• Nenhum resultado encontrado

As Cirurgias de Reatribuição Sexual

No documento Transexualidade: Passado, Presente e Futuro (páginas 76-85)

2.3. O Renascer

2.3.2. As Cirurgias de Reatribuição Sexual

Quando a pessoa vivenciou a experiência real como membro do sexo oposto, e continua a estar completamente convicto de querer continuar o Processo de Reatribuição Sexual, será direcionada para a equipa de cirurgia.

Ou seja, a cirurgia de mudança de sexo – ou de reatribuição sexual –, consiste num dos últimos procedimentos clínicos em países que têm um programa clínico de atendi- mento a transexuais como forma de adequar os desejos dos pacientes à estrutura social orientada pelos papéis de género (Cardozo, 2005).

A cirurgia de reatribuição sexual é efetiva e medicamente indicada para os casos de PIG severa. Em pessoas diagnosticadas com transexualismo ou PIG profunda, a reatri- buição sexual, acompanhada por hormonoterapia e pela experiência de vida real, é um tratamento que provou ser eficiente (Cardozo, 2005).

Ao longo dos anos, e dada a irreversibilidade de algumas das operações, os proce- dimentos cirúrgicos utilizados na reatribuição sexual têm vindo a ser desenvolvidos e aprimorados com o objetivo de atender às ansiedades dos pacientes transexuais (Cardo- zo, 2005).

Hoje existem diversas técnicas e diferentes procedimentos disponíveis, o que aumenta as possibilidades daqueles que desejam optar por tal procedimento (Cardozo, 2005).

Antes de avançar, explicita-se que apenas se irá abordar os procedimentos cirúrgi- cos que atualmente são praticados em Portugal, mais especificamente pela única equipa médico-cirúrgica que realiza este tipo de cirurgias de reatribuição sexual. Isto, muito embora, sem menosprezar todo o esforço que está a ser levado a cabo numa outra enti- dade de saúde pública nacional.

Mestrado em Medicina Legal 2.3.2.1. DO MASCULINO PARA O FEMININO

Em transexuais masculinos para femininos (MF), a cirurgia de reatribuição sexual consiste principalmente na remoção do pénis, do escroto, e dos testículos, a construção dos lábios genitais e uma vaginoplastia. Podemos ainda ter uma mamoplastia de aumen- to para os casos em que, após anos de hormonoterapia, as mamas continuam quase sem desenvolvimento.

Por outras palavras, pode dizer-se que nestes casos a cirurgia consiste basicamen- te na “castração” e, conjuntamente com ela, na amputação do pénis (penectomia ou peo- tomia). É na sequência da ablação do pénis que o cirurgião cria uma neovagina (Cardo- zo, 2005).

Nestes pacientes começa-se por uma construção mamária que se divide em duas fases (Ferreira, s.d.a; Ferreira, s.d.b):

1.ª Fase – Colocação de expansores, para que os tecidos se distendam e seja cria- do espaço para as próteses definitivas. Esta intervenção é efetuada com anestesia geral e tem a duração de cerca de uma hora, seguida de um mês e meio em consulta para obter a expansão desejada, com injeção transcutânea de soro no expansor;

2.ª Fase – Substituição dos expansores por próteses mamárias definitivas. Esta cirurgia é realizada após um período mínimo de seis meses para que os tecidos estabilizem, com anestesia geral tendo a duração de cerca de uma hora.

Abaixo tem-se o exemplo de um caso concreto operado pela equipa médica lidera- da pelo Dr. João Décio Ferreira (médico cirurgião), que efetua este tipo de cirurgias no SNS desde 2005: inicialmente no Hospital de Santa Maria e posteriormente no Hospital de Jesus, ambos em Lisboa.

No caso em questão, e de acordo com a informação obtida, como não havia tecidos suficientes para se poder colocar próteses do tamanho pretendido pela paciente, foi necessário colocar em primeiro lugar expansores para obter a distensão necessária da pele e músculos peitorais (cfr. Figuras 5 e 6).

Mestrado em Medicina Legal

Figura 5: Antes da cirurgia, no decurso da hormonoterapia

(Fonte: joaodecioferreira.com)

Figura 6: Após colocação de expansores (Fonte: joaodecioferreira.com)

Após a expansão necessária para o que se pretendia, e decorrido o tempo mínimo para a estabilização dos tecidos, foram colocadas as próteses definitivas sub-musculares (cfr. Figura 7).

Figura 7: Após o período mínimo de 6 meses e já com as próteses definitivas com colocação sub-muscular

(Fonte: joaodecioferreira.com)

No entanto, e muito embora estas tenham sido próteses de colocação sub- muscular, os cirurgiões tentam sempre usar como via de acesso a periareolar: a prótese é colocada através de uma incisão que acompanha o contorno inferior da aréola, seguin- do a linha que separa a pele mais escura da aréola da pele mais clara do resto da mama. A cicatriz que fica é normalmente quase invisível e fica disfarçada na zona de mudança de cor entre a pele da aréola e a pele do resto da mama. É fácil desta maneira colocar a prótese sub-mamária ou sub-muscular (Ferreira, s.d.a).

Mestrado em Medicina Legal Outra das cirurgias efetuada é a transformação genital, com a qual se pretende obter uma genitália em tudo semelhante com o de uma mulher biológica.

Para isso, o que é realizado nesta equipa é como que um aproveitamento de todas as estruturas da genitália masculina, utilizando os tecidos mais apropriados para a con- trução dos vários componentes de uma vulva e vagina normais.

Assim:

 os tecidos que constituem a face externa dos grandes lábios são da mesma ori- gem embriológica do tecido que constitui o escroto;

 os tecidos que formam o exterior do pénis e os que formam a face interna dos grandes lábios bem como os que formam a face externa dos pequenos lábios são da mesma origem embriológica;

 o clitóris mais não é que um pénis em miniatura em que a uretra só se formou até à base; e,

 os tecidos que formam a uretra peniana são da mesma origem dos que formam a face interna dos pequenos lábios (Ferreira, s.d.c).

Perante isto, há que começar por retirar os testículos, os corpos cavernosos, o que está a mais da uretra e os corpos esponjosos, mas sempre tendo em atenção a conser- vação da sensibilidade das estruturas.

A partir daqui e, utilizando-se uma técnica semelhante à de quem sofre da síndro- me de Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser (MRKH) – agenesia vaginal ou ausência congé- nita da vagina –, realiza-se:

a) Orquidectomia – em que se faz a resseção dos testículos;

b) Penectomia – em que se faz a recessão dos corpos cavernosos e de parte dis- tal da uretra;

c) Labioplastia – em que se formam os grandes lábios e os pequenos lábios com a pele do escroto e do pénis, de maneira a dar uma forma genital mais aproxima- da possível a uma vulva normal;

d) Clitoroplastia – em que se constrói a glade do clitóris com parte da glande do pénis;

e) Por fim, a Neovagina ou Vaginoplastia – ou seja, forma-se uma vagina, poden- do ser feita à custa da inversão da pele do pénis, de pele do pénis e retalho do escroto (aqui correndo-se sérios riscos de poderem surgir pelos dentro da vagi- na, dada a natureza do tecido que a compõe), de enxertos de pele, de retalho do cólon (intestino grosso) ou com um enxerto livre de uma parte do intestino delgado, o jejuno (sendo este último o escolhido pela equipa médica portugue- sa).

Mestrado em Medicina Legal

Esta é uma intervenção com uma duração média de 5 a 6 horas feita sob anestesia geral podendo ser realizada naqueles 6 meses de espera que separam as duas fases da construção mamária (Ferreira, s.d.c).

Após a transformação genital é necessário o uso de um molde semirrígido para evi- tar retrações da neovagina, em especial nos primeiros dois meses. O uso do molde é necessário e importante apesar de, em alguns casos operados pela equipa portuguesa, se ter mostrado quase desnecessário – depende tudo da capacidade de cicatrização da paciente (Ferreira, s.d.c).

A paciente pode ter atividade sexual após aproximadamente 45 dias mas não pode- rá dispensar o uso do molde (Ferreira, s.d.c).

Para além destas duas intervenções, outras mais podem ser realizadas como é o caso das intervenções para alterações faciais: rinoplastias, mentoplastias, cervicais para diminuir a denominada “maçã-de-adão” (condroplastia tiroideia), transplantes de cabelo e/ou retalhos (caso seja necessário modificar a linha do cabelo ou corrigir uma alopécia já existente) (Freitas et al., 2011). Tudo para que as suas características sejam mais seme- lhantes às das pessoas do sexo psicológico.

2.3.2.2. DO FEMININO PARA O MASCULINO

Pacientes do sexo feminino para masculino tipicamente podem submeter-se a uma mastectomia bilateral e à construção de um neofalo. Devido à melhoria das técnicas de faloplastia, cada vez mais pacientes do sexo feminino para masculino optam por esta intervenção.

Os procedimentos cirúrgicos a incluir nestes casos são variados. Assim temos, segundo Ferreira (s.d.d):

a) Mastectomia bilateral – podendo aqui utilizar-se uma de duas técnicas, con- soante o tamanho da mama:

a.1) Mastectomia subcutânea periareolar  é utilizada quando a mama é pequena e há pouca pele. Neste caso as cicatrizes ficam no contorno infe- rior das aréolas tornando-se praticamente invisíveis (cfr. Figuras. 8 e 9);

Mestrado em Medicina Legal

Figura 8: Antes da mastectomia (Fonte: joaodecioferreira.com)

Figura 9: Depois da mastectomia subcutânea periareolar

(Fonte: joaodecioferreira.com)

a.2) Mastectomia com enxerto de mamilos  é utilizada quando a mama é grande e, portanto, com muita pele. Neste caso efetua-se uma resseção da glândula e de parte da pele, utilizando-se os complexos areolo-mamilares como enxertos. Com o tempo as cicatrizes tornam-se quase invisíveis (cfr. Figuras 10 e 11).

Figura 10: Antes da mastectomia com enxerto de mamilos

(Fonte: joaodecioferreira.com)

Figura 11: Depois da mastectomia com enxerto de mamilos

(Fonte: joaodecioferreira.com)

Normalmente, uma mastectomia tem uma duração compreendida entre 1h30 a 3 horas, conforme o tamanho das mamas (que condiciona, como se acabou de ver, a téc- nica a utilizar) e é administrada anestesia geral ao paciente.

Todavia, nem sempre as pacientes chegam à equipa de cirurgia como a que se encontra retratada na Figura 8.

Mestrado em Medicina Legal

Um bom exemplo do desespero que os transexuais femininos sentem quando che- gam à puberdade e se deparam com o crescimento das suas mamas é o recorrerem à compressão mamária com o objetivo de as esconder (cfr. Figuras 12 e 13).

Figura 12: Compressão mamária – visão frontal

(Fonte: joaodecioferreira.com)

Figura 13: Compressão mamária – visão lateral

(Fonte: joaodecioferreira.com)

b) Histerectomia – cirurgia efetuada para remoção de todo o útero, incluindo o colo do útero. No decurso desta intervenção que tem a duração de cerca de 2 horas e administração de anestesia geral ao paciente, a equipa efetua mais dois passos importantes (Ferreira, s.d.b; Freitas et al., 2011). São eles:

b.1) Salpingo-ooforectomia  remoção / resseção de ambos os ovários e trom- pas de Falópio; e,

b.2) Vaginectomia  remoção da vagina inteira (canal do parto) ou de parte dela.

c) Metoidoplastia e Escrotoplastia – consistem na formação de um pequeno pénis com os tecidos do clitóris e dos pequenos lábios vulvares, já muito aumentados pela hormonoterapia, e na formação do escroto à custa da face externa dos grandes lábios vulvares. Nesta intervenção cirúrgica é administrada anestesia geral ao paciente e tem a duração de cerca de 1h30 a 3 horas (Frei- tas et al., 2011).

d) Uretroplastia – consiste no aumento do comprimento da uretra até à extremi- dade do neo-pénis (Freitas et al., 2011)

Mestrado em Medicina Legal e) Colocação de próteses testiculares no neo-escroto, sendo administrada anestesia geral e com duração de cerca de 1 hora (cfr. Figuras 14 e 15) (Freitas et al., 2011; Ferreira, s.d.b).

Figura 14: Antes da colocação de próteses testi- culares

(Fonte: joaodecioferreira.com)

Figura 15: 2 meses após a operação (Fonte: joaodecioferreira.com)

Chegados a esta fase, é dada a opção ao paciente de ficar assim, com um minipénis, ou optar por uma faloplastia (Ferreira, s.d.b).

f) Faloplastia – consiste na formação de um neo-pénis de tamanho e forma semelhante o mais possível a um pénis de homem em ereção, à custa de reta- lhos de pele e tecidos vários, da própria pessoa (dependendo da técnica empregue) e colocação de prótese, se necessário, para obter a rigidez seme- lhante a uma ereção normal. A escolha do retalho a utilizar nesta operação deve ter em conta as características físicas do paciente (gordo, magro, com mais ou menos pilosidade, etc.) e as sequelas (defeitos estéticos e/ou funcio- nais) que irá criar na zona dadora (Freitas et al., 2011).

Foi devido à existência destas possíveis sequelas que a equipa do Dr. Décio Ferreira escolheu por construir um pénis à custa de um duplo retalho tubular da parede abdominal – é a denominada técnica de Gillis (em homenagem a um dos pais da cirurgia plástica, Harold Gillies). A rigidez do neo-pénis formado por esta técnica é obtida através de um enxerto de cartilagem costal. Na Figura 16 pode ver-se que a curvatura é devida exatamente à curvatura natural da própria cartilagem (Ferreira, s.d.d).

É óbvio que, no imediato, este neo-pénis não tem qualquer sensibilidade mas, com o passar do tempo, e dada a reenervação natural do retalho a partir

Mestrado em Medicina Legal

da enervação do clitóris, esta sensibilidade irá surgir alguns meses depois (entre 6 a 12 meses). Fisiologicamente terá quase a sensibilidade de um pénis natural (Ferreira, s.d.d).

Todavia, para se chegar aqui muitas cirurgias são necessárias que vão des- de a formação da uretra, formação do retalho e início da sua transferência e modelagem culminando na colocação de enxerto de cartilagem costal do pró- prio paciente para ser obtida a rigidez necessária para uma boa penetração.

Figura 16: Faloplastia - curvatura natural da cartilagem costal enxertada

(Fonte: joaodecioferreira.com)

Para além destas cirurgias, podem ainda ser necessárias pequenas correções cirúrgicas como, por exemplo, tamanho dos mamilos, qualquer complicação que surja como resultado das várias cirurgias e no final, eventualmente, correções de cicatrizes em geral (Ferreira, s.d.b).

Todas as cirurgias de modelação da glande deste neo-pénis são efetuadas em regime ambulatório e na fase em que a sensibilidade ainda não chegou à extremidade pelo que são realizadas sem necessidade de qualquer anestesia (Ferreira, s.d.d).

Segundo Ferreira (s.d.b) J. D., “é claro que podemos associar mais que uma cirur-

gia. Podemos fazer num só tempo a histerectomia e a metoidoplastia, por exemplo, ou a mastectomia com um dos tempos da faloplastia, tudo depende do caso concreto. É claro que os tempos da faloplastia são forçosamente sequenciais mas podem ser associados com outras cirurgias diferentes. (…) No fundo temos que pôr sempre o bom senso à fren- te da ‘pressa’ dos candidatos às cirurgias”.

Mestrado em Medicina Legal Por tudo quanto ficou explanado pode perceber-se que se trata de cirurgias de grande porte e que têm carácter irreversível.

Desta forma, é de fulcral importância que os pacientes sejam esclarecidos de todas as consequências funcionais e estéticas desses procedimentos, além dos possíveis ris- cos.

É uma mais-valia para estes pacientes, candidatos à cirurgia de reatribuição sexual, o contacto prévio com os médicos e com outros pacientes que já tenham realizado as cirurgias para que seja tomada uma decisão consciente relativamente à efetivação da cirurgia.

Como Palmares (2008) afirma num estudo que efetuou a dois transexuais após operações, estes ficaram com a sensação de renascer que adveio da cirurgia, e as sen- sações de as duas partes se encaixarem, deixando de haver a dualidade anterior, verifi- cando-se uma marcada elevação no humor de ambos. A esta associa-se a grande liber- dade e auto-confiança sentidas consigo próprios, com a família e com parceiros românti- co-sexuais bem como nos relacionamentos sociais e com amigos.

No documento Transexualidade: Passado, Presente e Futuro (páginas 76-85)

Documentos relacionados