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A PRÉ-COMPREENSÃO AMBIENTAL E A CONSTRUÇÃO DE

5 ALÉM DOS MÉTODOS: O DIREITO AMBIENTAL ENTRE A

5.1 A PRÉ-COMPREENSÃO AMBIENTAL E A CONSTRUÇÃO DE

A hermenêutica filosófica ressalta com peculiar importância a influência de pré-conceitos no momento compreensivo. Todo aquele que compreende realiza um projetar, eis que antes mesmo de ler um texto o intérprete já prelineia um sentido, sujeitando-se a erros e opiniões

prévias. Assim, é imprescindível “que o intérprete não se dirija aos textos diretamente, a partir da opinião prévia que lhe subjaz, mas que examine tais opiniões quanto à sua legitimação, isto é, quanto à sua

origem e validez”,421

sejam tais opiniões quanto a hábitos linguísticos ou mesmo quanto ao conteúdo.

Gadamer coloca a subjetividade humana como um espelho deformante, em que os preconceitos configuram a própria realidade

histórica do ser, e não apenas os seus juízos422. Destarte, o preconceito

próprio é reconhecido por meio da pergunta e do choque com a pretensão de verdade do outro, experimentando a possibilidade de que o outro se exercite por sua vez. Configura-se, aqui, uma abertura à alteridade, a esse Outro que nos fala por meio do texto.

Para uma compreensão adequada do direito ambiental, torna-se fundamental a identificação de tais pré-compreensões, sejam elas quanto à interpretação ou quanto ao conteúdo, e a construção de uma nova forma de conhecimento baseado na complexidade e na alteridade, como maneira de superação dos pré-conceitos.

No campo do direito, quanto aos pré-conceitos relativos a hábitos linguísticos, a noção exerce uma fundamental importância ao verificarmos que os juristas possuem uma série de hábitos linguísticos e comportamentos reiterados aceitos dentro da dogmática como ínsitos à interpretação das leis. Trata-se do que Warat denominou de senso comum teórico. Nas palavras do autor, pode-se sintetiza-lo como “um emaranhado de costumes intelectuais que são aceitos como verdades de princípios para ocultar o componente político da investigação de verdades”423.

A função do senso comum teórico é assegurar o controle social, por meio da visão de que a compreensão é meramente reprodução da vontade do legislador, coibindo (e omitindo) qualquer forma de compreensão criativa ou produtiva. Dessa forma, torna-se possível a centralização da produção de sentido. Ainda, por meio da defesa de um direito positivo, coerente e completo, a interpretação é vista dentro do

paradigma da neutralidade e da segurança jurídica424.

Com a hermenêutica filosófica, torna-se fundamental reconhecer esse senso comum teórico, desvendando-o e desmistificando-o, eis que

421GADAMER, Hans George. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica

filosófica. 3. ed. Petrópolis: Visões, 1999. p. 436.

422Ibidem. p. 436. 423

WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: interpretação da lei temas para uma reformulação. v. 1. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1994. p. 15.

formador da pré-compreensão do intérprete. Não basta a interpretação dos textos: é fundamental a interpretação da própria interpretação. Em outras palavras, não basta interpretar a lei, é fundamental que se esclareça o modo como essa interpretação ocorre.

Inclui-se dentro desse senso comum teórico a noção de que a adoção de métodos interpretativos é suficiente para encontrar a “verdade” jurídica, de forma a reproduzir o “sentido originário” dos textos legais. Todavia, sendo o intérprete um ator social, incluído dentro de uma historicidade, o senso comum acaba encobrindo todo o potencial criativo da interpretação, mantendo um sistema produtor de injustiças socioambientais.

Já no que tange à pré-compreensão quanto ao conteúdo do direito ambiental, esta diz respeito ao que o intérprete entende pelos conceitos

formadores da legislação ambiental, como meio ambiente,

sustentabilidade, dano ambiental tolerável... Isso porque a concepção que se tem de tais conceitos será fundamental para a plena compreensão dos dispositivos normativos, influenciando na construção de sentido dos dispositivos normativos e, consequentemente, no modo como serão aplicados. Por exemplo, tendo o intérprete uma visão mais conservadora de sustentabilidade, pode acreditar ser possível a realização de atividades econômicas poluidoras sem qualquer compensação, face à ponderação de interesses.

Assim sendo, é possível relacionar a pré-compreensão ambiental com a constituição de um conhecimento acerca do ambiente. É nesses termos que se torna possível identificar uma estreita aproximação entre a questão da pré-compreensão na hermenêutica filosófica e o modelo de um saber ambiental fundado na complexidade proposto por Leff, economista mexicano. Leff propõe uma nova epistemologia para lidar com o ambiente, pois “para aprender a aprender é necessário

desaprender e dessujeitar-se dos conhecimentos concebidos”425.

Sendo a crise ambiental uma crise, fundamentalmente, do conhecimento, não é possível solucioná-la por meio da mesma racionalidade instrumental responsável pela destruição do mundo. Daí a imprescindibilidade de realização de um projeto de desconstrução e reconstrução do pensamento, configurando uma hermenêutica ambiental. Nas palavras de Leff, “a hermenêutica ambiental não é uma exegese de textos em busca dos precursores do saber ambiental, mas

425LEFF, Enrique. Pensar a complexidade ambiental. In: ______. (Org.) A complexidade

uma visão situada a partir da complexidade ambiental. [...] A

hermenêutica abre os sentidos bloqueados pelo hermetismo da razão”426

. O ambientalismo é entendido, em Leff, como política do conhecimento, ao mesmo tempo que como projeto de reconstrução social desde o reconhecimento da alteridade. Nesse sentido, aprender a complexidade ambiental pressupõe mais do que a aprendizagem das ciências ambientais, pois “entranha uma reapropriação do mundo desde o ser e no ser”, de forma que o saber ambiental traga a questão do ser no tempo, na história.

A metafísica fez com que predominasse, como uma estratégia de domínio e controle, o pensamento unidimensional e a unificação do mundo, como base de certezas e predições de um mundo assegurado. Verificou-se, assim, um crescente processo de racionalização instrumental e formal, que se expressa tanto na ordem burocrática como

no mercado e nos aparatos ideológicos do Estado427.A complexidade

ambiental propõe, em contrapartida, uma nova compreensão do mundo que passe a reconhecer a incompletude do ser e as limitações do conhecimento, revolucionando tanto o conhecimento como as práticas educativas, de forma a orientar a construção de um mundo fundado na

sustentabilidade, equidade e democracia428.

Nas palavras de Leff,

O saber ambiental rediscute a relação entre realidade e conhecimento: não só busca completar o conhecimento da realidade existente, mas orientar a construção de outra organização social que não seria a projeção para o futuro das tendências atuais. É nesse sentido que a utopia ambiental abre novas possibilidades a partir do reconhecimento de potenciais ecológicos e tecnológicos, em que se amalgamam os valores morais, os saberes culturais e o conhecimento científico da natureza na construção de uma racionalidade ambiental429.

426LEFF, Enrique. Pensar a complexidade ambiental. In: ______. (Org.) A complexidade

ambiental. São Paulo: Cortez, 2003. p. 17.

427LEFF, Enrique. Ecología y capital: racionalidad ambiental, democracia participativa y

desarrollo sustentable. Madrid: Siglo Veintiuno de España, 1994. p. 288-9.

428

LEFF, Enrique. Pensar a complexidade ambiental. In: ______. (Org.) A complexidade

ambiental. São Paulo: Cortez, 2003. p. 15-64. p. 19-23.

Torna-se forçoso convir, com isso, que os conceitos do mundo não são formados a priori, pois as formas de conhecimento com as quais chegamos ao “real” estão sujeitas a formas de entendimento relacionadas à espacialidade e temporalidade dos fenômenos e das

coisas. Logo, as categorias conceituais internalizam o interesse social430.

A proposta de um saber ambiental fundado na complexidade promove uma abertura a tudo aquilo que foi excluído pela racionalidade instrumental-positivista, abertura essa que ocorre por meio da confluência de processos e tempos bloqueados pelo pensamento unidimensional. Nas palavras de Leff,

A hermenêutica ambiental é uma exegese do silêncio: interpretação da introjeção de uma violência repressiva, da palavra perdida, do ocultamento de saberes e verdades como forma de resistência e estratégia de luta ante um outro que atenta contra sua identidade e autonomia431. Não se trata meramente de ecologizar o mundo, incorporando valores ambientais ao pensamento unidimensional. Trata-se de superar a dualidade sujeito-objeto, de forma a incorporar identidades e valores antes excluídos ao saber, internalizando condições subjetivas ao ser.

Nesse sentido, o pensamento de Leff encontra consonância com o que propõe Ost em relação a construção de uma natureza-projeto, caracterizada pelo elo que une o indivíduo ao meio que o cerca, a relação entre eles. Assim, a racionalidade ambiental tem por fundamento a percepção simultânea de nosso vínculo e de nosso limite em relação à natureza432.

O ambiente é situado como um campo heterogêneo e conflitivo em que interesses se confrontam, abrindo perspectivas do desenvolvimento sustentável. A interpretação do real passa a contar com uma multiplicidade de sentidos na interpretação, construindo-se o sentido verdadeiro sobre os interesses sociais diferenciados. Daí a

expressão “um mundo onde caibam outros mundos”433, dada a abertura

do saber ambiental para a “outridade”, para a possibilidade de encontro

430LEFF, Enrique. Pensar a complexidade ambiental. In: ______. (Org.) A complexidade

ambiental. São Paulo: Cortez, 2003. p. 15-64. p. 24.

431Ibidem. p. 52.

432OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa: Piaget,

1995.

433LEFF, Enrique. Precisamos de uma nova racionalidade. Senac e educação ambiental, Rio

de muitos mundos. Mais do que uma questão ética, trata-se de uma ontologia do ser, plural e diverso, alicerçado em um processo de construção coletiva do saber.

Especificamente em relação ao direito, Leff critica o individualismo inerente ao direito, já que mesmo quanto trata de temas ambientais acaba excluindo a gestão participativa das comunidades em seus próprios recursos naturais, sendo primordial a construção de bases jurídicas alicerçadas nos bens comuns e nos direitos das coletividades,

possibilitando a apropriação e gestão coletivas434.

Com base nesse panorama trazido por Leff, é possível a construção de um saber jurídico ambiental situado no momento pré- compreensivo da interpretação das normas jurídicas e caracterizado pelo ingresso da complexidade e da “outridade” na construção do conhecimento jurídico, de forma a desvelar o pensamento jurídico unidimensional e totalitário.

Conforme visto, a legislação, não só brasileira, como internacional, passa por um crescente processo de esverdeamento, em que questões ambientais ingressam no campo jurídico. Todavia, isso não é de forma alguma suficiente para superar a crise jurídica no campo ambiental, pois a ecologização do direito passa a lidar com os problemas ambientais com a mesma lógica instrumental positivista que gerou toda a crise do sistema jurídico.

Em outros termos, o ingresso da questão ambiental nas legislações não pode ser compreendido valendo-se da racionalidade dogmática que entende o direito em um viés unidimensional e planificador sob pena de potencializar a crise jurídica. Daí a imprescindível necessidade de emergência de um saber jurídico ambiental orientado pela complexidade, que se apresente como um conhecimento criativo e aberto a pluralidade de possibilidades.

Tendo o direito positivista excluído do campo jurídico uma série de conhecimentos tradicionais e visões da questão ambiental, um saber jurídico ambiental deve estar aberto à pluralidade de ideias, desocultando saberes e verdades reprimidos pelo monismo jurídico, configurando uma resistência à supressão das identidades tradicionais.

Também nesse sentido, Ayala defende uma maior participação nas decisões jurídicas, já que, a partir das relações de complexidade que se instauram, os padrões de decisão unilateral deixam de ter privilégio, valorizando-se padrões de participação. Assim “todos (sujeitos sociais)

434LEFF, Enrique. Ecología y capital: racionalidad ambiental, democracia participativa y

são necessários para a formação das condições de decisão, porque trarão ao processo, informações de conteúdo político, econômico, social e mesmo pessoal, que serão decisivos para influir no resultado pretendido”435.

Como forma de compreensão da crise ecológica, torna-se fundamental um novo panorama de legitimação do direito ambiental nas sociedades complexas. Não sendo mais o modelo cientificista suficiente para oferecer respostas adequadas aos riscos que se apresentam, a transdisciplinariedade emerge como um vetor de legitimação desse novo Direito. Apenas através de uma interação comunicativa entre diversas instâncias (como ética, política e ciência) é que se torna possível o

oferecimento de soluções práticas que sejam eficazes436.

Em Leff, o saber ambiental é um saber sobre todo o campo que foi externalizado pela racionalidade da modernidade, referindo-se a saberes marginalizados e subjugados pela centralidade do logos científico, como a superexploração da natureza, a degradação ambiental, a pobreza relacionada à carência de recursos naturais e a distribuição

desigual de custos e benefícios ecológicos437.

É por isso que um saber jurídico ambiental deve partir da pré- compreensão dessa marginalização socioambiental para construir um conhecimento alicerçado na complexidade e na alteridade, em um diálogo aberto à diferença. Assim, muito além de uma mera ecologização do direito, trata-se de uma problematização do conhecimento jurídico a partir de uma problemática social que o questiona e ultrapassa. Trata-se, de um processo estratégico formado por relações de poder e justamente por isso dotado de um potencial transformador das relações entre as formações sociais e seu entorno, sintetizando teoria e práxis438.

Sendo este um saber que vai se constituindo em uma relação constante com o entorno, incorporando toda a pluralidade axiológica e cultural do conhecimento, torna-se afim da incerteza, do inédito, da abertura a outros futuros possíveis. Daí a necessidade de superação da construção do direito como pressuposto para a segurança jurídica, eis

435AYALA, Patryck de Araújo. Direito e incerteza: a proteção jurídica das futuras gerações no

estado de direito ambiental. 2002. 371 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito, Florianópolis, 2002. p. 334.

436

Ibdem. p. 28, 30.

437LEFF, Enrique. Epistemologia ambiental. São Paulo: Cortez, 2001. p. 160. 438 LEFF, Enrique. Epistemologia ambiental. São Paulo: Cortez, 2001. p. 163-4.

que o saber jurídico ambiental é um conhecimento em constante construção, um verdadeiro processo inacabado de transformação social.

Ainda, perante quadros de incerteza e insegurança, nos quais multiplicam-se riscos de todas as ordens, torna-se considerável a deficiência cognitiva da ciência perante os problemas ecológicos. Como consequência, exige-se que outros dados também sejam levados em consideração em decisões, como dados éticos e ecológicos. Não se trata de uma questão de escolha, mas sim de uma proposta conciliatória que se faça por meio de um “equilíbrio axiológico entre os diversos aspectos particulares do sistema”439.

Por fim, é primordial a vinculação entre a teorização de um saber jurídico ambiental e a construção de uma utopia ambiental, pois não se pretende apenas “ambientalizar” o conhecimento jurídico, mas sim orientar a construção de uma nova realidade social por meio de “novas formas de posicionamento dos sujeitos da história ante o conhecimento”. Assim, almeja-se instaurar novas solidariedades e

sentidos, abrindo-se para a produção de novos sentidos civilizatórios440.

Em síntese, tendo a hermenêutica filosófica demonstrado a contribuição dos pré-conceitos para a compreensão, no campo do direito ambiental esses pré-conceitos relacionam-se tanto ao modo como se interpreta (senso comum jurídico) como ao que se interpreta (conteúdo do direito ambiental). Para superação de um modelo unidimensional e dogmático de direito, produtor de toda a crise jurídica, torna-se fundamental a construção de um saber jurídico ambiental, entendido como aquele que vincula teoria e práxis, propondo novas formas de conhecimento baseadas na complexidade e ainda proporcionando espaço para transformação social.