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2.2 O ESVERDEAMENTO NORMATIVO

2.2.1 A positivação do direito ambiental no Brasil

2.2.1.2 O retrocesso ambiental

Conforme visto até agora, o direito ambiental brasileiro é digno de elogios, dada sua amplitude, complexidade e profundidade. Trata-se de uma das legislações mais avançadas na temática, assegurando tanto direitos como deveres, preocupada tanto com o bem estar humano das presentes e futuras gerações como com o valor intrínseco atribuído à natureza.

No entanto, nos últimos anos o direito ambiental brasileiro tem acompanhado fortes tendências retrocessivas, por meio da prolação de leis que, muito embora denominadas ambientais, fazem prevalecer interesses econômicos.

Para Ayala, é possível afirmar que o retrocesso ocorre sempre que a nova norma enseje um grau de efetividade de um direito menor que aquele já alcançado anteriormente.Ainda, com base nos comentários gerais n. 3 do Comitê da ONU sobre Direitos Econômicos, sociais e civis, estabelece Ayala quatro formas de identificar normas

retrocessivas: políticas incompatíveis; revogação de normas

indispensáveis para a proteção do mínimo; redução de níveis já

atingidos; e redução deliberada de gastos85.

O maior retrocesso no direito ambiental brasileiro é, sem dúvida alguma, referente à proteção florestal. O antigo Código Florestal, Lei n. 4771/65 estabelecia um sistema protetivo formado por reservas legais e áreas de preservação permanente que assegurava tanto a preservação de um mínimo de vegetação por propriedades como a proteção de locais frágeis (beira de cursos d´água, topo de morro e encostas). Tais proteções sempre foram vistas pelos produtores agrícolas como antieconômicas, supostamente impedindo o progresso da agropecuária no Brasil. Em um viés individualista e antropocêntrico, a propriedade rural deveria ter sua utilização econômica maximizada, mesmo que em detrimento de sua função socioambiental. Trata-se, na realidade, de um pensamento que externaliza os custos (ambientais) e internaliza os benefícios (o aumento no lucro). Figueiredo lembra ainda que tal pensamento, baseado no tripé latifúndio-escravidão-desmatamento, persiste desde nossos primóridos econômicos, sendo a razão das

85 AYALA, Patryck. Ensaio sobre o estado de retrocesso ambiental: é possível não retroceder

mazelas e injustiças no Brasil. Ainda, seria um modelo baseado no

exercício abusivo do direito de propriedade86.

Assim, é aprovado em 2012 o Novo Código Florestal (Lei n.

12.651)87, diminuindo as áreas protegidas, estabelecendo formas de

compensação, excluindo a obrigação de alguns setores (como p.ex. abastecimento de água), possibilitando o reflorestamento com plantas exóticas e ainda concedendo anistia a desmatadores. O Código é parcialmente contestado no Supremo Tribunal Federal por meio das ações de inconstitucionalidade (ADIs) 4901, 4902 e 4903 interpostas em 2012 pelo Ministério Público Federal.

Ainda no que tange à proteção florestal, outro grande exemplo de legislação retrocessiva é o Código Ambiental Catarinense (Lei n. 14.675/09), objeto da ADI 4252-1 perante o STF. A legislação catarinense diminui a níveis ínfimos a proteção em áreas consideradas como especialmente protegidas pelo Código Florestal (ainda que se tome por base o Novo Código Florestal), permitindo a realização de atividades proibidas pelas normas federais. Também possibilita a manutenção do desmatamento em “áreas consolidadas”.

Outro forte retrocesso na legislação ambiental foi a Lei Complementar 140/10, que, a título de regulamentar as competências em matéria ambiental, reduziu a atuação dos entes federativos,

vinculando competência fiscalizatória com competência para

licenciamento e ainda retirando a competência subsidiária do Ibama. Ainda que se reconheça o mérito da referida lei de sistematizar a temática, a restrição aos poderes fiscalizatórios dos entes federados diminui a proteção ambiental.

Relacionado à temática ambiental, é possível elencar também a

Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 215 88 , relativa à

demarcação de terras indígenas. São os povos indígenas importantes protetores naturais do meio ambiente, dado seu modo de vida (desde a

86 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin. Prefácio. In SILVA, Solange Teles; CUREAU,

Sandra; LEUZINGER, Marcia Diegues (coord). Código florestal: desafios e perspectivas. Sao Paulo: Fiuza, 2010.

87 BRASIL. Lei nº 12651, de 25 de janeiro de 20112. Dispõe sobre a proteção da vegetação

nativa; altera as Leis nos 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis nos 4.771, de 15 de setembro de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória no 2.166-67, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências.Diário oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasilia, DF. 25 maio 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-

2014/2012/lei/l12651.htm> Acesso em: 28 jan. 2014.

88

BRASIL. PEC nº 215, de 2000. Projeto de Emenda Constitucional. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14562>. Acesso em: 28 jan. 2014.

subsistência até a sua espiritualidade) estritamente vinculado à natureza. A PEC propõe que a demarcação passe a ser feita pelo Legislativo, e não mais pelo Executivo, por meio da Fundação Nacional do Índio (Funai), submetendo-a a interesses econômicos de grupos como a bancada ruralista. Trata-se de um retrocesso, pois a demarcação de terras deixará de ser um procedimento técnico administrativo realizado com base em estudos antropológicos e sociológicos e passará a ser uma decisão política, a ser tomada conforme a maioria parlamentar entenda conveniente. Cabe ressaltar ainda que direitos fundamentais, como o são a proteção da identidade indígena e o direito ao meio ambiente, são direitos contramajoritários, que não devem jamais ser submetidos à vontade política da maioria.

Outro Projeto de Lei em andamento que propõe profundos retrocessos é o PL 5807/2013, que altera o Código de Mineração, abrandando as limitações ambientais para a realização da atividade mineradora. Dentre muitos pontos controversos, a novel legislação deixa de tratar acerca da responsabilização de mineradoras pela poluição em cursos d´água e sobre a consulta a populações afetadas. O relator do projeto de lei chegou a afirmar que questões socioambientais deveriam ser deixadas para a legislação específica, já que se trata de um “projeto técnico”89

.

Ayala lembra ainda a Lei de Biossegurança, a qual propõe uma “estrutura de decisão que não assegura a aquisição do conhecimento

científico disponível para viabilizar boas escolhas”90

.Para Ayala, o sistema brasileiro carece de uma avaliação sobre os próprios processos tecnológicos, priorizando uma análise sobre o produto. Ademais, a estrutura de decisão proposta privilegia a produção unilateral de conhecimento científico e a valorização de posicionamentos majoritários. Por fim, referida lei deixa de aplicar o princípio da precaução91.

Todos os retrocessos mencionados acima são referentes a medidas legislativas. No entanto, esse mesmo retrocesso é patente em toda a estrutura de governo atual, através de medidas executivas,

89 ISA. Relator do novo marco da mineração não pretende atender reivindicações dos

movimentos sociais. 07 ago. 2013. Disponível em:<http://www.socioambiental.org/pt-

br/noticias-socioambientais/relator-sinaliza-que-nao-pretende-atender-

reivindica%C3%A7oes-dos-movimentos-sociais-em-novo-marco-da-mineracao>. Acesso em: 05 out. 2013.

90

Ibidem. p. 292.

91 AYALA, Patryck de Araújo. Devido processo ambiental e o direito fundamental ao meio

principalmente através do programa governamental Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Como o próprio nome deixa claro, o Plano almeja simplesmente crescimento econômico, estando desvinculado de preocupações socioambientais. No campo energético, inclui propostas de construção de uma série de hidrelétricas na Amazônia Legal, promovendo desmatamento e insegurança hídrica. Dentre elas, ressalta- se a polêmica construção de Belo Monte, violadora de direitos ambientais, indígenas e sociais, a qual foi inclusive objeto de denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Outros exemplos de medidas retrocessivas no campo administrativo são: diminuição de dotação orçamentária de gastos em órgãos ambientais; enfraquecimento do Instituto Chico Mendes de

Proteção a Biodiversidade92; e a resolução 457/2013 do Conama, que

diminui a proteção contra o tráfico de animais silvestres, através da concessão de Termos de Depósito e de Guarda de Animais Silvestres (TDAS E TGAS).

Quanto ao Poder Judiciário, cabe afirmar que as decisões judiciais em matéria ambiental têm sido extremamente contraditórias entre diversos tribunais e até entre seções de um mesmo tribunal, dificultando a afirmação da existência de um retrocesso. É o caso, por exemplo, da queima da palha da cana de açúcar, atividade extremamente lesiva ao meio ambiente, permitida pela 1ª. Seção do Superior Tribunal

de Justiça (STJ) e vedada pela 2ª. seção do mesmo Tribunal93. O mesmo

ocorre com o Supremo Tribunal Federal (STF): ainda que reconheça a

fundamentalidade do direito ao meio ambiente94, manteve a construção

de Belo Monte95 e permitiu a mineração em áreas de preservação

permanente96.

A legislação ambiental inaugurou um novo paradigma em todo o Direito, modificando profundamente as bases do sistema jurídico. Assim, de um viés individualista e antropocêntrico, passa-se a normas

92 AYALA, Patryck. Ensaio sobre o estado de retrocesso ambiental: é possível não retroceder

na ordem jurídica brasileira? In: CHACON, Mario Peña. op. cit.. p. 292.

93 NAVARRO, Gabriela Cristina Braga. A efetivação dos princípios ambientais no

Judiciário: análise jurisprudencial da questão da queima da palha da cana de açúcar. 2011.

150 f. Monografia (Graduação) - Curso de Direito, Unesp, Franca, 2011.

94 BRASIL. STF, Supremo Tribunal Federal. ADI 3450, j. 25.jul.2005, Rel. Min. Nelson Jobin. 95 BRASIL. STF, Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Rec 14.404/DF, j.

25.ago.2012, Rel. Min. Ayres Brito. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/rcl14404.pdf>. Acesso em: 29 jul. 2013.

96 AYALA, Patryck. Ensaio sobre o estado de retrocesso ambiental: é possível não retroceder

vinculadas à solidariedade, reconhecendo-se a imprescindibilidade da proteção ambiental. Essa profunda modificação parece não ter sido inteiramente absorvida pelo Poder Judiciário, que continua aplicando as regras ambientais com base em uma visão extremamente inadequada.

Os juízes e tribunais brasileiros, com poucas exceções, não assimilaram ainda o novo paradigma ambiental. Daí as regras positivas de direito ambiental serem aplicadas de forma confusa e desordenada, frequentemente violando os princípios de direito ambiental. A questão está intimamente relacionada a uma posição hermenêutica do julgador, que precisa passar por uma sensibilização ecológica para lidar com o direito ambiental.

No próximo capítulo, será realizada uma análise sobre a jurisprudência na área ambiental do STJ. Por ora, resta dizer que a atuação do Judiciário na aplicação do direito ambiental tem ocorrido de forma extremamente desordenada, sendo raros os casos de entendimento pacífico. Ademais, mesmo após mais de 30 anos da LPNMA, prevalece o paradigma economicista e individualista nas decisões judiciais. Sequer é possível falar em um retrocesso judiciário na área ambiental, pois nunca houve um verdadeiro progresso. Com poucas exceções de decisões ambientais elogiáveis, o Judiciário ainda se mantem na fase econômica do direito ambiental.