância.

(7)

7

SUMÁRIO

Apresentação ... 01

Introdução ... 03

1) Alguns dados biográficos ... 03

2) Alguns dados bibliográficos ... 08

Capítulo I : A Al-

Šif«’

e o Kit

«

b al- afs. ... 10

Capítulo II: Os sentidos internos no Kit

«

b al- afs. ... 23

1) Prolegômenos: o quadro geral do Kit

«

b al- afs (Cap. I) ... 23

2) Os sentidos internos no Kit

«

b al- afs (Cap. IV) ... 54

Capítulo III: Ainda os sentidos internos ... 78

1) As fontes de Ibn S»n« ... 78

2) As classificações de Ibn S»n« ... 85

3) A posteridade na trilha de Ibn S»n« ... 90

Conclusão ... 97

Bibliografia ... 105

(8)

8

APRESETAÇÃO:

O precípuo objetivo deste trabalho é apresentar a estrutura geral do Livro VI da parte da Físicada enciclopédia Al-

Šif«’

, denominado Kit

«

b al- afs, que ficou conhecido no ocidente medieval como o De anima de Avicena ou a Psicologia de Avicena. A Física, nesse caso, entendida como o conjunto das ciências naturais, justifica porque a Idade Média denominou-o Liber De Anima - Sextus de aturalibus.

Sem dúvida, como veremos a seguir, as linhas gerais adotadas por Ibn S»n« nesta obra, baseiam-se no estudoΠΕΡΙ ΨΥΧΗΣ − Sobre a alma - de Aristóteles, o que nos leva naturalmente a situar algumas idéias de Ibn S»n« em relação às do filósofo grego. Não obstante o fato de que uma comparação de idéias pareça se dar quase que naturalmente, visto a proximidade estrutural e conceitual das duas obras, não é nossa intenção, nesta pesquisa, avaliar de maneira mais sistemática e detalhada as relações entre as posturas adotadas por Ibn S»n« diante daquelas adotadas anteriormente por Aristóteles, mesmo porque, devemos lembrar que existem outras fontes das idéias avicenianas além dos escritos aristotélicos, tais como as obras de Al-F«r«b», Plotino, Galeno, o Alcorão, etc. A isto devemos, ainda, somar a sua própria experiência como médico.

A nossa prioridade é apresentar as principais idéias de Ibn S»n« dentro da própria estrutura de sua obra, até onde nos seja possível, procurando situá-lo em relação a Aristóteles apenas em algumas passagens que consideramos mais relevantes, evitando, assim, um paralelismo constante. Entendemos, desse modo, que dados os limites deste trabalho, deveríamos priorizar a doutrina de nosso filósofo, procurando simultaneamente afastar a idéia, muitas vezes errônea, de tomá-lo simplesmente como um comentador de Aristóteles. Na verdade, o Kit

«

b al- afs não é um comentário ao texto de Aristóteles. O leitor acostumado à tradição de comentários à obra do mestre grego como, por exemplo, alguns escritos de Ibn Rušd (Averróes), não encontrará nesta obra de Ibn S»n« qualquer semelhança. Neste caso, trata-se de uma outra abordagem em que o filósofo árabe não se contenta apenas com os princípios aristotélicos, acrescentando a estes uma série de novos elementos. Um dos pontos mais altos do tratado é o entrelaçamento entre a psicologia e a fisiologia, principalmente no que tange aos sentidos internos. Ao longo deste trabalho poderemos verificar que, para dizer o

(9)

9

menos, o Kit

«

b al- afs é uma “refundição” do De Anima de Aristóteles, se configurando numa nova síntese: a síntese de Ibn S»n«.

Sendo assim, nos propomos seguir de modo esquemático, o seguinte desenvolvimento :

Na Introdução apresentaremos, resumidamente, alguns dados sobre a vida de Ibn S»n«, além de fornecermos um quadro geral a respeito de sua obra. No capítulo I explicaremos, em seus princípios fundamentais, o que é a enciclopédia Al-Šif«’, visto que isso se torna necessário na medida em que nos permite situar com mais clareza como o Livro VI da parte da Física - Kit

«

b al- afs - se localiza e se articula no conjunto desta enciclopédia. No capítulo II apresentaremos, de modo sintético, os assuntos que Ibn S»n« aborda sequencialmente dentro desta obra, destacando e explicando as principais posições do autor. Sem dúvida, ao investigarmos o tema dos sentidos internos, privilegiamos as seções e passagens que a estes se referem. No entanto, na medida do possível, procuramos indicar o conjunto de assuntos analisados por Ibn S»n« procurando manter a visão geral do tratado. No capitulo III estabelecemos as fontes de Ibn S»n« e outras considerações sobre as suas classificações, apontando a presença destas em autores posteriores tanto do oriente quanto do ocidente. Na última parte, finalmente, apresentaremos nossas conclusões, apontando como esse tema pode ser relevante atualmente na medida em que se insere em inúmeros pontos de interesse da discussão e do estudo psicológico e epistemológico em particular e da própria filosofia em seu caráter mais geral.

(10)

10

ITRODUÇÃO:

Alguns dados biográficos:

Abu ‘Ali Al-Hussein Ibn 'Abd All«h Ibn Al-®assan Ibn ‘Ali Ibn S»n«, nasceu em Bukhara1 em 980 d.C. e faleceu em Hamadan2 em 1037. Uma boa parte de sua vida nos é conhecida através de suas próprias palavras, numa curta auto-biografia3, “transmitida e completada pelo seu mais fiel discípulo ‘Abu ‘Ubaid Al-J−zj«n»”.4 Seu pai era um administrador da província de Bukhara5, onde Ibn S»n« iniciou seus primeiros estudos. Aos dez anos, já sabia o Alcorão de cor "de modo que era objeto de imensa admiração."

Iniciou, em seguida, seus primeiros estudos em filosofia, geometria, aritmética, jurisprudência e lógica sob a orientação de um professor chamado Al-Nat»l», a quem Ibn S»n« logo iria superar. Passou a estudar por si mesmo a Isagoge de Porfírio, os Elementos de Euclides e o Almagesto de Ptolomeu, tendo em seguida se iniciado nos estudos de fisica e de metafisica. Particularmente, a metafisica de Aristóteles, no início mostrou-se bastante obscura, mas a partir da leitura de um comentário de Al-F«r«b», tornou-se perfeitamente clara. Este é um episódio da vida intelectual de Ibn S»n« frequentemente citado:

“Eu reli o livro da Metafísica (de Aristóteles) por quarenta vezes, de modo que o aprendi de cor. Porém, não podia ainda compreender o que havia em seu interior, e nem o intuito de seu autor.”6 Estando num mercado de livros, pela insistência de um vendedor, acabou adquirindo,

1

Esta cidade está situada numa região da antiga Pérsia, dominada já nesse período pelo Islam. Atualmente, faz parte do Uzbequistão que, estabelecido em 1924 como república da União Soviética, tornou-se um estado independente desde 1991. Atlas Geográfico Mundial - Folha de São Paulo -. São Paulo: Folha da Manhã, 1993 pp. 66 e 166 .

2

Esta cidade situa-se no atual Irã. Ibid pp. 69 e 166.

3

Esta autobiografia, com a continuação feita por Al-Jūzj«n» foi traduzida para o inglês em ARBERRY, .J.

Avicenna on Theology, London: Hyperion Press, 1951, pp. 9-24. Uma edição crítica, acompanhada de tradução inglesa, foi feita por GOHLMAN, W. E.: The Life of Ibn Sina. New York: State university of New York Press, 1974. BADAWI, A. Histoire de la Philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, pp. 595-602 apresenta também a parte que foi escrita pelo próprio Ibn S»n«.

4

BADAWI, A. Histoire de la Philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 595.

5

As passagens a seguir foram baseadas na tradução da autobiografia por BADAWI, A.

6

É possível supor que tais dificuldades se referissem, por um lado, à tradução do grego para o árabe que implicou na adaptação de termos desconhecidos nesta língua e, por outro lado, ao conteúdo da própria obra que divergia em alguns casos das concepções do Alcorão. Cf. - ISKANDAR, J. I. Avicena - A origem e o retorno. Porto Alegre: Edipucrs, 1999, p. 18.

(11)

11

por uma bagatela, a obra de Al-F«r«b» Do intuito do livro da Metafísica (de Aristóteles). “Entrei em casa e me apressei em lê-lo; e logo seu propósito se revelou a mim, visto que eu conhecia o livro de cor. Me alegrei. No dia seguinte dei muitas esmolas aos pobres, em sinal de agradecimento ao Deus Altíssimo.”7

Na mesma época passou a ler os livros de medicina, pois além de querer se dedicar à arte médica verificara que "a medicina não era uma ciência difícil". Em pouco tempo os médicos vieram aprender a arte médica com o jovem Ibn S»n« , que tinha, então, apenas dezesseis anos.

Quando foi chamado para curar o príncipe Nu¯ Ibn Man·ur, teve a oportunidade de frequentar a riquíssima biblioteca deste, e nela pôde entrar em contato com grande parte do conhecimento de sua época. Este fato coloca em cena três aspectos importantes que estarão sempre presentes em toda sua vida: a medicina, a filosofia e a política. Nessa época tinha dezoito anos e já havia entrado em contato com praticamente todas as mais importantes ciências conhecidas.

Atendendo à solicitação dos que o acompanhavam, aos vinte e um anos passou a compor as sua primeiras obras. Nesse período, ocupava algumas funções administrativas em Bukhara mas, com a morte do pai, iniciou um período de viagens a cidades próximas.8Dentre essas viagens, destaca-se a estada de Ibn S»n« em Jurjan, onde um amante da filosofia chamado Al-Šir«zi instalou o mestre numa casa ao lado da sua. Aí Ibn S»n« escreve a primeira parte do Canon de medicina. Sua última estada antes de se fixar de modo mais permanente em Hamadan é uma outra cidade próxima chamada Al-Ray.

Em Hamadan, aceita o cargo de vizir9 (ministro) do príncipe Šams Al-Dawlah. Nessa época Al-Jūzj«n» pediu ao mestre que compusesse comentários sobre as

obras de Aristóteles, mas Ibn S»n« se recusou, preferindo compor uma obra de grande envergadura, expondo os principais conhecimentos científicos e filosóficos de seu tempo.

7

BADAWI, A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 598.

8

Até este ponto todo o relato foi feito pelo próprio Ibn S»n«. O que vem a seguir foi registrado pelo seu discípulo Al-Jūzj«n».

9

O significado literal de‘Wazir’ é ‘aquele que carrega o fardo’. A sua raiz é o verbo ‘wazara’ que significa ‘carregar um fardo’ Cf. - REIG, D. Dictionaire Larousse arabe-français. Paris: Larousse, 1987, verbete ‘wazara’, p. 770 e DE LIBERA, A. A filosofia medieval. São Paulo: Loyola, 1998, p. 118.

(12)

12

Assim, começou a redigir a enciclopédia Al-

Šif«

’, cuja tradução é 'A Cura', iniciando-a pela fisica. Al-J−zj«n», afirma que Ibn S»n« acumulava, nesse período, as funções de vizir ao mesmo tempo em que escrevia, aproximadamente, cinquenta páginas por dia. É bastante interessante o relato de Al- J−zj«n» que parece testemunhar a grande energia e capacidade de trabalho de Ibn S»n«:

“Ele havia escrito o primeiro livro do Canon (da medicina), e todas as noites seus discípulos se reuniam em sua casa. Alternávamos na leitura: enquanto eu lia a Al-

Šif«

’, algum outro lia o Canon. Quando terminávamos, diferentes classes de cantores se faziam presentes e a sessão de bebidas com seus utensílios era preparada da qual participávamos. A instrução tinha lugar à noite, devido à escassez de tempo livre durante o dia por causa do serviço do mestre ao príncipe.” 10 Al- J−zj«n» relata também que Ibn S»n«, embora não tendo se casado, não podia ver um ‘rabo de saia’: “ O mestre era vigoroso em todas as suas faculdades, sendo a sexual a mais vigorosa e dominante de suas faculdades concupiscíveis, e ele a exercia frequentemente”.11

Depois da morte de Šams Dawlah, o novo príncipe, seu filho Taj Al-Mulk encarcerou Ibn S»n« por quatro meses por questões políticas, acusando-o de ter se correspondido secretamente com o príncipe ‘Ala’ Al-Dawlah, em Isfahan 12. Na prisão, compõe algumas obras, dentre elas o tratado

®

ay Ibn Yaqzan, escrito em linguagem simbólica.13

Depois de solto Ibn S»n« transferiu-se para Isfahan, sob os serviços do príncipe ‘Ala’ Al-Dawlah. Aí se afirmou como mestre incontestável em todas as ciências. Nessa época compôs a parte da lógica, geografia e astronomia da Al-

Šif«’

tendo praticamente terminado esta obra. Outras obras importantes foram escritas também nesse mesmo período, como por exemplo a Al- ajat (A salvação) que era um

10

GOHLMAN, W. E. The life of Ibn Sina. New York: State university of New York press, 1974, pp. 55 - 56.

11

Ibid, pp. 82-83.

12

Esta cidade fica no atual Irã. Atlas Geográfico Mundial - Folha de São Paulo-. São Paulo: Folha da Manhã, 1993 p. 69 e 167 .

13

Remetemos a PEREIRA, R. H. S. Avicena: a viagem da alma ( uma leitura gnóstico-hermética de Hay Ibn Yaqzân). Dissertação de mestrado. SP.FFLCH.USP, 1998, parte III.

(13)

13

extrato da Al-

Šif«’

e o Danesh- ama ( O Livro das ciências); tendo sido esta última uma das obras que escreveu em persa e não em árabe. 14

Durante uma viagem em companhia do príncipe ‘Ala’ Al-Dawlah, Ibn S»n« é acometido de fortes cólicas, sendo obrigado a voltar a Isfahan onde procurou se curar. Numa nova viagem, com o príncipe, é atacado novamente por cólicas e, depois de tentar várias vezes um auto tratamento, acaba por se render dizendo: "O governador que governa o meu corpo, já é incapaz de governar e agora o tratamento não beneficia mais".15

Ibn S»n« permaneceu doente durante alguns dias e morreu em Hamadan com a idade de 58 anos. Sua tumba se encontra junto ao muro sul da cidade.

A vida de Ibn S»n« foi, portanto, muito movimentada, tendo-a aproveitado plena e intensamente; nesta, o vinho, a música e os amores tiveram grande presença. Foi ministro ao menos duas vezes, mas o exercício desta função não prejudicou seus estudos de filosofia. Ao contrário, compôs grande parte de sua obra maior -a Al-

Šif«’

- enquanto era ministro. Além disso, sua autobiografia também testemunha sua piedade: “Todas as vezes que um problema me embaraçava, e que eu não podia encontrar o termo médio de um silogismo, me retirava à mesquita, orando, e invocava o criador de tudo até que ele me revelasse a solução daquele fato difícil e obscuro.”16

A dedicação a várias áreas de conhecimento, aliada a uma vida agitada e plurifacetada, não retiram a unidade a esta e a sua obra; ao contrário, lhes conferem uma envergadura filosófica e científica difícil de ser encontrada em um só homem. Mas, como já ficou indicado, Ibn S»n« não partiu de zero.

Na filosofia seus principais pontos de partida foram as obras de Aristóteles e o sistema de Al- F«r«b». Além disso há nele uma grande presença do pensamento neo-platônico, principalmente de Plotino17. Esta influência já estava

14

Praticamente toda a sua extensa produção foi escrita em árabe mas há algumas exceções escritas em persa como esta que apontamos. BADAWI, A. Histoire de la Philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 606 apresenta uma relação das obras escritas em persa.

15

GOHLMAN,W. E. The life of Ibn Sina. New York: State university of New York Press, 1974, p. 89.

16

BADAWI, A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 597.

17

BADAWI, A. La transmission de la philosophie grecque au monde arabe. Paris: J. Vrin, 1987 fornece um catálogo completo das obras que foram traduzidas para o árabe. Não entraremos em detalhes sobre a influência da chamada Teologia de Aristóteles, ( na verdade, um extrato das Enéadas de Plotino que teve um papel determinante na filosofia árabe, mesclando o aristotelismo ao neoplatonismo) indicando, a título introdutório ao assunto, FAKHRY, M. Histoire de la philosophie islamique.Paris: Les éditions du Cerf, 1989, Cap.I.

(14)

14

presente em Al-F«r«b» de quem podemos citar principalmente a doutrina cosmológica caracterizada por uma vasta descrição metafísica e sistemática do mundo, religando o pensamento plotiniano da emanação à doutrina aristotélica do intelecto. A hierarquia das inteligências e da emanação das esferas do ser necessário até o mundo sublunar, se conforma como uma reunião de elementos da filosofia de Aristóteles e do neoplatonismo.

Quanto à medicina, Ibn S»n« pertence à tradição médica herdada dos gregos. A teoria dos humores de Hipócrates, por exemplo, e as teorias de Galeno foram amplamente difundidas dentro da tradição médica árabe, onde juntamente com Al-R«zi (865-925 d.C. -Rhazes no ocidente-) Ibn S»n« figura entre os maiores médicos.

Tanto na filosofia como na medicina, suas obras foram de suma importância para a formação do pensamento e das ciências ocidentais.18 Os ocidentais conheceram Aristóteles em boa parte por intermédio de Ibn S»n«, sendo que inicialmente o que prevaleceu, até que fossem traduzidas as obras de filosofia natural do mestre grego eram, na verdade, muito mais as idéias de Ibn S»n« do que as do próprio Aristóteles.

Na medicina, também, sua presença foi marcante. A obra Al-Qanūn fi

Al-²

ib (o Cânon da medicina) foi adotada nas universidades européias até o séc. XVI como texto de base para o ensino médico, sendo uma síntese dos conhecimentos médicos de sua época e de suas próprias experiências .19

Particularmente, a simultaneidade nas duas áreas do conhecimento, medicina e filosofia, parece ter atingido alto grau de excelência em Ibn S»n«, tanto pelo que produziu quanto pela influência posterior de suas obras. Esta dupla referência se configura de suma relevância, na medida em que se quer compreender as relações que Ibn S»n« estabelece entre as teorias médicas e as filosóficas. Isto se torna bastante claro quando nos propomos estudar uma obra como o Kit

«

b al- afs, visto o constante paralelismo e apoio das teorias fisiológicas para reforçar os conceitos filósoficos sobre a 'alma' praticados por Ibn S»n«.

18

Quanto à influência do pensamento de Ibn S»n« no ocidente medieval remetemos a GOICHON, A.M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médiévale. Paris: Librarie d'Amérique et d'Orient, 1940.

19

SAID, H. M. "O Cânon da Medicina". Revista O Correio da Unesco. Rio de Janeiro: ano 8, nº12, 1980, pp. 13-17. Cf. também PEREIRA, R. H. S. Avicena: a viagem da alma. Dissertação de mestrado. SP.FFLCH.USP, 1998, pp. 1- 63 para outros detalhes a respeito da vida e obra de Ibn S»n«.

(15)

15

Alguns dados bibliográficos20:

Seguindo a classificação das obras de Ibn S»n«, segundo Georges C. Anawati 21 contamos 276 títulos. A divisão mais geral apresenta :

24 títulos de filosofia geral, dentre os quais a enciclopédia Al-

Šif«’

; 22 títulos de lógica, 3 títulos de linguística, 1 título de poesia, 26 títulos de fisica, 33 títulos de psicologia, 43 títulos de medicina,

6 titulos sobre química e magia;

15 títulos sobre matemática, música e astronomia; 32 títulos de metafisica,

6 títulos de exegese do Alcorão, 32 títulos de tratados místicos,

11 títulos de moral, economia, política e profecia; e 22 cartas pessoais.

Uma classificação cronólogica aproximada dessas obras é possível, graças à autobiografia de Ibn S»n« posteriormente completada por seu discípulo Al- J−zj«n». A partir das indicações desta, pode-se reconstruir, ao menos em parte, as datas aproximadas em que as obras foram escritas, inserindo-as dentro de uma divisão da vida de Ibn S»n« em seis grandes períodos. A divisão proposta por Anawati é a seguinte:

Iº Período: estada em Bukhara IIº Período: viagens

IIIº Período: estada em Jurjan

20

BADAWI, A. Histoire de la Philosophie en Islam Paris: J. Vrin, 1972, apresenta indicações sumárias das obras de Ibn Sina, remetendo (nota à p. 602) à Bibliographie d'Ibn Sina, por Y. Mehdawi, Teheran, 1954, na qual se baseara e que julga ser mais completa e precisa que a de G.C. Anawati no Essai de Bibliographie avicennienne, na qual nos baseamos. No entanto, as indicações sumárias dadas por Badawi são suficientes para confirmar os dados que nos eram necessários e que havíamos encontrado na classificação de Anawati.

21

ANAWATI, G. C. “Essai de bibliographie avicennienne" . Revue Thomiste. Paris: vol. 51, pp. 407-440, 1951. Retomada em ANAWATI, G.C. Études de philosophie musulmane. Paris: J. Vrin, 1974, pp. 229-262. Lembramos que JANSSENS L. J. An annotated bibliography on Ibn Sina.Leuven: University Press, 1991 segue, em linhas gerais, a classificação de Anawati mas traz informações complementares e mais atuais no que tange às edições e às traduções das obras elencadas.

(16)

16

IVº Período: estada em Al-Ray Vº Período: estada em Hamadan VIº Período: estada em Isfahan

Será de acordo com essa divisão que procuraremos indicar em que época e em que condições foi escrita a enciclopédia Al-

Šif«’

, que na parte da física contém o Kit

«

b al- afs, objeto de nosso estudo. Passemos, portanto, a nos deter no que concerne à Al-

Šif«’

.

(17)

17

CAPÍTULO I

A AL-

ŠIFª

ŠIFª

ŠIFª

ŠIFª

’ E O KIT

ª

ª

ª

ª

B AL-AFS A Al -

Šif«’

:

A Al-

Šif«’

pode ser considerada "a mais importante obra de Avicena". 22 O seu título significa "A Cura". Esta obra foi escrita em árabe. De acordo com a divisão da vida de Ibn S»n« nos seis grandes períodos, citados anteriormente, esta obra estaria situada nos dois últimos períodos, isto é, nas suas estadas em Hamadan e posteriormente em Isfahan."A obra, iniciada em Hamadan, foi terminada 10 anos depois em Isfahan, quando Ibn S»n« tinha 50 anos."23 Neste caso, esta seria, portanto, uma das obras da sua maturidade.

Ibn S»n« declara que a intenção da Al-

Šif«’

é reunir todos os conhecimentos mais significativos da filosofia e das ciências antigas que tornaram-se-lhe conhecidos:

"Nosso objetivo neste livro - esperamos que nos seja concedido tempo suficiente para terminá-lo e que a ajuda de Deus nos acompanhe para compô-lo - é registrar nele a quintessência dos fundamentos que verificamos nas ciências filosóficas atribuídas aos antigos, fundadas na especulação ordenada e comprovada, e os fundamentos descobertos pelas inteligências que se ajudam entre si para perceber a verdade (...)Procurei registrar nele uma grande parte da arte (da filosofia) (...) Esforcei-me em ser muito breve e me esquivar absolutamente das repetições. (...) Nos livros dos antigos não se encontra nada que não tenhamos levado em conta e não tenhamos incorporado neste nosso livro. Se não se encontrar no lugar em que usualmente os estabelecemos, será encontrado em outro lugar que me pareceu mais conveniente." 24

A Al-

Šif«’

é uma obra enciclopédica, apresentando-se como um conjunto ordenado que agrupa grande parte das ciências racionais da época. Ibn S»n« introduz

22

- ANAWATI, G. C. “Essai de bibliographie avicennienne”. Revue Thomiste. Paris: vol. 51, p. 417, 1951.

23

MADKUR, I. B. “ Al-Shifa - O universo em um livro.” Revista O Correio da Unesco. Rio de Janeiro: ano 8, nº12, 1980, p. 22.

24

Al Shifa, Lógica, 1, Introdução, ed. árabe, pp. 9-10 in GUERRERO, R. R. Avicena Madrid: Ediciones del Orto. 1994, pp.53-54. Há também uma tradução deste trecho in MADKUR, I. B. “ Al-Shifa - O universo em um livro.” Revista O Correio da Unesco. Rio de Janeiro: ano 8, nº12, 1980, p. 22.

(18)

18

nesta obra suas próprias pesquisas e hipóteses pessoais, aceitando certas posições de seus predecessores e rejeitando outras, não se tratando, pois, de um comentário aos antigos, mas antes, de uma nova síntese dos conhecimentos e das ciências da época.

A envergadura dessa obra, com tal soma de assuntos filosóficos, permite que Madkur afirme que "não encontramos nenhum livro de filosofia que se assemelhe a ela"25 e ainda que "...poucos livros exerceram em determinado período da história uma influência tão grande quanto a Al-

Šif«’

. Nessa obra-prima de Avicena aparece o duplo aspecto da personalidade do autor: influência recebida e reação pessoal; simples assimilação e contribuição original."26

Apesar de algumas controvérsias devidas ao fato de o próprio Ibn S»n« declarar no prólogo de uma obra posterior denominada Mantiq Al-Masriqiyn 27 ( A lógica da filosofia oriental)28 que as idéias da Al-

Šif«’

não exprimiriam mais o seu próprio pensamento,29 isto não representaria de modo algum qualquer diminuição que fosse de seu valor. Incontestavelmente, segundo Bakós, não obstante esse debate, a

Al-Šif«’

marca o apogeu da obra de Ibn S»n« e "representa uma contribuição importantíssima para a história da cultura da humanidade."30 Acrescente-se a isto o fato de ter sido precisamente esta obra, ainda que apenas parcialmente, e não uma outra, que irá posteriormente influenciar o pensamento, a ciência e a cultura ocidentais.

Poderíamos talvez dizer, até mesmo, que a Al-

Šif«’

é , em certa medida, um marco da história da ciência e do pensamento no qual há um certo afunilamento, uma reunião, na qual tudo o que fôra produzido nesse âmbito tende a repousar, como

25

MADKUR, I. B. “ Al-Shifa - O universo em um livro.” Revista O Correio da Unesco. Rio de Janeiro: ano 8, nº12, 1980, p. 22.

26

Ibid, p. 28.

27

GOICHON, A. M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médievale. Paris: Librarie d'Amérique et d'orient. Paris, 1940, p.18.

28

ANAWATI, G. C. “Essai de bibliographie avicennienne”. Revue Thomiste. Paris: vol. 51, p. 421, 1951.

29

Para a discussão desta questão tão controversa que divide em boa parte os analistas de Ibn S»n«, remetemos a GOICHON, A. M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médievale. Paris: Librarie d'Amérique et d'Orient. Paris, 1940, pp. 1-53; CORBIN, H. Histoire de la philosophie islamique. Paris: Gallimard,1986, Cap. V, item 4-Avicenne et le avicennisme-, pp. 238-247; e BADAWI, A. Histoire de la Philosophie en Islam. Paris: J.Vrin, 1972, p. 609-610. Na própria introdução da Al-Šif«’, Ibn S»n« refere-se a isso: “ Além desses dois livros tenho outro.(...) é o meu livro sobre A Filosofia Oriental. Por outro lado este outro livro (Al-Šif«’) é mais detalhado e está mais de acordo com os companheiros peripatéticos. Quem quiser a verdade sem rodeios deverá se dirigir àquele outro livro; quem quiser a verdade de maneira que se produza uma certa satisfação aos companheiros(...) não necessita do outro livro, então que se dirija a este (Al- Šif«’)”. Cf. GUERRERO, R. R. Avicena. Madrid: Ediciones del Orto, 1994, p.55 e PEREIRA, R. H. S. Avicena: a viagem da alma. Dissertação de mestrado. SP.FFLCH.USP, 1998, pp. 23-41.

30

(19)

19

síntese dentro de seus limites e, por outro lado, muito do que veio a ser realizado depois, parte, também, dessa síntese, então realizada. Passemos, pois, a apresentar sua estrutura interna.

Seguindo a classificação proposta por Anawati,31 encontramos a Al-

Šif«’

catalogada entre as obras de filosofia geral, sob o título de nº 14. Há, ainda, uma indicação lateral que menciona a existência de 105 manuscritos .

A Al-

Šif«’

comporta quatro partes: I) -Lógica,

II) -Física,

III) -Matemática, IV) -Metafísica.

A Lógica compreende 9 livros:

1) Isagoge, 2) Categorias,

3) Perihermeneas, 4) Primeiros Analíticos,

5) Segundos Analíticos, 6) Dialética,

7) Sofística, 8) Retórica

9) Poética,

A Física compreende 8 livros:

1) A Física propriamente dita, 2) O Céu e o Mundo, 3) A Geração e a Corrupção, 4) As Ações e Paixões,

5) Os Meteoros 6) A Alma, o Kit

«

b al- afs, objeto

de nosso estudo

7) As Plantas, 8) Os Animais

A Matemática é disposta em quatro livros:

1) Geometria, 2) Aritmética,

3) Música, 4) Astronomia.

31

(20)

20

E finalmente a Metafisica., em 10 livros.32

Importância histórica

As primeiras traduções, de algumas partes da obra de Ibn S»n«,33 foram feitas primeiramente para o latim, tendo sido parte de um movimento mais amplo, que objetivava fazer conhecer ao mundo cristão as principais obras gregas e árabes, ocorrido nos séculos XII e XIII notadamente na Espanha34 na época do bispo Raimundo de Toledo e posteriormente, tendo nesta cidade um importante centro. Estas traduções representaram muito pouco do total da obra de Ibn S»n«, e não seria demais afirmar que a Idade Média ocidental traduziu apenas uma pequena parte da Al-

Šif«’

, sendo que a parte da lógica, por exemplo, representa apenas 1/14 do texto original árabe. 35

No caso específico da tradução latina do Kit

«

b al- afs a própria dedicatória da tradução se tornou uma fonte histórica importante ao fornecer alguns detalhes de como, quando e onde foi realizado este trabalho. Esta dedicatória,36 encontrada em mais de quarenta manuscritos,37 se faz em nome de um arcebispo de Toledo de nome João: “ Johanni Reverentissimo Toletanae sedis Archiepiscopo et Hispaniarum Primati”. Os dados deste documento revelam, ainda, algumas circunstâncias da tradução, seu método e seus tradutores. Não se pode determinar com

32

Não nos deteremos em fornecer a relação de edições que existem atualmente. Para as respectivas partes da Al-Šif«’ que foram editadas em árabe ou então traduzidas para outros idiomas, ver a relação fornecida por JANSSENS, J. L. An Annotated Bibliography on Ibn Sina (1970-1989). Leuven: University Press, 1991, pp. 3 - 13 .

33

Não cabe aqui determo-nos nas condições específicas em que se deram as traduções das obras de Ibn S»n«. Nos limitamos a uma apresentação de caráter introdutório, notadamente do De Anima. Remetemos à coletânea de artigos sobre as traduções de Avicena no ocidente em D’ALVERNY,M.T. Avicenne en occident. Paris: J.Vrin, 1993; ao artigo de Danielle Jacquart, “ A escola de tradutores” em CARDILLAC, L. (org). Toledo, séculos XII-XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. pp. 155-167; e a AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus de aturalibus IV-V “Avicenna Latinus”, Édition critique par S. Van Riet et Introduction doctrinale par G. Verbeke.1972, pp.92-136. (As citações posteriores seguirão o seguinte formato: VERBEKE. Introd. IV-V, pp. 92-136).

34

O meio toledano, neste período, compunha-se de muçulmanos, judeus e cristãos arabizados (moçárabes). Estes últimos, às vezes possuíam dois nomes: um árabe e um latino. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.92.

35

ANAWATI, G. C. “Essai de bibliographie avicennienne”. Revue Thomiste. Paris: vol. 51, p. 417, 1951.

36

O texto integral da dedicatória é reproduzido em VERBEKE. Introd. IV-V, pp.103-104.

37

O texto do De Anima de Ibn S»n« nos é transmitido por 50 manuscritos: dezessete encontram-se na Itália (oito em Roma); treze na França (dez em Paris); seis na Inglaterra (três em Oxford); cinco na Alemanha; três na Bélgica; dois na Espanha (mas nenhum em Toledo); um em Leiden; um na Suíça; um na Suécia e um na Iugoslávia. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.105.

(21)

21

certeza qual a real intervenção dos arcebispos ou de outros personagens conhecidos no conjunto de traduções que teve Toledo como centro. O Bispo Raimundo é geralmente considerado um mecenas cuja intervenção foi decisiva para a elaboração de traduções do árabe para o latim, mas parece não ter havido, nesta época, uma “célebre escola dos tradutores de Toledo”. Nessa medida a dedicatória do De Anima assume relevância ao indicar algumas dessas condições. Mesmo assim, “os enigmas e as contradições”38 que ela apresenta divide as opiniões, deixando ainda muitas lacunas abertas. De todo modo, pela menção do nome do arcebispo citado na dedicatória como “João” sucessor de Raimundo, é possível situar a elaboração da tradução do De Anima entre 1152, data da morte de Raimundo e 1166, data da morte de João.

O método de tradução é apresentado na própria dedicatória como um trabalho de equipe: “Eis, pois, este livro, traduzido do árabe conforme vossa orientação, eu dizendo cada palavra em língua vulgar39 e o arquediácono Domenico a transferindo e convertendo em latim.” No entanto, em que medida esta etapa oral era realizada, isto é algo que não se esclareceu e não se sabe se o tradutor arabofone conhecia ou não o latim e, se o tradutor latinista conhecia ou não o árabe. O que se confirma é que a tradução contém muitos equívocos. A confrontação entre o texto árabe e o latino mostra inúmeras distorções, dentre elas, confusões entre raízes árabes e erros de sintaxe devido à estrutura maleável da língua árabe. O latinista da equipe é nomeado como Domenico (Domingos) embora nenhum dos manuscritos forneça o seu nome completo. Apesar disso, normalmente este nome é identificado com o de “Domenico Gundissalinus” ou “Domenico Gundissalvi”, falecido em 1190 e que, na sua juventude entre 1152 e 1160, talvez pudesse ter realizado este trabalho. Tal identificação , no entanto, não põe fim a uma série de questões que ainda permanecem abertas em torno do latinista da equipe. Depois do nome e dos títulos do arcebispo de Toledo, a dedicatória traz o nome do personagem que escreve a própria carta e que se identifica como o arabofone da equipe: “Avendauth Israelita Philosophus”.40 Há muitas hipóteses em torno de seu nome mas a verdade é que não se sabe ao certo quem era o sábio “Avendauth” de Toledo por volta de 1150. Uma das hipótese é que Avendauth seria “Abraham Ibn Daud”, sábio judeu

38

VERBEKE. Introd. IV-V, p.94.

39

A língua vulgar era a língua românica. Cf. VERBEKE. Introd. I-III, p. 98.

40

Há alguns manuscritos que citam o nome de Gerardo de Cremona como o tradutor do De Anima. No entanto, esta atribuição parece ter pouca credibilidade pois na mesma época, Gerardo estava traduzindo o Canon de Ibn Sina. Cf.VERBEKE. Introd. IV-V, p.102.

(22)

22

que viveu em Toledo nessa época e que era conhecido por um tratado filosófico escrito em árabe. No entanto, a afirmação de Verbeke mantém o tema na obscuridade: “Em torno da personalidade de Avendauth, o mistério permanece”.41

Não obstante as inúmeras dificuldades de identificação dos tradutores e até mesmo os vários equívocos nas traduções da obra de Ibn S»n«, estas foram suficientes para despertar o espírito dos ocidentais medievais para novas considerações de toda ordem, tornando-as referência praticamente presente em todas as formulações medievais posteriores, tendo sido, pois, de suma importância no desenvolvimento do pensamento ocidental .

Fundamentalmente a filosofia de Ibn S»n« foi conhecida pela Metafísica, os tratados Do Céu, Dos Animais, Sobre a Geração e a Corrupção e o Livro VI dos Estudos da Natureza (Sextus de aturalibus -Da Alma- Kit

«

b al- afs-). Além disso foram traduzidos importantes fragmentos de lógica e das ciências naturais (Física). Este grupo de escritos, mesmo que fragmentários, se comportou como o "primeiro conjunto de doutrinas verdadeiramente constituído que chegava ao ocidente" 42 No caso do De anima, considerado como o primeiro tratado de psicologia racional que penetrou no Ocidente, seu impacto é verificado não só pelo seu próprio conteúdo mas também porque apresentava, pela primeira vez, uma síntese do De Anima de Aristóteles.43

O choque, causado sobre a teologia cristã será enorme.44 Todos os nomes da escolástica universitária cristã ( Boaventura, Alberto Magno, Rogério Bacon, Tomás de Aquino, João Duns Scot, etc) não só se referem a Ibn S»n« e o citam, mas se apoiam nele. E mesmo quando dele discordam, dão-se ao trabalho de discutir detalhadamente suas teses. Para ficar num único exemplo, Tomás de Aquino o cita na Suma de Teologia mais de 250 vezes.45 Provavelmente as bases da metafísica de Duns Scot seriam impossíveis sem as concepções avicenianas sobre o ente e a essência.46 Teremos

41

VERBEKE. Introd. IV-V, p.101.

42

GOICHON, A. M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médiévale. Paris: Librarie d'Amérique et d'Orient, 1940, p.90.

43

Houve também uma tradução de Nemésio (De atura hominis) que também foi feita à mesma época, talvez alguns anos antes. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.102.

44

A respeito de aspectos importantes da repercussão do pensamento de Ibn S»n« no ocidente veja-se GOICHON, A.M. La philosophie d'Avicenne et son influence en Europe médiévale. Paris: Librarie d'Amérique et d'Orient, 1940, cap. III p. 89 - 133. e DE LIBERA, A. La philosophie médiévale. Paris: P.U.F., 1993, p. 117 -120.

45

Cf. FOREST, A. La structure métaphysique du concret selon Saint Thomas d’Aquin. Paris: J.Vrin, 1956, 2ª ed., pp 331-360: tabela de citações de Avicena por Tomás de Aquino.

46

Cf. GILSON, E. “Avicenne et le point de départ de Duns Scot”, Archives d’Histoire Doctrinale et Littéraire du Moyen Âge, 1927, pp. 89-149, V.2.

(23)

23

oportunidade, mais adiante, de particularizar estas indicações no que se refere ao De

anima ou Liber Sextus de aturalibus, o Livro VI dos Tratados sobre a atureza, o Kit

«

b al- afs.

O Kit

««««

b Al-afs. Características Gerais:

Como havíamos alertado na apresentação deste trabalho, o Kit

«

b al- afs não é um comentário ao texto de Aristóteles sobre o mesmo assunto, mas é antes uma exposição sistemática das próprias idéias de Ibn S»n«. A intenção de Ibn S»n« é, antes de mais nada, encontrar explicações para as realidades observáveis, o que lhe confere, em certa medida, um perfil ‘empírico’ com raízes e inspirações aristotélicas. De modo geral, os contornos do tratado acompanham os do mestre grego em seu De Anima mas se desenvolvem em dois sentidos: no primeiro, aquilo que em Aristóteles está dito de modo embrionário ou apenas potencial, adquire em Ibn S»n« contornos mais definidos e classificações mais precisas; no segundo, Ibn S»n« se distancia do aristotelismo, acrescentando elementos de outras fontes para assegurar suas posições a respeito da alma. Além disso, é notável o desenvolvimento dado à parte fisiológica, aliando de forma acentuada a tradição médica à tradição filosófica.

Entendemos que para termos uma noção melhor de como se apresenta esta exposição de Ibn S»n«, diríamos que este, indubitavelmente, utiliza-se de teorias e de idéias já consagradas, mas apenas na medida em que estas tenham uma função clara para compor com o seu sistema e partilhar de suas convicções como um todo. Se, por outro lado, tais idéias não se articularem com suas premissas, com certeza serão criticadas e negadas em seu valor de verdade. Por essa razão, mesmo possuindo um declarado respeito pela sabedoria dos antigos, e principalmente pela de Aristóteles, Ibn S»n« parece se colocar numa postura que o possibilita ir além de tudo o que já fôra dito.

Nessas condições lhe é possível discutir com todos os que o antecederam, concordar com eles e eventualmente discordar deles baseado fundamentalmente em suas experiências ou conclusões que o amparam de maneira vigorosa. É nessa medida que

(24)

24

entendemos que Ibn S»n« pode se utilizar de inúmeras teorias consagradas tanto na filosofia, como por exemplo, a doutrina da alma como forma do corpo, quanto na medicina, como por exemplo, a doutrina do pneuma, procurando articulá-las com elementos de sua fé muçulmana, como no caso da profecia, que constitui o ápice do conhecimento. A articulação desses diversos elementos refletem a sua síntese própria. Isso permite que se identifique a personalidade do autor de modo a diferenciá-lo absolutamente de seus antecessores, sejam eles árabes ou gregos.

Importância histórica:

Talvez não seja despropositado começar relembrando que a questão medieval a respeito da alma possui uma unidade de fundo que se desdobra em dois momentos teóricos: um greco-latino ( agostiniano e boeciano) e outro peripatético ou greco-árabe. Segundo Alain De Libera "Na tradição greco-latina que precede a difusão dos textos peripatéticos, dominam: o modelo trinitário do pensamento e da alma, produzido por Agostinho; a teoria da natureza e do funcionamento da intelecção elaborada nos comentários lógicos de Boécio e o conjunto das proposições psicológicas tiradas da exegese teológica cristã do Timeu. A teoria aristotélica da alma é desconhecida ou negligenciada. O desenrolar integral da teoria medieval do pensamento começa com a leitura de Ibn S»n« e dos escritos naturais de Aristóteles." 47

Ainda, indicando a importância do texto de Ibn S»n«, declara: "Conhecido antes do De anima de Aristóteles, o De anima de Avicena fornece o âmbito quase definitivo da teoria peripatética da alma.(...) A organicidade estabelecida entre biologia, psicologia e teologia explica o sucesso do modelo aviceniano" 48

Segundo G. Verbeke,49 "o tratado de Avicena representou uma etapa original e importante da reflexão sobre o homem". Diferentemente dos inúmeros comentários medievais sobre o De Anima de Aristóteles existentes, que não estão editados porque sequer valem a pena, o tratado de Ibn S»n« destaca-se destes pela originalidade e por sua contribuição na evolução do pensamento filosófico e científico.

47

DE LIBERA, A. A flosofia medieval. Rio de Janeiro: J.Zahar,1990, p. 83.

48

Ibid, p.86

49

(25)

25

O De Anima de Ibn S»n« não é um comentário, mas uma exposição sistemática e uma nova síntese. 50

Ibn S»n« repensa o homem a partir do desenvolvimento das ciências, particularmente da medicina. O âmbito do tratado procura lidar com duas visões aparentemente excludentes, mas que na obra de Ibn S»n« se harmonizam: a materialidade e a imaterialidade do homem. Por um lado, desenvolve uma visão de alma muito mais espiritualista que a de Aristóteles;51 por outro lado, fornece elementos que possibilitam a articulação dos elementos fisiológicos tanto da anatomia do cérebro, da estrutura dos órgãos, das funções do coração e fígado, do papel do sistema nervoso e inúmeras outras caracterísiticas do homem visto como organismo corporal.

O aspecto espiritualista ao qual o homem está vinculado neste tratado de Ibn S»n«, possibilitou, que ele fosse acolhido com simpatia pelo ocidente cristão,52 ao menos num primeiro momento. O momento seguinte, foi menos favorável, a partir do início dos debates a respeito da transcendência do intelecto agente, que ameaçaria, segundo a visão dos teólogos cristãos, a integridade da pessoa humana.53 No entanto, a maioria dos teólogos e filósofos da Idade Média latina frequentemente se apoiou sobre a autoridade de Ibn S»n« para justificar as suas próprias doutrinas.54

Estes são alguns dos traços que indicam a importância da introdução do De Anima de Ibn S»n« no ocidente medieval. Os desdobramentos posteriores dessa influência, com muita probabilidade, estarão presentes nas teorias psicológicas que adentraram o pensamento moderno, visto que os modernos, mesmo tentando uma ruptura, se apoiaram ainda nos medievais.

Desse modo, ainda que de forma indireta, muitas formulações do pensamento moderno podem encontrar sua mais longínqua inspiração nas teorias de Ibn S»n«. Das formulações da teoria das idéias do empirismo inglês até o limite de algumas intuições cartesianas, pode-se avaliar o quanto o pensamento de Ibn S»n« foi abrangente, trazendo ao despertar do ocidente a sabedoria dos antigos de modo renovado e consistente. Influenciou cientistas, teólogos e médicos, numa obra de amplos horizontes, um dos pilares do impulso verificado na Europa no seu período de despertar e de maior efervescência. 50 Ibid, p.3. 51 Ibid, p.1. 52 Ibid, p.1. 53 Ibid, p.1. 54 Ibid, p.1.

(26)

26

As edições:

Na classificação bibliográfica de Badawi encontra-se anotado que a Física da Al-

Šif«’

foi editada (em litografia) em Teerã em 1886. Particularmente no que se refere ao Livro VI -Kit

«

b al- afs- pudemos identificar as seguintes edições:

1) RAHMAN, F. Avicenna's De Anima, Being the Psychological part of Kitab Al-Shifa. London: Oxford University Press, 1960 ;

2) BAKÓS, J. Psychologie d'Ibn Sina. Praga: Académie Tchecoslovaque des Sciences, 1956. (Acompanhada de uma tradução francesa)55;

3) AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus de aturalibus I-II-III.”Avicenna Latinus”, Édition critique par S. Van Riet et Introduction Doctrinale par G. Verbeke.1972; AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus de aturalibus IV-V.”Avicenna Latinus”, Édition critique par S. Van Riet et Introduction Doctrinale par G. Verbeke.1968;

5) De anima et Philosophia Prima. Veneza, 1508. (Primeira edição latina);

6) BADAWI, A. Histoire de la philosophie en Islam. Paris: J. Vrin, 1972, p. 672-674 e 678-679. (Tradução parcial, confrontada com a tradução de Bakós).

55

Esta é a edição que, em princípio, utilizamos para realizar a maior parte desta pesquisa. Entretanto, recorremos frequentemente ao texto latino para dirimirmos dúvidas.

(27)

27

A Divisão :

O Kit

«

b al- afs constitui-se de uma introdução e de cinco capítulos , sendo que cada capítulo é dividido em seções, variando seu número, conforme o capítulo, de quatro a oito. Os capítulos possuem aproximadamente a mesma extensão, exceto o capítulo III, que tem praticamente o dobro da extensão dos outros e é dedicado exclusivamente ao estudo da luz e da visão.

Na Introdução, Ibn S»n« apresenta a posição deste livro em relação ao conjunto da enciclopédia Al-

Šif«’

.

O Capítulo I é dividido em cinco seções.56 É dedicado principalmente a definir a alma, refutar as doutrinas que Ibn S»n« considera falsas, estabelecê-la como uma substância e iniciar a enumeração das diversas faculdades que a alma possui.

Primeira seção: Constatação da existência da alma e sua definição; Segunda seção: Opiniões dos antigos e refutação;

Terceira seção: A alma como substância; Quarta seção: A diversidade das faculdades; Quinta seção: Enumeração das faculdades.

O Capitulo II trata da alma vegetal e dos sentidos externos de que é dotado o animal.

Primeira seção: Determinação das faculdades da alma vegetal; Segunda seção: Dos modos de percepção que possuímos; Terceira seção: Do tato;

Quarta seção: Do paladar e do olfato; Quinta seção: Da audição.

O Capitulo III, como dissemos, é o mais longo e se refere apenas à luz e ao sentido da visão.

Primeira seção: Da luz, da diafanidade e da cor; Segunda seção: Da claridade e do raio luminoso;

Terceira seção: Refutação de doutrinas sobre a claridade;

Quarta seção: Reflexão sobre as doutrinas enunciadas sobre as cores;

56

(28)

28

Quinta seção: Das doutrinas sobre a visão;

Sexta seção: Refutação de doutrinas sobre a visão; Sétima seção: Solução das dúvidas enunciadas;

Oitava seção: Da causa pela qual uma coisa é vista como duas coisas.

O Capitulo IV, o que mais nos interessa neste trabalho, trata dos sentidos internos.

Primeira seção: Enunciado universal sobre os sentidos internos no animal;

Segunda seção: Da faculdade formativa e cogitativa;

Terceira seção: Da faculdade que se lembra e da estimativa; Quarta seção: Das faculdades motoras.

O Capítulo V apresenta fundamentalmente as faculdades da alma racional, terminando com a explicação dos orgãos que pertencem à alma.

Primeira seção: Ações e paixões da alma humana; Segunda seção: Prova da subsistência da alma racional;

Terceira seção: Relação da alma humana com os sentidos e o início do ser da alma;

Quarta seção: De que a alma humana não se corrompe nem se transmite; Quinta seção: Do intelecto agente e paciente;

Sexta seção: Dos graus de inteligência e o intelecto santo; Sétima seção: Doutrinas herdadas dos antigos;

Oitava seção: Explicação dos órgãos que pertencem à alma.

Passaremos, em seguida, a apresentar as principais teses de Ibn S»n« no que se refere aos sentidos internos. Para fazer isto é, no entanto, necessário situá-lo no conjunto da obra, seguindo o próprio encadeamento dado pelo autor. Não pretendemos apresentar por igual todos os capítulos e seções, sendo o que não diz respeito diretamente aos sentidos internos mencionado apenas a título de melhor localização e compreensão destes. Na realidade, apresentamos uma leitura do Cap. I, como preparação para a exposição da doutrina acerca dos sentidos internos (Cap. IV). Este será acompanhado de maneira mais detalhada.

(29)

29

CAPÍTULO II:

OS SETIDOS ITEROS O KIT

ª

ª

ª

ª

B AL-AFS Prolegômenos: o quadro geral do Kit

««««

b al-afs (Cap.I)

Introdução:

A abertura do Livro VI se dá com a frase:

“Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.”57

Em sua introdução, Ibn S»n« fornece um quadro geral dos livros que já foram escritos na parte da Física58, assim como dos demais livros que serão sucessivos a este.59A hierarquia dos seres físicos pode ser verificada através da própria forma ascencional com que são divididos e apresentados os livros e seus respectivos temas.

No primeiro livro tratou das coisas comuns às coisas naturais (Física); 60 em seguida, no segundo livro tratou a respeito do céu e do mundo sublunar, dos corpos e dos movimentos primeiros no mundo da natureza (De Caelo et Mundo). Indica que nos livros três e quatro, falou-se sobre a geração e a corrupção dos corpos e dos elementos dos corpos (De Generatione et Corruptione e De Actionibus et Passionibus universalibus quae fiunt ex qualitatibus elementorum) e sobre as qualidades primeiras e suas paixões e sobre as misturas que nascem disso. O livro quinto, trata das coisas engendradas, tendo como objeto as coisas sólidas e o que não tem nem sensibilidade nem movimento voluntário visto serem as mais antigas dentre elas e as mais próximas delas, enquanto engendradas a partir dos elementos (De Mineralibus). Ora, da ciência natural restou o estudo relativo aos vegetais e aos animais sendo, estes, coisas engendradas que possuem, não apenas a simples combinação dos elementos, mas uma combinação tal que nos permite diferenciá-los dos outros corpos. Isto se dá porque possuem não só matéria, mas também alma, que lhes confere essencial diferença na

57

Int, p. 3.

As citações do texto original seguirão o seguinte formato: I, 2, 35, significando respectivamente Capítulo I, Seção 2, página 35 da edição de Jan Bakós.

58

A filosofia da natureza (scientia naturalis), na Al-Šif«’, compreende oito tratados. O De Anima é o sexto.

59

Não são citados os 9 livros da primeira divisão da Lógica. A sequência, iniciada pelos Livros da parte da Física, da parte da Matemática e terminando com os da Metafisica e a ciência dos costumes confirma, de modo geral, a divisão de Anawati (Cf. supra pp. 16-17). Esta divisão não é original, visto que a encontramos em Aristóteles nos Meteorológicos (338ª -339ª). No entanto, no que se refere à Física, Ibn Sina insere alguns tratados pseudo-aristotélicos.

60

Isto é, a física propriamente dita em que estuda sobretudo o movimento, o tempo e outras questões relativas ao mundo material. Cf. VERBEKE. Introd. IV-V, p.9.

(30)

30

medida em que são dotados de sensibilidade e movimento, nascimento, crescimento e geracão. Portanto, o livro sexto (Sextus de naturalibus) tratará da alma. Assim, Ibn S»n«, como Aristóteles, classifica a psicologia entre as ciências naturais, sendo ela um ramo da física, tendo por objeto a alma do ser animado, do ζωον εµψυχον. Ibn S»n« não faz referência aos dois últimos livros depois do De Anima mas, são eles: o estudo das plantas (De Vegetabilibus) e dos animais (De Animalibus)61 O estudo da vida, começando no sexto livro, se inicia pela análise da alma naquilo em que há de comum no homem, nos animais e nas plantas. Por isso os tratados sobre os vegetais e animais vêm depois do Livro VI. Assim como o estudo da Física introduz o estudo do mundo material, este tratado introduz o estudo do mundo biológico.62

Αpós explicar os procedimentos adotados para dividir o estudo da alma no que concerne ao vegetal, ao animal e à alma humana, Ibn S»n« indica que irá iniciar este estudo primeiramente pelas informações relativas à alma, e depois pelas informações relativas ao corpo, visto que considera essa sequência melhor para o ensinamento do que o contrário.

Na medida em que o conhecimento de toda coisa é primeiramente o que se refere à sua forma, justificar-se-ia o porquê de se falar primeiramente da alma e depois do corpo.No entanto, Ibn S»n« não considera que essa sequência seja necessária, afirmando que não entrará em disputa se alguém decidir inverter a sequência proposta. No nosso caso estamos totalmente isentos de tal disputa com Ibn S»n«, pois optamos por seguir o quanto possível a sua sequência, procurando relatar passo a passo as suas principais considerações.

61

Cf.VERBEKE. Introd. IV-V, p.9.

62

(31)

31

CAPÍTULO PRIMEIRO: Da ciência da alma em cinco seções

Primeira seção: Constatação63 da alma e sua definição enquanto alma.

Esta primeira seção apresenta duas considerações básicas para o estudo da alma: a constatação da existência da alma e sua definição como alma.

A primeira coisa de que é preciso falar é a constatação da existência da alma. Isso pode ser feito a partir do fato de que observamos não apenas corpos, mas determinados corpos que sentem e se movem espontaneamente, se nutrem, crescem e engendram semelhantes. Ora, esses corpos não podem ser o que são, apenas pela sua corporeidade, pois se assim fosse, a simples corporeidade seria suficiente para os dotar dessas características de sensibilidade e movimento espontâneo, nutrição, crescimento e geração; o que, na verdade, não é observado, visto que há corpos que não possuem essas particularidades.64 Resta, pois, que existem princípios outros que a própria corporeidade dos corpos que lhes garantam as características mencionadas. É justamente isso, que é o princípio do qual procedem essas ações espontâneas, que chamamos alma.

Isto a que chamamos alma é parte da constituição das coisas que afirmamos possuí-la. Pois, sendo as coisas, que afirmamos possuírem alma, corpos e sua existência enquanto vegetal ou animal só se perfazendo em razão da existência dessa nelas, é forçoso que esta seja parte inerente de sua constituição.

Mas é necessário definir como ela participa dessa constituição, visto que as partes da constituição de uma coisa podem ser de duas categorias: ato e potência. Se a alma fosse da segunda categoria, isto é, potência como é o corpo, seria necessário algum outro tipo de ato que realizasse a perfeição do animal e do vegetal. Mas tal perfeição é justamente a alma, que realiza este acabamento. Desse modo, a alma é isso pelo que o vegetal e o animal tornam-se vegetal e animal em ato. É forçoso que ela seja

63

O termo

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- itb«t - encontra sua melhor tradução como ‘constatação’, ‘afirmação’. (Cf. REIG, D. Dictionaire Larousse arabe-français. Paris: Larousse, 1987, p. 74 ). A tradução latina adotou o termo ‘afirmação’ (Cf. AVICENNA. Liber de Anima seu Sextus de aturalibus I-II-III , p. 14 e Léxique arabo-latin, p. 299). Bakós adotou o termo ‘preuve’ - prova, mas este cabe melhor ao termo

²\·z^

- burh«n - (Cf. ISKANDAR, J. I. Avicena - A origem e o retorno. Porto Alegre: Edipucrs, 1999, p. 198 e GOICHON, A. M. Lexique de la langue philosophique d’Ibn Sina. Paris: Desclée de Brouve, 1938, p. 21, n. 47.) Além disso a argumentação de Ibn S»n«, nesta seção, confirma tratar-se mais de constatação do que de prova.

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Como há seres corpóreos que são inanimados, o corpo enquanto tal não pode ser o princípio da vida. Cf. VERBEKE. Introd. I-III, p.23.

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uma forma e não um corpo, pois se assim fosse, o próprio corpo seria sua forma, o que não se pode sustentar. Assim sendo, pode-se afirmar que: “ (...) é claro que a essência da alma não é um corpo, mas parte do animal e do vegetal; ela é uma forma, ou como forma ou como perfeição .” 65 A partir dessas análises parciais, podemos estabelecer em que sentido, podemos chamar a alma de faculdade, forma ou perfeição.

Podemos denominar a alma como sendo uma faculdade em vista dos atos que dela procedem, o que significa tanto as ações de crescimento, geração e nutrição, quanto do próprio movimento e da sensibilidade. Do mesmo modo, ainda, podemos chamá-la faculdade, mas num outro sentido, que não se refere propriamente a esse tipo de atos que mencionamos, mas a certas formas sensíveis e inteligíveis que se aproximam dela. Nesse segundo caso, então, estaríamos diante não só da simples animalidade, mas de outras funções próprias dos processos de sensação em conexão com a intelecção.

Podemos também chamá-la forma relativamente à matéria que ela tomou por receptáculo, sendo que, desse modo, o composto matéria e forma se torna uma substância 66 vegetal ou animal.

A alma pode ser chamada também de perfeição relativamente ao acabamento do gênero em espécie realizado por ela, visto ser a natureza do gênero incompleta e indeterminada enquanto a natureza da diferença não a colocar em ato reunindo-se a ela; sendo que a espécie é acabada somente quando a diferença é assim reunida.67 Ora, se a espécie é ato em relação ao gênero, se a perfeição é o acabamento do gênero pela atualização da espécie através dos seres particulares, e se a alma , como forma, é esse acabamento, logo, a alma é perfeição, no sentido de que, como forma em relação à matéria, aperfeiçoa o gênero, atualizando-o na espécie, pelos particulares.

Dessa maneira, temos então quais os sentidos que podem ser atribuídos à denominação de alma. Num primeiro sentido pode ser chamada de princípio eficiente e faculdade motora em relação ao movimento; num segundo sentido, pode ser

65

I,1,6. A tradução literal do árabe é “ como forma ou como perfeição” -

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. O texto latino traduziu este final como “quase forma ou quase perfeição” entendendo a partícula ‘

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‘, antes do substantivo, como uma comparação (“ como se fosse uma forma ou como se fosse uma perfeição ” ) permitindo, nesse caso, que se entenda forma não no mesmo sentido aristotélico, mas com uma leve nuance, visto que, para Ibn Sina, sendo a alma uma substância imaterial como pode ser considerada a forma do vivente que é o homem? Cf. VERBEKE. Introd. I-III, p.23.

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Trata-se do συνολον de Aristóteles. Cf. Bakós n. 2.

67

Pode-se dizer que a alma é uma perfeição, pois o gênero recebe dela sua determinação, enquanto que a espécie é constituída por ela. Cf.VERBEKE. Introd. I-III, p. 24.

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denominada forma em relação à matéria; e ainda pode ser chamada de perfeição e fim em relação ao todo. Portanto, deve-se considerar que, quando dizemos que a alma é forma, isto decorre do fato de que sua existência está em relação com a matéria, ao passo que a perfeição exige uma relação com a coisa completa da qual procedem os atos. Assim, quando dizemos perfeição estamos afirmando que a alma é perfeição quanto à sua relação com a espécie. Sendo, pois, preferível referir-se à alma como perfeição, pois, quando dizemos perfeição, isto inclui as duas idéias, isto é, forma e faculdade. Pois a alma, sob o aspecto da faculdade, pela qual se conclui a percepção do animal é uma perfeição e sob o aspecto da faculdade da qual procedem os atos do animal, ela é ainda uma perfeição; a alma isolada é uma perfeição e a alma que não é isolada é uma perfeição. Assim, pode-se estabelecer a perfeição como o conceito mais próprio para a alma. Ao dizer que a alma é perfeição, Ibn S»n« quer dizer que a fisionomia característica e as atividades particulares do ser vivo vêm do princípio psíquico: este não é somente uma fonte de movimento ou de atividade cognitiva, é simultaneamente os dois e está na raiz que constitui a estrutura própria dos seres vivos.68

Resta ainda, no entanto, verificar que, não obstante o fato de chamá-la de perfeição ser o mais apropriado, ainda assim isto não se dá em um só sentido apenas, mas ao menos em dois níveis, porque existem duas espécies de perfeição: uma perfeição primeira que é aquela pela qual a espécie se torna espécie em ato; e uma perfeição segunda que ocorre a partir das ações e das paixões da primeira perfeição. Portanto, a alma, em vista da atualização da espécie é uma perfeição primeira; e tratando-se do exercício, das paixões e ações vindas da espécie dessa coisa, é uma perfeição segunda. Mas como a perfeição segunda não pode existir sem a primeira, podemos afirmar, finalmente, que o que mais caracteriza a alma, visto ser a definição mais geral, que abarca todas as outras é, ser perfeição primeira: “ A alma que encontramos é, então, perfeição primeira de um corpo natural, provido de órgãos, que pode realizar os atos da vida.” 69

Indica-se, ainda nesta seção o tema da substancialidade da alma. Apesar da definição da alma como perfeição, com isto não conhecemos se ela é ou não uma

68

Cf.VERBEKE. Introd. I-III, p. 24.

69

I,1,10. Esta definição aproxima-se bastante da de Aristóteles no De anima II 412 a 20, na qual afirma a alma como a forma de um corpo natural tendo a vida em potência, e II 412b5 em que afirma a alma como enteléquia primeira de um corpo natural organizado.

Referências

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