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Nasci numa manhã de primavera, sob o signo de escorpião. Nos meus tempos de criança tive uma avó que era contadora de histórias; uma casa modesta com quintal, balanço, jardim com margaridas, rosas (flor preferida de meu pai), dálias e jasmins; e dias que, hoje, são parecidos com férias nas casas dos primos, um montão de amigos e amigas que juntos preparávamos cozinhadinhos, brincávamos de piques, queimada, bolinha de gude, jogávamos bola...

Venho de uma família relativamente grande, éramos seis filhos, homens e mulheres em igual número, no entanto, não me lembro de nenhum momento de minha infância em que em casa estivéssemos apenas meus pais, irmãos e irmãs. Por morarmos na ‘cidade’, a casa sempre tinha pelo menos um agregado, primos e primas que vinham do interior para estudar, parentes que vinham para resolver algum problema, ou simplesmente para nos visitar. Guardo na memória lembranças felizes de toda a minha infância, o que me dá a certeza de que, não obstante todas as dificuldades de uma família humilde como a minha, nasci e cresci cercada de afeto. Assim, no momento em que começo a pensar sobre minha trajetória acadêmica recorro a um poema de Conceição Evaristo:

Tenho a calma de uma velha mulher recolhendo seus restantes pedaços.

E com o cuspo grosso de sua saliva, uma mistura agridoce, a deusa artesã cola, recola, lima e nina o seu corpo mil partido. E se refaz inteira por entre a áspera intempérie dos dias14

29 Fui para a escola com sete anos, e quando criança este era meu maior desejo, estudar. Minha melhor amiga, a Fia (Marta), que hoje também é professora, entrara na escola um ano antes. À tarde, enquanto nossas mães cuidavam da labuta, ela passava tudo o que tinha aprendido na escola numa tábua de madeira que improvisávamos de quadro com cotocos de giz que ela certamente surrupiava da escola. O fato é que aos seis anos fui alfabetizada pela minha amiga um ano mais velha.

Em 1973, nos mudamos para a casa onde ainda hoje vive minha família, em Vila Velha, e foi nesse ano que entrei pela primeira vez num cinema. Meus tios e padrinhos de batismo moravam no Ibes15, e lá, na pracinha do bairro, sobressaía imponente o Cine Aterac, que viria ser fechado em 1o de setembro de 198316. Os filmes exibidos eram do tipo faroeste, karatê, kung-fu, desenhos animados e comédias; em geral, meu primo Mario era quem escolhia os filmes que víamos nas tardes de sábado e domingo. O dinheiro dos ingressos era produto das vendas à dona Genoveva, de papel, latas e vidros – ela e seu marido comercializavam sucatas na mesma rua em que moravam meus tios-padrinhos.

A turma era composta, além do Mario, pelas minhas primas Márcia e Regina, e seus vizinhos Marcio e sua irmã, cujo nome não recordo. Acho que nenhum de nós fazia ideia do que era ficção e pornochanchada, mas eram dessas categorias os filmes que desejávamos ver, que durante horas alimentavam nossa imaginação e fantasia dos filmes proibidos para menores de 18 anos. Hoje compreendo o quanto me fascinava aquela sala escura com carpete e cortinas vermelhas de veludo. Depois que meus tios se mudaram para Novo México, bairro onde já moravam meus pais, nunca mais fui ao Cine Aterac.

Meu irmão Hélio, mas principalmente alguma de suas namoradas – Tonha, Lica ou Marielza – frequentemente me levava aos cinemas do centro de Vitória – cines Glória, Juparanã, Jandaia, Odeon, São Luiz, Paz e Vitória –, para assistir aos filmes de censura livre: eram os musicais, os policiais, as aventuras, as comédias, os desenhos animados e os documentários. Mas eu continuava acalentando fantasias sobre os filmes “proibidos para menores de 18 anos”.

15 Conjunto residencial cujo nome deriva do Instituto do Bem Estar Social (IBES), instituição criada pelo

governo do estado com a finalidade de planejar e administrar empreendimentos voltados para o desenvolvimento social, é um bairro de Vila Velha, Espírito Santo.

16 Ver: MALVERDES, André. O fechamento das salas de cinema na cidade de Vitória e a política da Embrafilme para a produção do cinema nacional: projetando a própria crise! Dissertação de Mestrado.

Programa de Pós-Graduação em História do Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, 2007.

30 Em 1978, meu irmão ficou noivo de uma antiga vizinha, a Luquinha (Eloísia) e, tendo se casado no ano seguinte, deixaram de me levar ao cinema. No entanto, foi no finalzinho de 1979 que, junto com uma amiga de ginásio, a Madalena Miranda, triunfantemente entrei no Cine São Luiz para assistir a “Emmanuelle”17! São indescritíveis a emoção e o empoderamento ao adentrar a sala de cinema para maiores de 18 anos, quando se tem apenas 14 ou 15. O proibido valia mais do que qualquer história.

Em 1980, ingressei no Colégio Estadual do Espírito Santo, no curso técnico de Desenho de Arquitetura. Foi lá, a partir da reabertura do grêmio estudantil da escola, fechado desde 1964, que iniciei minhas atividades políticas, de militância nos movimentos contra a implantação de uma usina nuclear no estado, pelas ‘Diretas Já’. O ingresso no Partido dos Trabalhadores (PT) e a participação nos embates conduzidos pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) vieram como consequência, até eu me encontrar com o Movimento de Mulheres e o Movimento Negro. Tudo isso aconteceu como o poema ‘Um sol guerreiro’: e o céu coloriu-se de um tom avermelhado/como o crepúsculo/E eu cantei/ Cantei porque agora a chuva/brotará da terra18.

Lembro-me de que, no final das tardes de sábado, após intermináveis reuniões que nos faziam acreditar que estávamos transformando o mundo, eu aproveitava o fato de já estar no centro de Vitória – eu morava em Vila Velha – para ir ao cinema. Naquela época, os filmes chegavam à cidade muito tempo depois de ter estreado nos grandes centros, mas essa demora não diminuía o gosto do lançamento ou novidade. Vi, por exemplo, o musical “Hair”19 incontáveis vezes. Eu estudava à noite e durante as semanas em que o filme permaneceu em cartaz, no cine Paz, ‘matei’ muitas aulas. Hoje me dou conta de que foi em “Hair” que pela primeira vez vi um casal negro no cinema, Hud e sua noiva, interpretados por Dorsey Wright20 e Cheryl Barnes21 e, embora eu amasse cada um dos jovens apresentados no filme, era com ela que eu poderia me identificar.

Ainda hoje tenho o cinema como um espaço de refúgio e envolvimento, onde o que se apresenta na tela pode expressar eventos ficcionais construídos nos estúdios da memória

17 Emmanuelle (Just Jaeckin, 1974, 105 min., França). 18 Célia Aparecida Pereira (Celinha) – Um sol guerreiro. 19 Hair (Milos Forman, 123 min., 1979).

20 Wright nasceu em Nova York, em 1957, ganhou seu primeiro papel como ator em 1979, em “The Warriors”,

pelo qual ele é mais lembrado. Ele também coestrelou a versão cinematográfica de “Hair” no mesmo ano. Dorsey Wright fazia parte de um grupo de teatro sem fins lucrativos com sede em Long Island City, New York, chamado de Teatro para a esquecida.

31 (COUTINHO, 2003). É desses ‘estúdios’ que buscarei extrair das paneleiras congueiras narrativas de amor.