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2.1. A processualidade administrativa e seus princípios norteadores

2.1.3. A processualidade administrativa à luz do princípio da moralidade e

O conceito de moralidade foi inserido na qualidade de princípio pela primeira vez na Constituição de 1988. A dificuldade em definir o exato conteúdo do princípio da moralidade conduziu alguns autores, como Marçal Justen Filho106, a concluir que se trata de um “princípio jurídico ‘em branco’, o que significa que seu conteúdo não se exaure em comandos concretos e definidos, explícita ou implicitamente previstos no direito legislado”.

O jurista Maurice Hauriou deu início ao estudo da moralidade administrativa e sua pesquisa ganhou contornos mais sólidos no ápice do desenvolvimento do positivismo jurídico. O princípio da moralidade é entendido pelo autor como limitação à atuação autoritária do Estado. Segundo o autor, os poderes concedidos à Administração Pública possuem objetivo certo, qual seja, a realização do interesse público e da boa administração. Caso o administrador tenha tomado sua decisão com finalidade outra que não o atendimento ao interesse público, haverá atuação com abuso de poder, que seria, portanto, passível de anulação. Assim, para Maurice Hauriou, o objetivo da função administrativa estaria muito menos determinado pela lei que pela moralidade.

A plurissignificação do próprio conceito de “moral” torna difícil uma interpretação una e inquestionável do princípio. A dificuldade interpretativa relacionada ao princípio da moralidade administrativa é resultado, em primeiro lugar, da amplitude semântica da expressão, associada à inexistência de referências normativas que auxiliem na densificação do conceito. Há uma debatida e ainda indefinida relação entre moral e direito, à qual Thiago Marrara sintetiza em três fatos centrais107:

106 JUSTEN FILHO, Marçal. O princípio da moralidade e o direito tributário. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, p. 50, n.º 11, 1996.

107

MARRARA, Thiago. O conteúdo do princípio da moralidade: probidade, razoabilidade e cooperação. In: MARRARA, Thiago (Org.). Princípios de Direito Administrativo: legalidade, segurança jurídica, impessoalidade, publicidade, motivação, eficiência, moralidade, razoabilidade, interesse público. São Paulo: Atlas, 2012. p. 159-179.

75 “O primeiro é que o cumprimento do direito dependerá de uma ‘convicção amplamente difundida de que há uma obrigação moral de lhe obedecer’. Justamente por isso, o segundo fato é que qualquer sistema jurídico sempre buscará demonstrar, para que continue existindo, uma relação mínima e específica com a moral vigente, quer a convencional, quer a de uma elite dominante. No entanto, essa ligação entre direito e moral variará de acordo com a cultura coletiva e a concepção de espaço e tempo. Por isso, o terceiro fato é que nenhum dos três modelos apresentados se afigura como universal e capaz de abarcar as mais diversas configurações da relação entre direito e moral. Essas relações são inevitavelmente variáveis conforme a cultura, o caráter e o papel do Estado e suas relações com a sociedade.”

O processo administrativo também surge como um importante instrumento de controle da moralidade. A existência de atos preordenados para o atingimento de um fim, ou seja, a existência de um procedimento regulado – ainda que ponderado em face do princípio do informalismo moderado – também demanda a observância da moralidade em sua condução.

Não por outra razão que a LPAF, que regulamenta o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, vincula sua atuação à observância dos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Ainda que pareça clara a existência de certa instabilidade quanto à definição da moralidade em termos de espaço, tempo e sociedade, Egon Bockmann aponta para dois preceitos que são deveres morais básicos de qualquer relação processual, além de importantes no âmbito do exercício da função administrativa no processo, quais sejam, a imparcialidade e a boa-fé.

A imparcialidade prescreve que o convencimento da Administração Pública será isento e formado a partir das informações e dados apresentados no âmbito do processo, uma vez que o interesse público exige uma decisão administrativa justa e conforme a realidade dos fatos provados.

Sob a perspectiva processual, a boa-fé está associada à ética e à segurança jurídica. A postura das partes envolvidas no processo, tanto administrados, mas principalmente a Administração Pública, deve pautar-se na transparência, previsibilidade e estabilidade.

76 A vinculação do princípio de moralidade a dois outros conceitos igualmente abertos não permite uma conclusão acerca do seu real conteúdo, mas orienta a possíveis comportamentos dirigidos a uma conduta conforme ao princípio da moralidade.

Especificamente no que cerca à possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, no âmbito do mencionado Mandado de Segurança n.º 32.494 em trâmite perante o STF, a moralidade foi utilizada, juntamente com a teoria dos poderes implícitos, como motivação para que a ação do TCU em análise fosse considerada legítima:

“É por essa razão que o princípio constitucional da moralidade administrativa, ao impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle externo de todos os atos, quer os emanados do Poder Público, quer aqueles praticados por particulares que venham a colaborar com o Estado na condição de licitantes ou contratados e que transgridam os valores éticos que devem pautar o comportamento dos órgãos e agentes governamentais.”

A compatibilidade da adoção da desconsideração da personalidade jurídica amparada no princípio da moralidade também já foi analisada pelo STJ108, que concluiu pela possibilidade de sua incidência também na esfera administrativa, desde que as garantias de ampla defesa e o respeito ao contraditório tenham sido verificados.

Contudo, é inegável que a utilização da desconsideração da personalidade jurídica com base no princípio da moralidade, dada sua amplitude, apresenta fragilidades e, em dada medida, pode ser entendido como uma violação ao princípio da segurança jurídica que igualmente encontra-se expressamente previsto na LPAF.

O princípio da segurança jurídica, por sua vez, costuma ser extensamente valorado, conforme aponta Ricardo Marcondes Martins109:

“A segurança é uma necessidade humana básica, considerada uma das principais causas da própria existência do Direito. Se a existência do ordenamento jurídico decorre da necessidade humana de segurança, não há como conceder um ordenamento em que ela

108

“A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultados ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular” BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 15.166/BA. Recorrente: G E G Móveis Máquinas e Equipamentos Ltda. Recorrido: Estado da Bahia. Relator: Ministro Castro Meira. Brasília, DF, 7 de agosto de 2003.

109 MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. Temas de Direito

77 não esteja presente: seja um ordenamento autoritário ou democrático, seja um ordenamento escrito ou não escrito, a existência do ordenamento jurídico dá-se pela necessidade de segurança – e, por isso, pressupõe esse valor. Em outras palavras, pode-se afirmar que, enquanto a concretização da segurança é a causa final do Direito, a necessidade de segurança é sua causa eficiente. Dentre os denominados princípios jurídicos destaca-se, assim, a importância da segurança jurídica.”

A valoração do princípio da segurança jurídica impõe que a decisão administrativa, fruto de um processo informado, tenha sido amadurecida a partir de fatos provados e juntados aos autos, esteja devidamente fundamentada em normas às quais os administrados tenham conhecimento e apresente coerência com decisões precedentes em casos correlatos.110

Fere o princípio da segurança jurídica, a mudança constante de posicionamento da Administração Pública em casos correlatos. A coerência e firmeza das decisões administrativas refletem a clareza e firmeza dos objetivos perseguidos pela Administração Pública. Nesse contexto, a inclusão da segurança jurídica como princípio norteador no âmbito da LPAF elevou sua importância como preceito cogente.

Não se está aqui vedando por completo a possibilidade da Administração Pública de evoluir com a sociedade, no que tange a tomada de suas decisões e eventual correções futuras de entendimentos passados, que não mais refletem os valores contemporâneos da sociedade. Trata-se de garantir a tutela de expectativas legítimas acerca das posições da Administração Pública, para que os particulares consigam com um mínimo grau de segurança planejar sua atuação.111 Em outros termos, no caso de uma adoção de uma nova posição, à luz do princípio da segurança jurídica, entre as razões constantes da

110 DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo como instrumento de segurança jurídica. Direito e Administração Pública: estudos em homenagem a Maria Sylvia Zanella Di Pietro. São Paulo: Atlas, 2013 p. 688.

111 Esse é o entendimento de Geraldo Ataliba: “Para que a liberdade de iniciativa (princípio da livre empresa)

e o direito de trabalhar, produzir, empreender e atuar numa economia de mercado não seja mera figura retórica, sem nenhuma ressonância prática, é preciso que haja clima de segurança e previsibilidade acerca das decisões do governo: o empresário precisa fazer planos, estimar – com razoável margem de probabilidade de acerto – os desdobramentos próximos da conjuntura que vai cercar seu empreendimento. Precisa avaliar antecipadamente seus custos, bem como estimar os obstáculos e as dificuldades. Já conta com os imponderáveis do mercado. Não pode sustentar um governo que agrave – com suas surpresas e improvisações – as incertezas, normais preocupações e ônus da atividade empresarial.” ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. p. 151.

78 fundamentação da decisão administrativa é necessário constar de maneira clara os fundamentos que motivaram a mudança do entendimento.

A possibilidade de adoção da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, motivada exclusivamente na moralidade administrativa, considerando a plurissignificação do conceito e sua amplitude, evidencia certa fragilidade no fundamento da motivação de sua incidência – que possui claro escopo aberto e cambiante – distanciando-se do atendimento ao princípio da segurança jurídica.

Nesse cenário, a possibilidade de aplicação administrativa da teoria da desconsideração da personalidade jurídica vem sendo reiterada através da inserção em diversos normativos. Assim, conforme já mencionado no capítulo precedente, os mais recentes normativos na seara administrativa já dispõem expressamente sobre tal possibilidade, como, por exemplo, a Lei n.º 12.846/2012, também conhecida por Lei Anticorrupção, que prevê em seu artigo 14 a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica caso seja verificado abuso de direito para o cometimento de fraude.

Esse movimento legislativo aponta para a compatibilidade do exercício da função administrativa e a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ao mesmo tempo em que indica que a sua aplicabilidade pode ser um instrumento importante no exercício de sua finalidade.

Ainda que sob o aspecto material pareça existir uma evolução nítida relacionada à aplicabilidade da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito administrativo, sob a perspectiva processual os avanços não são tão significativos.

2.2. Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito