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A presença afro-ameríndia na territorialidade de Goiabeiras Velha

quando o tempo não era nada apenas lua na varanda eu sonhei uma alvorada

feita de riso e ciranda essa moça tão bonita dançando o seu samba habitava o meu sonhar vinha lá de Angola janga vinha me acalentar com seu véu e sua guirlanda.

“Poemas para uma mulher” (Açúcar Mascavo)

Herança das comunidades indígenas que “habitaram a baixada de Goiabeiras e Carapina até as proximidades da Serra” (DERENZI, 199?, p. 53), Goiabeiras Velha se afirma como uma territorialidade de mulheres paneleiras. A tradição é um legado dos temiminós e tupiniquins, muito embora os goitacazes115 também possuíssem o domínio do barro.

A memória afro-ameríndia se legitima por meio da força vital, da energia concentrada no território, no tempo e no conhecimento obtido. É a territorialidade que possibilita a recriação do mundo e a elaboração do continuum civilizatório.

No Espírito Santo, a cerâmica de Goiabeiras se apresenta como uma tradição da cultura indígena. Estudos em sítios arqueológicos datam a utilização da técnica da cerâmica em pelo menos 2.500 anos e as classificam em três tradições distintas o que possibilita determinar e definir a cronologia dessas culturas a partir dos modelos e formas, como na descrição abaixo, apresentada no livro As paneleiras de Goiabeiras.

a) A Tradição Uma tem as áreas geográficas desde Vitória até o sul do estado e a data mais antiga de seus vestígios chega aos 2.500 anos AP (antes do presente). Devido à dispersão geográfica e às características da cerâmica, as populações pré-históricas podem ser filiadas à família linguística Puri- Coroado.

115 Primeiros habitantes da região falavam o Tupi. Desde os tempos mais remotos, antes da chegada dos

portugueses ao Brasil, a área norte da Ilha de Guananira era habitada pelos índios Temiminó. Pesquisas realizadas por Neida Lúcia Moraes na obra ‘Atlas Escolar do Espírito Santo’, publicada pela Secretaria de Estado da Educação e Cultura do Espírito Santo (Sedu), em 1986, informa que os índios que habitavam o Espírito Santo “na época do seu povoamento” eram os de língua Tupi: Goitacases, Temiminós, Tupiniquins e outros. Sobre os Temiminós informa ainda que esse povo habitava a baixada de Goiabeiras, Carapina, até as proximidades de Vitória e os Goitacases, a região do Itapemirim, no sul do estado.

144 b) A Tradição Tupi-guarani tem os sítios arqueológicos localizados em todo o litoral do Estado e nas margens dos principais rios do estado. No litoral Sul, município de Piúma, foi encontrado o sítio mais antigo dessa tradição: tem mais de 1.200 anos. É uma cerâmica bem descrita etnograficamente, sendo atribuída aos índios falantes da língua tupi-guarani, cujos representantes no Espírito Santo são os índios Temiminó, Tupinambá e Tupinikim.

c) A Tradição Aratu, cujos dados arqueológicos são encontrados entre Vitória e o norte do estado e no interior ao longo de todos os rios daquela região. Uma datação feita em um sítio arqueológico encontrado no município de Linhares revela que há 1.300 anos AP, essa população já vivia em grandes aldeias. Essa cerâmica é a mesma produzida pelos índios Pataxó, Malali, Cumanacho, Machacali, dos quais os Malali viviam no norte do estado do Espírito Santo (PEROTA, 1997, p. 12-13).

A chegada dos portugueses e a crescente presença de africanos que foram trazidos para o estado em pouco alteraram as técnicas já utilizadas na feitura das panelas de barro, conforme relatam Ilza, Lucila e Jenette. No trabalho, as paneleiras (alguns raros homens iniciaram a atividade recentemente) usam as mãos, água (para amolecer o barro), cuia (pedaço de coco cuité) para “puxar” argila, isto é, começar a fazer a peça, pedra pequena para alisar a matéria-prima, arco de barril para raspá-la e talha (tábua fina para apoio), que faz as vezes do torno.

As peças são secadas à sombra e queimadas em fogueiras. Ainda quentes, são molhadas com uma vassourinha de muxinga (espécie de mato), embebidas em tintura de tanino, extraído da casca de mangue vermelho (Rhizophora mangle), nos manguezais de Vitória. A tinta é “batida” na panela para “apertar” o barro, impermeabilizando-o e evitando que as panelas quebrem ou estourem quando usadas, e dando-lhes a cor de ébano característica. Antes do primeiro uso, as panelas têm de receber uma “segunda queima”, sendo untadas com óleo de oliva e levadas ao fogo. Só então estão prontas para cozinhar o alimento.

Entretanto, é imprescindível observar as ligações das paneleiras com outras manifestações da cultura afro-capixaba, como o congo e o jongo, entre outras, pois são esses elementos que se unem à confecção das panelas de barro e imprimem na territorialidade de Goiabeira a presença afro-ameríndia.

O Congo e o jongo são folguedos de origem africana que se impuseram como tradição popular, inclusive com as populações indígenas. Essa influência está presente em quase todo o estado e o exemplo mais significativo está entre os remanescentes dos índios tupinikins de Caieiras

145 Velha, que têm no congo o seu principal folguedo, ligado algumas vezes a ritual religiosos (PEROTA, 1997, p. 18).

É a presença afro-ameríndia na região norte da ilha de Vitória que vai consolidar Goiabeiras Velha como local tradicional da produção de panelas de barro. Além de estar associada a outras tradições da cultura, “a panela de barro é um artesanato confeccionado a partir de diversas técnicas da cerâmica” (PEROTA, 1997, p. 12).

Para civilizações milenares como a ameríndia e a africana, o espaço e o tempo só podem ser compreendidos e vividos em dimensão cósmica aberta e plural, onde relações simbólicas múltiplas e emocionais permitem riquíssimas percepções que envolvem a experiência com o sagrado (LUZ, 1999, p. 46).

Para as paneleiras congueiras, é impossível pensar um elemento dissociado do outro, pois é exatamente o seu encontro que possibilita a criação da identidade de Goiabeiras Velha, como pode ser verificado numa das peças da Banda de Congo Panela de Barro de Goiabeiras:

Congo de Goiabeiras Congo de devoção Congo da União, ê, a Valha-me São Benedito E a Virgem da Conceição Samba criolo

Deixa samba Panela de barro Acabou de Chegar