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Os direitos da personalidade, consoante analisados no capítulo anterior, têm como intuito reconhecer as características objetivas e subjetivas da pessoa, seja por meio de um ordenamento jurídico positivado, seja por meio dos denominados direitos naturais e oriundos da própria noção de ser humano. A garantia e a efetivação desses direitos incumbem aos cidadãos e ao Estado, por força do contrato social.

Entre as garantias defendidas no Brasil, a Constituição Federal de 1988 assegura no artigo 5º, LVII, a presunção de inocência. Trata-se de um princípio pelo qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, com fundamento no sistema acusatório, caracterizado, conforme Norberto Cláudio Pâncaro Avena (2015), pela divisão absoluta das funções de acusação, defesa e julgamento, com isonomia processual e direito à defesa e ao contraditório.

O surgimento dessa garantia, enquanto direito humano e fundamental, encontra-se na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, publicada em 1789. O artigo 9º assim

proclama: “Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela Lei.” (DECLARAÇÃO..., 1789a, p. 1).

Segundo Edilson Mougenot Bonfim (2011), a inspiração decorreu dos ideais iluministas firmados no século XVIII e consagrados com a edição do referido documento em virtude da Revolução Francesa. Trata-se, pois, da primeira vez que o supramencionado princípio foi alcançado em um instrumento estatal de cunho garantista e protecionista, individual e coletivamente.

Nesse aspecto histórico, Fernando da Costa Tourinho Filho (2009) reflete que o Século das Luzes representou um movimento de modificação no pensamento da seara penal. Se antes o acusado era considerado um objeto do processo e desprovido de garantias, o Iluminismo trouxe à discussão a necessidade de se romper com essa mentalidade e oferecer ao homem, embora denunciado, um mínimo de dignidade e, consequentemente, o estado de inocência.

Mais tarde, em 1948, a presunção de inocência também foi normatizada pela Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem. O artigo XXVI consolida: “Parte-se do princípio que todo acusado é inocente, até provar-se-lhe a culpabilidade.” (DECLARAÇÃO..., 1948b, p. 1). O documento foi redigido, dessa forma, conforme seu preâmbulo, em respeito aos direitos essenciais da pessoa humana.

Ademais, internacionalmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, também repercutiu o princípio da presunção de inocência. O artigo 11º.1 assim determina: “Toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa sejam asseguradas.” (DECLARAÇÃO..., 1948c, p. 1).

Verifica-se, assim, que os constituintes brasileiros, inspirados na retomada da democracia e na demanda social de se verem consolidados os direitos fundamentais, seguiram o norte universal de garantir a presunção de inocência. Desse modo, conforme José Nabuco Filho (2010), exige-se um processo com debate dialético entre as partes, com argumentos e provas, para ensejar ou não a condenação.

A presunção de inocência, nos ensinamentos de Moraes (2007), consiste em uma garantia processual voltada à tutela da liberdade individual. Dessa forma, o suspeito ou acusado de determinado delito deve ser visto socialmente como inocente, uma vez que a culpabilidade precisa ser comprovada judicialmente por meio de um processo penal democrático, transparente e justo.

Nesse sentido, com vista à condição de inocência de suspeito ou acusado de crime antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, encontra-se o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, oriundo do julgamento do Agravo Regimental no Agravo Regimental em Recurso Extraordinário com Agravo nº 655179:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. INTERPOSIÇÃO EM 8.10.2013. DIREITO ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO PARA O CARGO DE POLICIAL MILITAR. EXCLUSÃO DE CANDIDATO EM INVESTIGAÇÃO SOCIAL. ART. 5º, LVII, DA CF/88. VIOLAÇÃO. 1.

Nos termos da jurisprudência dominante nesta Corte, viola o princípio constitucional da presunção da inocência, previsto no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, a exclusão de candidato de concurso público que respondeu a inquérito ou ação penal sem trânsito em julgado de sentença condenatória. 2. Agravo regimental a que se nega provimento.

(BRASIL, 2016, grifo nosso).

Salienta-se, ainda, que o supracitado princípio está relacionado a outras garantias constitucionais, como o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal. Juntos, os elementos legais vão ao encontro da limitação do poder do Estado na persecução penal, uma vez que o Judiciário somente pode condenar alguém se percorrido todo o caminho processual democrático e com atenção à defesa do acusado.

Extrai-se do exposto que o acusado, apesar de responder a um processo-crime, segue na condição de sujeito de direitos. “A pessoa acusada, no sistema jurídico moderno, ao contrário de outros sistemas, possui direitos. Estes direitos transformam a pessoa acusada, de mero objeto do poder punitivo do Estado, em sujeito de direitos”, conforme as palavras de Bedin (2002, p. 52).

Como princípio máximo da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana também é a base da presunção de inocência. O indivíduo, à vista disso, deve ser encarado socialmente como igual aos demais, embora tenha comprovadamente cometido

determinada infração penal, mas, neste caso, com a responsabilidade de cumprir com a sanção imposta pelo Estado-juiz.

Nessa concepção, Adauto Suannes (1999), citado por Antonio Scarance Fernandes (2002, p. 232), ensina que:

Nada justifica que alguém, simplesmente pela hediondez do fato que se lhe imputa, deixe de merecer o tratamento que sua dignidade de pessoa humana exige. Nem mesmo sua condenação definitiva o excluirá do rol dos seres humanos, ainda que em termos práticos isso nem sempre se mostre assim. Qualquer distinção, portanto, que se pretenda fazer em razão da natureza do crime imputado a alguém inocente contraria o princípio da isonomia, pois a Constituição Federal não distingue entre mais-inocente e menos-inocente. O que deve contar não é o interessa da sociedade, que tem na Constituição Federal, que prioriza o ser humano, o devido tratamento, mas o respeito à dignidade do ser humano, qualquer seja o crime que lhe é imputado.

Ultrapassando a própria lógica da presunção de inocência, independentemente do crime praticado e do resultado do processo criminal, o ser humano é merecedor de direitos e garantias, pois, segundo Aury Celso Lima Lopes Júnior (1998, p. 1), o sistema democrático “[...] leva a uma democratização do processo penal, refletindo essa valorização do indivíduo no fortalecimento do sujeito passivo do processo penal.”

No entanto, a presunção de inocência não abrange apenas a seara processual. Além do cenário probatório, pelo qual o acusado será submetido durante a tramitação do processo e será o embasamento para a condenação ou absolvição, o princípio ora analisado veste-se, também, consoante Eugênio Pacelli Oliveira (2008), de um caráter de tratamento da sociedade perante o indivíduo.

Assim, do mesmo modo que o juízo deve tratar o acusado com fulcro no estado de inocência, os cidadãos devem agir sob o mesmo critério. André Nicollit (2010, p. 61) proclama que “embora recaiam sobre o imputado suspeitas de prática criminosa, no curso do processo deve ele ser tratado como inocente, não podendo ver-se diminuído social, moral nem fisicamente diante de outros cidadãos não sujeitos a um processo.”

O corpo social, em razão da gravidade do crime ocorrido, tende a culpabilizar o agente suspostamente autor do delito mesmo antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Os casos de repercussão nacional, como homicídio e estupro, costumam chocar

a opinião pública e gerar represálias significativas em afronta ao princípio da presunção de inocência.

Sob essa perspectiva, Nabuco Filho (2010) assevera que, apesar do ilícito penal cometido ser expressivamente repugnante perante a sociedade, o indivíduo tem o direito de ser defendido legalmente. Ademais, insta esclarecer que há situações nas quais, embora os indícios iniciais levem a crer em uma possível autoria do crime, o acusado comprova, judicialmente, a sua inocência.

Há casos, também, em que a instrução ineficiente enseja a absolvição do acusado. A falta de um conjunto de provas que confirme a ocorrência do crime e o nexo causal com a autoria identificada na investigação resulta, da mesma forma, na absolvição, com embasamento na presunção de inocência, conforme se constata no entendimento jurisprudencial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, cuja decisão decorreu da Apelação Crime nº 70061106365:

APELAÇÃO. CRIMES CONTRA OS COSTUMES. ESTUPRO. MENOR DE DOZE ANOS. EXAME DO CONJUNTO PROBATÓRIO. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. AUSÊNCIA DE CERTEZA QUANTO À MATERIALIDADE E AUTORIA DO CRIME. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. EXAME DO CONJUNTO PROBATÓRIO. ELEMENTOS INDICIÁRIOS NÃO CONFIRMADOS EM JUÍZO. [...] Nesse contexto, o conjunto de provas existente no caderno processual é frágil quanto à materialidade e autoria do delito mostrando-se, por conseguinte, insuficiente para o julgamento de procedência do pedido condenatório deduzido na denúncia. Devem incidir, no caso, portanto, os postulados constitucionais

da presunção de inocência e da reserva legal em sua maior expressão, para fundar a absolvição do acusado, pela aplicação da máxima in dubio pro reo, por força da insuficiência de provas. Apelo provido. (RIO

GRANDE DO SUL, 2016a, grifo nosso).

Diante dessa esteira e do sistema penal acusatório instituído no País, mostra-se coerente afirmar que a presunção de inocência somente pode ser afastada no momento em que ocorrer o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, com fundamentos probatórios suficientes, claros, precisos e submetidos à defesa para o devido contraditório em face da autoria do delito.

[...] Nenhum acusado pode receber tratamento que o equipare ao condenado. [...] É importante ressaltar que ninguém poderá ser considerado nem tratado como culpado senão por uma sentença que o considere como tal, sob pena de se efetivar uma punição anterior ao juízo de culpabilidade.

No mesmo sentido é o ensinamento de Cesare Beccaria (2012, p. 34) ao referir que “um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz; e a sociedade apenas lhe pode retirar a proteção pública depois que seja decidido que ele tenha violado as normas em que tal proteção lhe foi dada [...]”, respeitando-se, assim, os ditames de um governo democrático e de uma justiça fixada na legalidade.

Se a culpabilidade do agente, portanto, somente pode ser decretada pelo Poder Judiciário, mediante um processo justo, razoável e democrático, a sociedade não pode, seja pela gravidade do delito cometido, seja na luta contra a impunidade, considerá-lo culpado e condená-lo antes do trâmite processual finalizado, sob o risco de se afrontar uma garantia fundamental e constitucional: a presunção de inocência.

O referido debate encontra-se relacionado à atuação dos veículos de comunicação, construtores de muitas discussões sociais. Por vezes, a busca frenética pela audiência e prestígio do meio informativo promove a elaboração de reportagens sensacionalistas, violando a presunção de inocência, intimamente ligada aos direitos da personalidade, e transgredindo o limite da liberdade de informar, conforme será discorrido no próximo tópico.