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3. VINCULAÇÃO DOS PARTICULARES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL

3.2 A PRÁTICA JURISPRUDENCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O Supremo Tribunal Federal possui, historicamente, uma função de defensor dos direitos e garantias fundamentais, apesar de todas as dificuldades políticas. Tal função teve início nos primórdios da República, tendo sido muito necessária para a alteração da mentalidade aristocrática que ainda vigorava no país, com o objetivo, principalmente, de limitar os poderes do Estado.

O tribunal julgou importantes habeas corpus, geralmente impetrados por Rui Barbosa, que colocaram a referida Corte na missão de defender as liberdades públicas das ilegalidades e abusos governamentais do Poder Executivo.

Também no início da República Brasileira, o Supremo Tribunal ainda decidiu que o Poder Executivo não detinha o direito de poder deportar estrangeiros em tempos de paz só tendo em vista medidas políticas e através de mera fórmula administrativa.

Tendo por base esse breve apanhado histórico, percebe-se que o STF foi, assim, firmando-se no cenário político nacional como um verdadeiro Poder de Estado e defensor dos direitos fundamentais.

Daqui em diante, realizaremos uma exposição dos principais casos em que o Supremo decidiu sobre a questão da incidência dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, por meio de uma ordem cronológica dos seus julgamentos.

67 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais: eficácia das garantias constitucionais nas

relações privadas – análise da jurisprudência da Corte Constitucional Alemã. In Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, p 218-219.

Primeiramente, vale destacar um caso ocorrido antes da promulgação da Constituição de 1988. À essa época, o STF não tinha uma posição clara sobre a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. De uma decisão da Corte no Recurso Extraordinário nº 63.27968, de 1968, pôde-se extrair que o

tribunal se vinculava à limitação dos direitos fundamentais à esfera pública. Neste julgado, discutiu-se acerca da validade de cláusulas do Estatuto Social do Santos Football Club, que haviam sido impugnadas por um associado, que sentiu o princípio da igualdade ser violado.

No voto do Relator Ministro Amaral Santos, que foi acompanhado pelos demais, foi alegado que:

O princípio da isonomia é de aplicação nas relações de direito público, ou naquelas em que o direito público interfere. Assim, nas relações de direito privado, como são as que se estabelecem entre os sócios de uma associação esportiva e esta mesma associação, a primeira coisa a verificar-se, para se cogitar da aplicabilidade ou não do princípio, é se alguma norma de direito público a impõe. Inexistente esta norma, os estatutos da associação dessa natureza poderão livremente estabelecer aquelas relações conforme for do interesse associativo.

Já após a promulgação da Constituição de 1988, o tema em questão novamente chegou à Corte Suprema, em 1995, com o julgamento do Recurso Extraordinário nº 160.22269, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence. Neste

recurso, a discussão girava em torno da conduta da empresa De Millus S.A., fabricante de roupas íntimas, tendo em vista que era obrigatória a submissão de suas empregadas à prática de revista íntima, com o intuito de impedir o furto de mercadorias.

O diretor-presidente da empresa foi denunciado pelo crime de constrangimento ilegal, sendo condenado em primeira instância. No entanto, foi

68 Supremo Tribunal Federal Recurso Extraordinário nº 63279/SP, Relator: AMARAL SANTOS, Diário da Justiça da União, Brasília, 17 junho 1968.

69 Supremo Tribunal Federal Recurso Extraordinário nº 160222 RJ, Relator: SEPÚLVEDA PERTENCE, Diário da Justiça da União, Brasília, 01 setembro 1995.

absolvido por acórdão do Tribunal de Alçada do Estado do Rio de Janeiro, que decidiu pela validade desse procedimento invasivo, pois este constava do contrato de trabalho assinada pelas supostas vítimas.

Infelizmente, a Corte acabou não apreciou a questão principal da causa, que era justamente a vinculação de particulares a direitos fundamentais, especialmente a privacidade e a dignidade humana de suas empregadas, pois reconheceu a ocorrência de prescrição.

No entanto, é possível perceber, através da manifestação do Ministro Pertence, a sua posição contrária ao acórdão de segunda instância, que legitimou o procedimento sob a alegação de desrespeito à autonomia contratual. Segue trecho do seu voto:

Lamento que a irreversibilidade do tempo corrido faça impossível enfrentar a relevante questão de direitos fundamentais da pessoa humana, que o caso suscita, e que a radical contraposição de perspectivas entre a sentença e o recurso, de um lado, e o exacerbado privatismo do acórdão, de outro, tornaria fascinante.

Segue a ementa do referido Recuso Extraordinário:

Recurso extraordinário: legitimação da ofendida – ainda que equivocadamente arrolada como testemunha –, não habilitada anteriormente, o que, porém, não a inibe de interpor o recurso, nos quinze dias seguintes ao termino do prazo do Ministério Público, (STF, Sums. 210 e 448). II. Constrangimento ilegal: submissão das operárias de indústria de vestuário a revista intima, sob ameaça de dispensa; sentença condenatória de primeiro grau fundada na garantia constitucional da intimidade e acórdão absolutório do Tribunal de Justiça, porque o constrangimento questionado a intimidade das trabalhadoras, embora existente, fora admitido por sua adesão ao contrato de trabalho: questão que, malgrado a

sua relevância constitucional, já não pode ser solvida neste processo, dada a prescrição superveniente, contada desde a sentença de primeira instância e jamais interrompida, desde então.

Pouco tempo depois, em 1996, chegou para julgamento perante a Corte o Recurso Extraordinário nº 158215/RS70, de relatoria do Ministro Marco

Aurélio. Neste recurso, discutiu-se o fato de uma cooperativa ter excluído seus associados, sem que eles houvessem exercido o direito de defesa, como forma de punição. Na decisão, foi acolhida a pretensão dos excluídos, tendo por fundamentação a aplicação direta do direito fundamental à ampla defesa ao caso.

Segue a ementa deste recuso:

DEFESA – DEVIDO PROCESSO LEGAL – INCISO LV DO ROL DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS – EXAME – LEGISLAÇÃO COMUM. A intangibilidade do preceito constitucional assegurador do devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a insubsistência da óptica segundo a qual a violência à Carta Política da República, suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário, há de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal Federal exercer crivo sobre a matéria, distinguindo os recursos protelatórios daqueles em que versada, com procedência, a transgressão a texto constitucional, muito embora torne- se necessário, até mesmo, partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar à inocuidade dois princípios básicos em um Estado Democrático de Direito - o da legalidade e do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem a consideração de normas estritamente 70Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário nº 158215/RS, Relator: MARCO AURÉLIO, Diário da Justiça da União, Brasília, 07 junho 1996.

legais. COOPERATIVA – EXCLUSÃO DE ASSOCIADO – CARÁTER PUNITIVO – DEVIDO PROCESSO LEGAL. Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância ao devido processo legal, viabilizado o exercício amplo da defesa. Simples desafio do associado à assembleia geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da cooperativa.

Vale destacar que o caso em comento foi referência para decisão do Tribunal Superior do Trabalho, em processo sobre o mesmo tema, qual seja, a revista íntima. Segue abaixo a ementa:

DANOS MORAIS. REVISTA ÍNTIMA. CONDUTA OFENSIVA À HONRA E À DIGNIDADE DOS EMPREGADOS. INDENIZAÇÃO. REDUÇÃO PELO TRIBUNAL REGIONAL. FIXAÇÃO NO MESMO PATAMAR PARA AMBOS OS SEXOS. PRETENSÃO DE DIFERENCIAÇÃO PELO TEMPO DE SERVIÇO. SÚMULA Nº 297, I E II, DO TST. VIOLAÇÃO DE PRECEITOS CONSTITUCIONAIS E DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO-CONFIGURADAS. Recurso de Revista nº TST-RR-1.540/2000-004-19-00.0, em que são recorrentes LUIS EDUARDO BORGES DE LIMA e OUTROS e recorrida C & A MODAS LTDA". Constitui fundamento do estado brasileiro o respeito à dignidade da pessoa humana, cuja observância deve ocorrer na relação contratual trabalhista; o estado de subordinação do empregado e o poder diretivo e fiscalizador conferidos ao empregador se encontram em linha de tensão, o que não pode levar à possibilidade de invasão da intimidade e desrespeito ao pudor do trabalhador. A comercialização, pela empresa, de produtos que lhe exigem maior

vigilância sobre os estoques, apesar de ensejar a adoção de revista do empregado, ao término da jornada, não afasta o dever de que ela seja feita segundo meios razoáveis, de modo a não causar constrangimentos ou humilhação, cuja ocorrência configura dano moral a ser reparado. Recurso de revista conhecido e provido.71

Meses depois, ainda em 1996, o STF apreciou outro caso de incidência dos direitos fundamentais diretamente nas relações privadas. Tratava-se do RE nº 161243/DF, de relatoria do Ministro Carlos Velloso, que versava sobre o caso de um empregado brasileiro da empresa francesa Air France, que pretendia o reconhecimento de direitos trabalhistas assegurados no Estatuto da empresa, mas que só tinham por objetivo os empregados franceses, em detrimento dos estrangeiros.

Todos os ministros, no mérito, concordaram que o critério de discriminação stabelecido pela empresa era inadequado. Por isso, haveria violação ao princípio da isonomia garantido pela nossa Constituição.

Com esta decisão, o direito à igualdade foi aplicado de forma direta na relação de trabalho. O Ministro Carlos Velloso se utilizou da clássica frase de Aristóteles de que se deve tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Ainda observou que o fato da nacionalidade ter sido o critério utilizado torna a discriminação ainda pior, eis que os empregados franceses e brasileiros exerciam as mesmas funções na empresa.

CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA

IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO

EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. I. – Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal 71 Tribunal Superior do Trabalho RR 533.770/99-3ª R. – 1ª T. – Relª Juíza Conv. Maria do Perpétuo Socorro Wanderley de Castro – DJU 07.12.2006

da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput).

II. – A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: Ag 110.846 (AgRg)- PR, Célio Borja, RTJ 119/465.

III. – Fatores que autorizariam a desigualização não ocorrentes no caso.

IV. – RE. conhecido e provido.72

Em 2000, O STF, julgando o Recurso Extraordinário nº 251445/GO, de relatoria do Ministro Celso de Mello, decidiu que a proibição prevista no art. 5°, LVI, da Constituição (proibição de utilização de prova ilícita) também alcançaria, no processo penal, a proibição das provas resultantes de ato ilícito perpetrado por um particular, ou seja, em atos no qual o Estado não tenha tido participação. Segue a ementa abaixo:

PROVA ILÍCITA. MATERIAL FOTOGRÁFICO QUE COMPROVARIA A PRÁTICA DELITUOSA (LEI Nº 8.069/90, ART. 241). FOTOS QUE FORAM FURTADAS DO CONSULTÓRIO PROFISSIONAL DO RÉU E QUE, ENTREGUES À POLÍCIA PELO AUTOR DO FURTO, FORAM UTILIZADAS CONTRA O ACUSADO, PARA INCRIMINÁ-LO. INADMISSIBILIDADE (CF, ART. 5º, LVI). – A cláusula constitucional do due process of law encontra, no dogma da inadmissibilidade processual das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras, pois o réu tem o direito de não ser denunciado, de não ser processado e de não ser 72 Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário nº 161243/DF, Relator: CARLOS VELLOSO, Diário da Justiça da União, Brasília, 19 dezembro 1997.

condenado com apoio em elementos probatórios obtidos ou produzidos de forma incompatível com os limites ético- jurídicos que restringem a atuação do Estado em sede de persecução penal. – A prova ilícita – por qualificar-se como elemento inidôneo de informação – é repelida pelo ordenamento constitucional, apresentando-se destituída de qualquer grau de eficácia jurídica.73

Pode-se perceber nos três casos relatados acima, que o STF não mencionou explicitamente de que se tratavam de casos onde havia uma colisão entre direitos fundamentais e onde havia uma divergência entre as ideias de eficácia entre particulares. Dessa forma, em ambos, a questão da eficácia ficou subentendida, apesar do STF ter demonstrado, após a Constituição, que se vinculava à teoria da eficácia direta.

Este cenário se altera com o julgamento do Recurso Extraordinário nº 201.819, em 2005, no qual a Corte analisou, explicitamente, a incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas, sendo considerado pela doutrina um caso “paradigmático”.

O caso em questão envolvia a exclusão de Arthur Rodrigues Villarinho do quadro de sócios da União Brasileira de Compositores (UBC), por ter cometido uma infração perante o estatuto da associação. No entanto, a ele não foi garantido o direito à ampla defesa, pois uma comissão especial que foi designada decidiu, sumariamente, pela exclusão do sócio somente tendo por base documentos juntados por um secretário da associação, sem que tenha sido concedido ao sócio a oportunidade de apresentar defesa e produzir provas. Salienta-se que o compositor que não for associado à UBC não consegue receber direitos autorais por suas obras.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro decidiu pela vinculação dos particulares aos direitos fundamentais e anulou a penalidade, sob o fundamento

73 Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário nº 251445 GO, Relator: Min. CELSO DE

de que não teria sido oportunizado ao sócio o exercício da ampla defesa. A UBC, então, impetrou recurso extraordinário.

O Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria de votos, vencidos os Ministros Ellen Gracie e Carlos Velloso, pelo não provimento do recurso, reconhecendo a eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares. Assim, dessa vez, constou expressamente do acórdão prolatado a vinculação dos particulares ao direito fundamental à ampla defesa. Vide a ementa abaixo:

SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO.

I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS

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