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Bem mais que elemento físico da natureza, o barro em Goiabeiras Velha representa a vida, é de onde vem todo o sustento das famílias. Muito mais que matéria-prima para confecção das panelas, o barro representa conhecimentos, valores e ancestralidade. É do barro que vem a importância da comunidade. Nesse sentido, as relações sociais são originadas do

continuum ritual, que mantém vivas as tradições culturais e históricas da comunidade.

A partir das obras de Deoscóredes Maximiliano dos Santos (Mestre Didi), especialmente “Contos Negros da Bahia” (1961), “História de Um Terreiro Nagô” (1963) e “Contos de Nagô” (1994), transcrevo uma história, da mitologia africana, que também dá ao barro esse mesmo sentido de vida e poder:

No princípio dos tempos existiam dois mundos: o Orum, o espaço sagrado dos orisás, e o Aiyê, o espaço dos seres vivos. Os orixás são os santos do candomblé, representantes das forças da natureza, que têm ligação direta com os elementos água, fogo, terra e ar, e tudo o que está contido neles. No Aiyê, então, só existia água. Foi quando Olodumaré, Deus supremo dos iorubás, resolveu recriar o espaço para a humanidade. Para essa tarefa, incumbiu seu filho primogênito, Orisanilá (o nome mais sagrado de Osalá). Entregou-lhe um saco (apo iuá) contendo ingredientes especiais – a terra inicial, a galinha de cinco dedos, uma pomba e um camaleão. A terra deveria ser lançada sobre a imensidão das águas. A galinha de cinco dedos deveria ir ciscando a terra para alargá-la o mais que pudesse. A pomba, ao voar, orientaria a extensão da terra expandida. E o camaleão, atento a tudo, observaria a execução da tarefa atribuída a Orisanilá, para reportar os fatos a Olodumaré. Assim, com seu cajado (opasorô) e o saco da criação (apo iuá) Orisanilá iniciou sua caminhada do Orum para o Aiyê, o planeta Terra habitado pelos seres vivos. Entretanto, no meio do caminho, sentiu-se cansado e com sede. Parou para descansar e bebeu um pouco de emu (vinho da palmeira do dendezeiro). A interrupção de sua jornada, por outro lado, era a oportunidade de que seu irmão caçula, Odudua, precisava para competir perante os olhos de seu pai, Olodumaré, nessa tarefa de grande importância. Então, enquanto Orisanilá dormia, Odudua pediu a seu pai o consentimento para ele cumprir tal tarefa, o que foi permitido. Olodumaré, por sua vez, lhe disse com autoridade: “Assuma a missão de criar a terra dos seres vivos”, e isso foi feito prontamente. Depois de a galinha ciscar a terra, a pomba

164 orientar a sua expansão e o camaleão verificar se a tarefa foi cumprida, no terceiro dia Odudua criou a terra firme, que passou a chamar-se Ilê Ifé (que no idioma iorubá significa “terra que foi sendo ciscada”). Criou, ainda, do barro e da água, bonecos inanimados de todas as formas e de todas as cores esculpidas por suas mãos. Orisanilá mostrou-se, perante o pai, arrependido do seu ato de irresponsabilidade. E para que não se sentisse tão humilhado, Olodumaré resolveu, num supremo ato de inspiração, dar a Orisanilá outra tarefa de tanta importância quanto a primeira, e ainda mais nobre: a de conceber a vida nos bonecos inanimados. E assim ele soprou nas narinas do boneco de barro, criando os seres humanos. Esse sopro da vida é chamado pelos iorubás de emi. Assim, Odudua é o criador de Ilê Ifé, primeira cidade do mundo para os iorubás. E Orisanilá é o concessor da vida, e aquele que dela dispõe, por ter criado os seres humanos.

Nessa história, o barro é entendido como o próprio corpo, que, segundo Muniz Sodré (1997), é um mito cósmico que se origina da lama enquanto valores e matéria. Foi edificado por um deus criador (Olorum), que possibilitou a vida (emi) materializada na respiração. E dentro desse processo de criação, o barro estabelece o ethos, cria perspectiva de valores e linguagem entre a comunidade, como expressão lúdico-estética, e estabelece “a referência à compreensão da arkhé que funda, estrutura, revitaliza, atualiza e expande a energia mítico- sagrada da comunalidade africano-brasileira” (LUZ, 2000, p. 47).

O ethos é representado pela força da comunidade congueira, é a aproximação dos laços, onde se estabelece a comunalidade e o sentir. “Não se trata de qualquer ‘sentir’, mas de uma experiência radical, de uma comunicação original com o mundo, que se poderia chamar de ‘cósmica’, isto é, de um envolvimento emocional dado por uma totalização sagrada de coisas e seres” (SODRÉ, 2002, p. 164).

Ao unirmos todos os aspectos e elementos que envolvem e simbolizam as mulheres que lideram os Tambores de Congo e modelam suas panelas, encontramos o Eidos, expressão que sintetiza as formas de elaboração e concretização do Tamborizar, modo de sentir e introjetar valores e linguagens, conhecimento vivido e concebido, emoção e afetividade (LUZ, 2004). Ao assumir a liderança dos tambores de congo, é possível construir e proporcionar experiências lúdicas e conscientes nas quais conhecimentos e comunicação compõem a história e cultura coletiva do povo negro nas Américas. “O conhecimento simbólico não se transmite por enunciados axiomáticos, mas pelas circunstâncias de lugar e tempo” (SODRÉ, 2002, p. 175).

A linguagem do Eidos que propomos para este trabalho é a linguagem da afetividade e da solidariedade, em que as experiências de vida das congueiras e paneleiras de Goiabeiras Velha podem ser traduzidas em pluralidade educacional, em que a consciência, os sentimentos, a poesia e a emoção possam criar e recriar uma nova linguagem acadêmica de

165 forma alegre na qual o aprender e o ensinar estejam baseados nos valores e princípios étnicos e raciais das panelas de barro e do congo de Goiabeiras.

166 VI - MULHERES NEGRAS E CINEMA - UMA HISTÓRIA DE AMOR POSSÍVEL

O ato de fundar é uma ‘teorização política’ precisamente porque os princípios inferidos a partir do trabalho dos fundadores legitimam dimensões básicas da atividade intelectual. Nessa batalha retrospectiva, para que algumas ideias possam ‘vencer’ obviamente, outras precisam ser derrotadas. Nesse contexto, a ação política significa uma luta mais ou menos constante entre forças diferentes em relação à constituição legítima de uma arena intelectual. A ‘política’ da herança intelectual se torna obscura no mesmo grau em que se registram, com sucesso, reivindicações monopolizadoras: as pressuposições dominantes avalizam, então, ideias e procedimentos.

Anthony Giddens