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A Problemática Legal da Transexualidade em Portugal

No documento Transexualidade: Passado, Presente e Futuro (páginas 112-120)

Até 1995, a Ordem dos Médicos (OM) proibia a intervenção médica para reatribui- ção de sexo por não considerar lícita ou ética a cirurgia para “mudança de sexo em pes-

soas morfologicamente normais” (art. 55.º do Código Deontológivo da OM, vigente até

1995).

Mas foi através de uma resolução do Conselho Nacional Executivo da OM, aprova- da a 19 de maio de 1995, e publicada na Revista da OM de junho, que tal visão mudou. Porém, permanecia um complexo procedimento que só aparentemente facilitava a reso- lução da situação dos transexuais. De acordo com esta resolução:

“1. É proibida a cirurgia para reatribuição de sexo em pessoas morfo- logicamente normais, salvo nos casos clínicos adequadamente diag- nosticados como transexualismo ou disforia de género. (…)

Mestrado em Medicina Legal Para salvaguardar o rigor terapêutico e as implicações sociais decor-

rentes de tal alteração:

a) Que a viabilização da cirurgia supra mencionada seja precedida para além do diagnóstico subscrito, pelo menos, por dois espe- cialistas em psiquiatria, do parecer obrigatório de uma comissão ‘ad hoc’ nomeada pela Ordem que inclua as valências que inte- gram o actual Grupo de Trabalho, constituída por profissionais com reconhecida experiência na matéria e que definirá os requisi- tos mínimos;

b) Que o candidato à cirurgia seja maior, civilmente capaz e não casado (…)” (Ilga, 2008; Marques et al., 2012).

A Comissão nomeada pela OM tinha, pois, como missão emitir parecer obrigatório neste tipo de situações integrando vários especialistas de reconhecida competência em áreas tão diversas como Sexologia, Ginecologia, Endocrinologia, Cirurgia, etc.

Atualmente, a Comissão para Avaliação dos Candidatos à Mudança de Sexo, des- de 2012 que se encontra estagnada dado vários dos seus elementos entenderem que com a entrada em vigor da Lei n.º 7/2011, de 15 de março, esta Comissão ter deixado de fazer sentido.

Entretanto, tem-se conhecimento de já se encontrar aprovada uma Competência de Sexologia Clínica na OM e nomeada a respetiva Comissão de Instalação. Deverá ser o Colégio dessa Competência que irá determinar como é que a OM irá agir de futuro nestes casos e, em princípio, os diagnósticos passarão a ser efetuados pelos membros dessa Competência.

Quanto ao tratamento legal que se dá a este tipo de casos convém fazer-se uma distinção entre dois períodos no que concerne ao processo de alteração dos elementos constantes do registo civil, nomeadamente o nome próprio e o sexo.

Assim, abranger-se-á um primeiro período que culminou com a publicação da Lei n.º 7/2011, de 15 de março e um outro que se iniciou após a publicação deste mesmo diploma legal – ver Anexo I.

Este diploma veio permitir a alteração de nome próprio e da menção do sexo no registo civil de cada pessoa a quem tenha sido diagnosticada uma perturbação de identi- dade de género.

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2.5.1.1. ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI N.º 7/2011, DE 15 DE MARÇO Antes de 15 de março de 2011, o processo de alteração dos elementos constantes do registo civil era um processo moroso, por vezes, doloroso e penoso para o cidadão transexual.

Até 1981, o problema do assento de nascimento das pessoas transexuais foi trata- do como se se tratasse de um erro nesse assento, só sendo abandonada tal prática depois de o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 31/01/1981, ter declarado improcedente uma ação, argumentando que na altura em que o assento se tinha realiza- do, este estava correcto (Ilga, 2008).

Posteriormente, as ações intentadas pelas pessoas transexuais passaram a ser efetuadas no sentido de solicitar ao Estado o reconhecimento que a pessoa transexual tem um sexo, no momento da interposição da ação, que é o oposto ao constante do seu assento de nascimento e que, portanto, deveria ser feita a alteração deste, de modo a que o nome e o sexo aí constantes passassem a estar de acordo com a sua situação actual (Ilga, 2008).

Pese embora, a existência de Jurisprudência pacífica de um direito comparado com legislação que reconhece o direito à adequação da situação legal e registal do transexual ao sexo a que verdadeiramente pertence e de uma unanimidade na comunidade científi- ca sobre a necessidade de adequar o sexo físico, o sexo legal e social ao seu sexo psico- lógico, nesta época, o direito a substituir no registo de nascimento, o sexo e o nome não tinha qualquer previsão normativa, mormente, no Código Civil ou no Código de Processo Civil.

Assim, o transexual poderia alcançar tal substituição apenas na sequência de uma ação contra o Estado, em que pedia ao tribunal que proferisse uma declaração onde reconhecesse que aquela pessoa pertencia a sexo diferente do que constava do seu registo civil e, em consequência, deveria ser averbada, no registo de nascimento, uma retificação relativamente ao nome e ao sexo.

Um processo judicial deste tipo não era fácil de se resolver. Desde logo porque deviam estar preenchidos os seguintes pressupostos: a) ser maior de idade; b) não estar em condições de procriar; c) o transexual já estar numa fase de cirurgia de reatribuição sexual e d) em situação de irreversibilidade, ou seja, já teria que ter ultrapassado todo o processo de diagnóstico de transexualidade, bem como ter vivido de acordo com as regras do sexo pretendido, pelo menos durante um ano, estar com hormonoterapia e se

Mestrado em Medicina Legal ter submetido às cirurgias com irreversibilidade declarada pelo médico-cirurgião (histerec- tomia no caso de homem transexual e cirurgias genitais no caso de mulher transexual); e e) não ter tido filhos (as).

Na ação competente era requerido ao tribunal que condenasse o Estado a reco- nhecer que o transexual (ainda na condição de pertencer ao sexo que se encontrava ins- crito no seu Assento de Nascimento e com o nome que lhe tinha sido dado à nascença) pertenceria a determinado sexo (contrário ao que constava no seu Assento de Nascimen- to) e que o seu nome próprio seria X e não Y.

Com ausência de norma legal que regulamentasse esta matéria, teria ainda de requerer que o tribunal reconhecesse a existência de uma lacuna jurídica, com base no Código Civil (art. 10.º) e se substituísse a essa lacuna.

Uma das bases legais utilizadas para fundamentar uma ação deste tipo era a pró- pria Constituição da República Portuguesa (CRP) a qual se baseia na dignidade da pes- soa humana e, por isso, reconhece direitos fundamentais, de vocação universal, que se traduzem em direitos de personalidade e constituem direitos subjectivos directamente aplicáveis vinculando entidades públicas e privadas.

Entende-se por direitos fundamentais de personalidade constitucionalmente garan- tidos, os direitos à integridade moral e física, à identidade pessoal, à intimidade da vida privada e familiar, à constituição de família e ao casamento (cfr. arts. 1.º, 16.º, 17.º, 18.º, 25.º, 26.º e 36.º da CRP). Tais direitos, dado o disposto no art. 18.º, n.º 1 da CRP, são causa direta de direitos e obrigações na esfera jurídica dos cidadãos, que caberá ao juiz conhecer e salvaguardar. Esses direitos impõem a permissão de tratamentos médicos conducentes à alteração do sexo morfológico e, igualmente, que se permita a alteração do assento de nascimento.

O direito à integridade pessoal (art. 25.º da CRP), por exemplo, inclui o direito à protecção da integridade física e psicológica do cidadão, de onde decorre estar vedado ao Estado interditar àquele a utilização dos meios necessários àquela protecção. O tran- sexual era – e ainda o é – vítima de considerável sofrimento decorrente da incongruência entre o seu ser formal e a sua identidade real, para além de associado ao preconceito social que o transforma num tipo de “avis rara”, o que conduzia frequentemente a atos extremos de auto mutilação e de suicídio. A única forma de minimizar tal sofrimento seria, como será, permitir-lhe a readaptação corporal e a aquisição de uma “nova identidade”, juridicamente relevante.

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O direito à identidade pessoal (art. 26.º da CRP), enquanto faculdade que a cada um é reconhecida de afirmar, no trato social, as características essenciais da sua perso- nalidade, onde se incluem os aspectos atinentes à sexualidade da pessoa, sendo a iden- tidade sexual uma sub-espécie da sua identidade pessoal. O que aqui releva é a sua dimensão psico-social pois é esta que pertence à identidade pessoal e que determina a forma como cada indivíduo se relaciona com os demais.

Por outro lado, há ainda a considerar a exigência de um direito à saúde (art. 64.º da CRP) pois o transexual não se submete ao longo e penoso processo de reatribuição sexual por puro prazer ou mero capricho.

Outra das bases legais era a legislação europeia e internacional como, por exem- plo, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (nomeadamente, os seus arts. 6.º, 12.º, 16.º e 29.º, n.º 1); a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (arts. 8.º e 12.º); e, ainda, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (arts. 16.º e 23.º).

Os transexuais viam-se, desta forma, obrigados a recorrer aos tribunais para poder mudar o registo do sexo e nome, sujeitando-se à decisão discricionária de um juiz, dada a existência de uma lacuna legal e normativa que permitia ser este a decidir conforme o faria se estivesse a legislar sobre a matéria (Ilga, 2008). Com tal situação corria-se o ris- co de tratamentos desiguais para casos idênticos, introduzindo-se uma fasquia de subje- tividade não desejável.

Também a duração do processo judicial, que podia ser superior à do próprio pro- cesso clínico, contribuía para a insegurança da condição dos transexuais, minando a sua integração social, e contribuindo também para situações de exclusão laboral de pessoas que tinham todas as condições para serem produtivas (Ilga, 2008).

Os critérios geralmente utilizados para se aceder à mudança do registo também eram extremamente problemáticos, uma vez que se exigia que a pessoa requerente nun- ca tivesse sido casada, não tivesse filhos (as), tivesse realizado a cirurgia genital e fosse irreversivelmente estéril (Ilga, 2008).

Verificava-se que, por vezes, os meios de prova exigidos eram excessivos ou redundantes, como era o caso de, após o requerente ter provado através de relatórios de entidades oficialmente acreditadas que já havia efetuado a cirurgia genital ou que já era irreversivelmente estéril, o tribunal ainda requerer uma perícia nos Institutos de Medicina Legal para provar exatamente o mesmo. O que para o transexual era uma situação com- pletamente vexatória e atentatória do direito à reserva da sua vida privada. Ou então,

Mestrado em Medicina Legal como já efetivamente sucedeu, assistir-se à situação em que, após juntar os relatórios supra mencionados, ainda vir um terceiro a colocá-los em causa pelo facto de entender que o Estado não sabe nem tem que saber que os médicos subscritores dos mesmos trabalhavam naquelas entidades de saúde públicas.

Outra situação que se verificava algumas vezes era a confusão de juízes e/ou Ministério Público entre identidade de género e orientação sexual, existindo alguma resis- tência a estes casos.

Felizmente, para a maioria dos transexuais, as decisões judiciais, após análise detalhada sobre a matéria, iam no sentido de se concluir da seguinte forma, a título exemplificativo:

“Por força dessas intervenções e tratamentos, o processo de reatri-

buição de sexo ficou concluído, sendo irreversível, apresentando hoje a Autora o aspecto físico exterior próprio de um indivíduo do sexo masculino.

Conclui-se, assim, estarem verificados os pressupostos para que seja judicialmente reconhecida a mudança do sexo feminino constante do registo de nascimento para o sexo masculino.

Cumpre apenas, por fim, assinalar o seguinte: o pedido no sentido de que se proceda à alteração da documentação oficial da Autora, adaptando- a aos seus novos nome e género sexual, não oferece verdadeira autono- mia, constituindo uma decorrência do pedido de alteração do registo de nascimento, e cuja concretização a Autora obterá a partir desta alteração.”

(extrato de uma decisão final de um processo que correu termos no Tribu- nal Judicial de Vila Nova de Gaia, datada de 2007).

Com este tipo de decisões judiciais, a pessoa transexual conseguiria obter a sua pretensão final que ia no sentido de adequar as inscrições constantes do seu assento de nascimento (nome e sexo, mais concretamente) à realidade fática.

Não se pode deixar de referir que, neste processo todo, passavam vários anos entre o início do processo psicológico e o trânsito em julgado do processo judicial em que a pessoa transexual normalmente (e infelizmente) estava numa situação social e laboral precária, com todas as consequências que isso acarretava.

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2.5.1.2. APÓS A ENTRADA EM VIGOR DA LEI N.º 7/2011, DE 15 DE MARÇO A partir de 15 de março de 2011, o efeito que se procurava obter através de deci- são judicial resulta diretamente da própria lei.

O processo de mudança de sexo e do nome próprio no Registo Civil passou a ser o mais simplificado e rápido em todo o mundo (e àquela data).

Com base no texto legal publicado, a ação judicial interposta contra o Estado dei- xou de existir para estes casos e as conservatórias passaram a contar com um prazo de oito dias (úteis) para realizar as alterações solicitadas pelo cidadão transexual.

Assim, a mudança do assento de nascimento passou a ser requerida em qualquer Conservatória do Registo Civil devendo o pedido ser instruído com os seguintes docu- mentos:

 Requerimento de alteração de sexo com indicação do número de identificação civil e do nome próprio pelo qual o requerente pretende vir a ser identificado, podendo, desde logo, ser solicitada a realização de novo assento de nascimento;  Relatório que comprove o diagnóstico de perturbação de identidade de género

elaborado por equipa clínica multidisciplinar de sexologia clínica em estabeleci- mento de saúde público ou privado, nacional ou estrangeiro.

Independentemente das cirurgias!

Uma vez feito o diagnóstico, a adequação dos documentos à pessoa, sexo e nome, que chegava a demorar 2 anos ou mais, demora agora, ao abrigo desta lei, alguns dias, permitindo-se dessa forma que estas pessoas possam iniciar uma vida normal muito mais rapidamente e assim se libertem de grande sofrimento e exclusão social.

Foi objetivo desta lei desjudicializar a mudança no registo civil do sexo e do nome mas os funcionários das conservatórias tiveram de se adaptar a uma nova realidade com a qual se confrontavam apenas após uma decisão judicial transitada em julgado.

Desde logo, houve necessidade de explicitar e concretizar o conceito de “relatório médico” já que, nos primeiros meses, foi tal a variedade de conteúdo dos documentos que foram sendo apresentados que essa dúvida surgiu e a mesma teria de ser uniformi- zada.

Mestrado em Medicina Legal Por outro lado, alguns dos requerimentos foram sendo apresentados nos consula- dos de Portugal no estrangeiro, interessando definir a competência dessas entidades para o procedimento em causa.

Assim, foi deliberado pelo Conselho Técnico do Instituto dos Registos e do Notaria- do (IRN) (CC 29/2011 SJC CT, de 04 de julho de 2011) que:

 A decisão neste procedimento compete ao conservador do registo civil;

 O pedido pode ser enviado pelos CTT ou entregue pessoalmente, e instruído com requerimento escrito, contendo os elementos legalmente previstos, devida- mente assinado, e com relatório que comprove o diagnóstico de PIG (artigo 3.º, n.º 1, als. a) e b) da Lei n.º 7/2011);

 O pedido em consulado de Portugal no estrangeiro, efetuado nos termos anterio- res, deve ser remetido a qualquer conservatória do registo civil do território nacio- nal para que nela possa ser decidido, ou seja, os consulados têm apenas compe- tência para rececionar os pedidos de início do procedimento;

 Para o relatório clínico elaborado por equipa multidisciplinar, subscrito por médi- co e psicólogo, segue o modelo acordado entre a OM e as equipas multidisciplina- res de sexologia clínica existentes em Portugal, no setor público e privado, cons- tantes de lista apresentada pela OM e que se passa a reproduzir (Deliberação. Procedimento, 2011):

RELATÓRIO CLÍNICO

Ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 3º da Lei n.º 7/2011, de 15 de março, atestamos que XXXXXXXXXXXXXX, portador/a do BI nº XXXXX, tem o diagnóstico de Perturbação de Identidade de Género (Transexualidade), não sofre de anomalia psíquica e tem sido regularmente seguido/a em Consulta por Equi- pe Multidisciplinar de Sexologia Clínica.

Por ser verdade, aplica-se o disposto no artigo 2º da supracitada Lei para efeitos de mudança de sexo e de nome próprio no Registo Civil.

Lisboa, XX de XXXXX de 2011

________________________________________________ XXXXXXXXXXXXXXX

Médico/a (Especialidade)

(Formação em Sexologia Clínica) E-mail:

________________________________________________ XXXXXXXXXXXXXXX

Médico/a (Especialidade)

(Formação em Sexologia Clínica) E-mail:

________________________________________ INSTITUIÇÃO (PÚBLICA OU PRIVADA)

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 Relativamente ao relatório elaborado por entidade estrangeira para a mesma finalidade, este deve obedecer ao formalismo da Lei n.º 7/2011, isto é, deverá ser subscrito, pelo menos, por um médico e um psicólogo de equipa clínica multidisci- plinar de sexologia clínica em estabelecimento de saúde público ou privado, e reconhecido como tal no país de origem (Deliberação. Mudança de sexo, 2011). Por fim, o procedimento tem um custo emolumentar inerente, de acordo com o Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 322- A/2001, de 14 de dezembro, com as alterações subsequentes.

2.6. A IMPORTÂNCIA DA MEDICINA LEGAL NOS CASOS DE TRANSEXUA-

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