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[...] As panelas de barro não são (só) Para serem contempladas, Mas para dar de comer [...]. Guaciara Waldeck A principal matéria-prima, o barro, é extraída de um barreiro, a jazida do Vale do Mulembá, localizada no Bairro Joana d’Arc. “Essa argila foi formada pela decomposição de rochas gnáissicas misturadas com feldspato, mica, argilitos, quartzitos e fragmentos de gnaisse e quartzo” (PEROTA, 1997, p. 22). A retirada do barro é uma atividade predominantemente masculina, mas também é executada por mulheres. Maria, por exemplo, é uma das paneleiras que extrai o seu próprio barro.

Na jazida no Vale do Mulembá, o tirador ou a tiradora experimenta o barro com os dedos para ver se está bom, então escava e retira o barro até aproximadamente um metro de profundidade, como relata Maria:

Não é senhora chegar e tirar o barro não, senhora tem que procurar o barro de terra. [...]. Cavando... É... eu meto o enxadão assim, por exemplo, eu chego no barranco, oh... tiro um pouquinho assim, aí eu faço isso [gesto com as mãos de como se experimenta do barro], oh... Se ele não tiver pedra, se ele não for muito fino, for cheinho... e chiar... ele tá bom, ele é bom. Agora se a senhora aperta ele na mão assim, ele tiver areia, e a senhora aperta ele assim e ele abrir... ele não presta.[...]. Porque na hora que vai fazer a panela, ela abre... E tem essa... pode queimar... se ela escapar, pode queimar, mas ela vaza. Ela vaza porque ela não tem a... a liga pra segurar.

A terra, como símbolo sagrado, também pode ser representada pela arkhé “que caracteriza seus princípios inaugurais, originais, a ancestralidade, que possibilita a constituição e a recriação de todas as experiências de linguagem e valores capazes de expressar o estar no mundo e a pulsão de sociabilidade” (LUZ, 1999, p. 46).

157 É sabido que no universo civilizatório afro-ameríndio toda existência é pensada a partir de dois planos: àiyê (o mundo visível) e òrum (o mundo invisível). E é exatamente a interação dos mistérios desses dois mundos que autoriza a extração do barro, uma vez que, afirma a professora Narcimária Luz, “Os contos míticos representam, também, a comunicação entre a comunalidade africano-brasileira e a sociedade oficial” (1998, p. 37).

Ilustração 23 – A canoa de meu pai tinha meu nome...

A canoa de meu pai tinha meu nome, então desde pequenininha eu ia acompanhando, chegava no barreiro, aprendia a pedir licença pra natureza, e depois que minha mãe amassava o barro eu ajudava a colocar as bolas na canoa. [...]. às vezes o meu pai ia, mas quem ia mais era a velha Lúcia. (Dona Jenette)

As tarefas pesadas eram todas executadas pelas mulheres paneleiras. Porém, atualmente, são os homens que recolhem e amassam o barro com os pés, pisando até torná-lo uniforme, consistente e com a plasticidade adequada. Outro ponto que se observa é que, se antes todo o transporte do barro era feito em canoa, hoje as bolas, que pesam em média 15 quilos cada, são transportadas em caminhão. Um bom tirador de barro como é o caso de Ronaldo Corrêa, extrai de 140 a 150 bolas por dia. Trabalho manual, a confecção das panelas garantiu e garante a sobrevivência econômica e as tradições das famílias de Goiabeiras.

A produção artesanal da cerâmica popular de Goiabeiras foi contínua porque foi utilitária. Algumas alterações de caráter funcional, como as alças nas proximidades dos lábios das bordas, detalhe raramente encontrado na cerâmica indígena, deve ter sido adaptado para uso das panelas em fogões e, posteriormente, para uso em mesa (PEROTA, 1997, p. 13).

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Ilustração 24 – Ronaldo no Mulembá

Ilustração 25 – Ronaldo amassando o barro

Antes de ser usado, o barro passa por um processo que as paneleiras chamam de “escolha” ou “limpa”. Na escolha faz-se toda a retirada das impurezas; após esse demorado e minucioso processo, envolve-se o barro em plástico para manter a umidade, deixa-o armazenado, descansando, por uns tempos antes de ser usado. A preservação das técnicas indígenas no cultivo do barro tem garantido a sobrevivência das paneleiras de Goiabeiras e toda a sua produção por diferentes gerações de avós, mães e tias.

159 Pegar o outro barro, que às vezes não dá pra ir tudo de uma vez, né? Aí a gente põe pra dentro, numa lona e cobre ele pra ele não endurecer. Que ele endurece... Aí se ele endurecer a gente tem que jogar água nele... pra ele amolecer e tem mais... pra fazer essa panela aqui [ela faz uma panelinha para me mostrar]... pra fazer essa panela aqui... esse barro, ele tem que ser pisado, ali do jeito que tá aquelas bola ali oh... ele tem que ser pisado, ele, depois, ele tem que passar por um processo... na mão, tem que escorrer ele assim na mão... como se fosse uma massa de biscoito. Eu vou mostrar pra senhora como a gente escorre ele... tem que tirar tudo quanto é pedrinha que tem, e mesmo assim, quando a gente vai fazer, aonde a faca passar e que tiver uma pedrinha chiando, a gente tem que tirar ela... porque se não quando a panela enche o galo, onde tiver aquela pedrinha... a panela abre. É um processo danado, aí depois que a gente faz ela, que ela enxuga... ela tem até a altura de enxugar... não pode deixar enxugar muito não... ela tem que ter a altura. Aí a gente emborca ela numa tábua... tira o excesso de barro, como eu já falei com a senhora, aí passo a faca nela pra tampar os espora... aí deixo enxugar. De novo. Quando ela tá mais ou menos na altura de alisar... Tem que alisar ela por dentro e por fora com a pedrinha de cachoeira, deixar secar. Aí a gente leva ela ao fogo. A gente faz uma fogueira no chão, que a gente chama de fogueira, faz uma esteira de lenha no chão, coloca uma tora de madeira grossa e aí a gente vai arrumando ela, e mesmo assim, toma muito prejuízo, né? Porque sempre escapole, quebra um pedaço... umas escapole em cima... aí a gente coloca ela, né? Uma atrás da outra bem arrumadinha, tenho até a foto lá... bem arrumadinha uma atrás da outra e põe fogo. De uma em uma hora tem panela queimada, aí a gente vai tirando com uma vara bem comprida, com ferro na ponta. E colocando... por exemplo, eu e mais ele [o marido] que queima, eu que tiro. Aí eu coloco pra ele, tiro... é uma vara bem comprida mesmo, uma vara que vai como daqui lá naquela coisa lá, oh.... Aí a gente tira, tem aquele ganho, a gente enfia ela assim debaixo... enfia o gancho debaixo dela assim, né? E põe pra pessoa com a tinta do mangue vermelho, tinta do mangue vermelho... que a gente tem que entrar no mangue... com água pelo pescoço. Se a maré tiver seca não entra porque é muita lama. Aí a maré tem que cheia. Aí a gente vai... Sobe... é uma ladeira que tem um raizão... tem que entrar lá pra dentro do mangue mesmo, não pode tirar das beiradas. E nem tirar mangue verde. Aí a gente sobe naquele raizão, com um saco de náilon, corta um ganchinho pequeno, engancha com o saco de náilon, aí a gente bate com... com toco. A gente leva um... a gente já tem um todo preparado para levar... Aí a gente bate assim, né? Aí aquela casca solta. Aí a gente tira, um pouco, coloca no saco, desce daquela arvore que não pode tirar muito... Desce daquela árvore, passa por outra árvore, tira outro pouquinho... (Maria)

A modelagem das panelas é manual, sem o uso do torno de oleiro, o que confere autenticidade às panelas feitas pelas paneleiras de Goiabeiras.

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Ilustração 27 – Modelagem da panela

A parede vai sendo levantada, com a forma desejada, usando-se a técnica de roletes ou diretamente, escavando a ‘bola’ de argila, ‘puxando a panela’, como dizem, através de movimentos com as mãos, tanto circulares como verticais, abaulando, arredondando, definindo o formato da peça com a ajuda de rudimentares ferramentas – pedras lisas, cascas de coco, coité (pedaço de cabaça), e objetos similares. Eu ponho uma tábua em cima dum banquinho, aí ponho aquela tábua, boto um monte de barro, barro fino e barro grosso, se usar só um fica abrindo, rachando. Assim, vou abrindo fundo na panela, abrindo, abrindo, depois eu faço a cuia, tem a pedra, a pedra de rio, tem a faca que é pra raspar ela. [...] Aí faz uma bola, da bola faz uma cuia e aí faz a panela. (Dona Jenette)

Ilustração 28– Secagem das panelas, antes da queima

Depois de modeladas, as panelas ficam em lugar ventilado e abrigado do sol até secarem completamente. Só então é efetuada a queima, não em forno, mas em fogueiras a céu aberto. O processo consiste em empilhar as panelas sobre grossas toras de madeiras, formando o que chamam de “cama”, para permitir, desse modo, a circulação do ar pela parte inferior. Nas laterais e em cima, são colocados pedaços menores de madeira.

161 Assim como acontecia com as tarefas pesadas de recolher e amassar o barro, coletar a lenha para produção das camas também era atividade realizada exclusivamente por mulheres e crianças.

As falas abaixo, das paneleiras e congueiras, permitem identificar a labuta diária dessas mulheres.

Não era essa moleza de comprar tudo não, a gente ia lá em Camburi pegar as lenhas. (Dona Terezinha)

Ah, ela falou né? A gente ia buscar lenha longe, minha filha, lenha longe, ia lá na aviação e lá era mato, né, lá era mato, trazia as lenhas, trazia na cabeça, arriava lá na estrada pra poder a gente chegar em casa, era assim. Muita lenha mesmo. (Dona Ilza)

E tudo a gente fazia com música, acho que é por isso que eu gosto de cantar tanto, não é Ilza? (dona Terezinha, indagando para a irmã), a gente pegava o barro, cantava; a gente ia pro mato pegar lenha, cantava; a gente ia fazer panelinha, cantava, a vida era só cantar, brincar e trabalhar. (Dona Terezinha)

O fogo é ateado numa das extremidades, na cabeceira da cama e, com a ajuda da ventilação natural, se propaga por todo o conjunto.

Dependendo do número de peças, o cozimento pode durar uma, duas, ou várias horas. A queima é totalmente ecológica, não há desmatamento nem corte de árvores. Para a produção e manutenção do fogo, usam-se restos de madeiras, bem como outros materiais descartados.

Ser paneleira e congueira é ser capixaba, é gerar e nutrir a memória e a identidade. Ser paneleira é ser mulher, é transitar entre o céu e a terra dando continuidade aos profundos mistérios do barro, esculpindo formas com mãos que produzem a cultura do estado do Espírito Santo. A herança da terra está sedimentada na força que cada uma dessas mulheres exerce como mãe, mulher e liderança dos tambores que regem o território e a territorialidade de Goiabeiras Velha. São as panelas de barro que constituem o principal elemento cultural na elaboração de pratos típicos da culinária capixaba: a moqueca capixaba, a moqueca de garoupa salgada com banana-da-terra e a torta capixaba.

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lustração 29 – Torta e moqueca capixaba

No Espírito Santo, esses alimentos só têm sentido se feitos e servidos em panela de barro de Goiabeiras. “Suporte indispensável para a preparação dos mais variados tipos de moqueca e da torta capixaba, pratos típicos da culinária do estado. A tradição regional dita que receitas que levem peixes, crustáceos ou moluscos serão mais saborosas quando feitas em panelas de barro” (PEROTA, 1997, p. 11).

Uma importante tradição regional é a feitura da torta capixaba na sexta-feira santa. Atualmente, esse prato faz parte da gastronomia do estado e pode ser encontrado em qualquer restaurante que sirva frutos do mar. Mas, em muitas famílias, prepará-lo e servi-lo faz parte de um ritual de comunhão e partilha com parentes e vizinhos.

Há nos preparativos, toda a riqueza dos sabores e do encontro. Desde o catar os mariscos para preparação da torta à confecção de panelas, que em muitas casas também eram preparadas para essas ocasiões especiais. O paladar capixaba é um sentido de enorme variedade.

A torta capixaba ou torta da Semana Santa é prato de forno, feito a partir de várias moquecas reunidas ou do refogado de mariscos variados – geralmente sururu, camarão, polvo, lula, siri, caranguejo, mais peixe fresco e bacalhau, cozidos e desfiados –, palmito e azeitonas. Essa torta não tem massa, é puro recheio. Na verdade, é uma grande fritada: os ovos batidos são jogados por cima da mistura de moquecas, enfeitados com rodelas de cebola e azeitonas no meio. E assim vai ao forno, para assar. Receita apropriada pela cozinha doméstica, é preparada especialmente na Semana Santa, quando é servida em reuniões de família e da vizinhança. O palmito tradicionalmente usado na receita era o da palmeira juçara, planta em extinção, nativa da Mata Atlântica, cujo corte está proibido pelos órgãos de proteção ambiental. Vem sendo gradativamente substituído pelo das espécies cultivadas: açaí, coco, pupunha, e pelo palmito indaiá, também nativo e de corte controlado. Nessa época do ano, é trazido em enorme quantidade para a cidade, transformando as áreas livres em grandes feiras do produto (IPHAN, 2006, p. 41).

163 Na culinária de Goiabeiras Velha, a tradição, sedimentada nas panelas de barro, compõe-se de uma riqueza de cultura e valores, da retirada do barro e todas as etapas que envolvem a moldagem, secagem e queima das panelas, ao alimento a ser preparado. Trata-se de momentos de comunhão e de educação, em que toda a comunidade tamboriza laços que são perpetuados, perpassando o sentir, ouvir, ver, pegar, cheirar e comer as riquezas da cultura capixaba.