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2.2. Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito

2.2.4. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica à luz do princípio do

Considerando a estrutura do processo administrativo conforme descrito acima, bem como as considerações sobre o princípio do devido processo legal, colocadas no capítulo anterior, é importante sistematizar tais ponderações e conformá-las a teoria da desconsideração. A estrutura do processo administrativo consiste, em verdade, de consequência formal do princípio do devido processo legal141. Nesse contexto, costuma-se dividir o devido processo legal em (a) formal; e (b) substancial.

Em relação ao chamado devido processo legal, trata-se da análise da garantia do devido processual à luz da razoabilidade e proporcionalidade. Assim, o due process of law implica a atuação do Poder Público ser orientada por um procedimento justo. Sobre o tema, Fábio Medina Osório142 pontua:

“Mais do que proibir a arbitrariedade dos Poderes Públicos, a cláusula do due process of law, no direito brasileiro, há de produzir uma série de fundamentais consequências no plano da atividade sancionadora do Estado, emergindo aos acusados um leque de direitos fundamentais relacionados ao ‘julgamento justo’ e ‘razoável’.”

O princípio da razoabilidade exige que a medida adotada pela Administração Pública seja orientada pelo real significado da intervenção à luz dos objetivos perseguidos pelo legislador. No que tange ao direito administrativo, o princípio da razoabilidade encontra-se intimamente relacionado ao princípio da igualdade para orientação sobre eventual sanção a ser aplicada.

222 do RICADE. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Aprova o Regimento Interno do Conselho Administrativo de Defesa Econômica - RICADE. Resolução n.º 1/2012, de 29 de maio de 2012).

141 Além da garantia relacionada às fases do processo administrativo, o Tribunal Superior norte-americano

identificou que do devido processo legal decorrem outras importantes garantias como a impossibilidade de obrigar o acusado a declarar-se culpado, a impossibilidade de obtenção de provas por meios ilícitos (e sua consequente inutilidade no âmbito do processo administrativo); a impossibilidade do acusado ser julgado (e apenado) duas vezes em razão do mesmo fato, a irretroatividade de normas prejudiciais aos acusados. (CARBONELL, Eloísa e MUGA, José Luís. Agencias y procedimiento administrativo en Estados Unidos de America. Madrid: Marcil Pons, 1996. p. 104).

142 OSORIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Editora Revista dos

94 Antonio José Calhau143 propõe uma definição para o princípio da razoabilidade:

“A razoabilidade é um conceito jurídico indeterminado, elástico e variável no tempo e no espaço. Consiste em agir com bom senso, prudência, moderação, tomar atitudes adequadas e coerentes, levando-se em conta a relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade a ser alcançada, bem como as circunstâncias que envolvem a pratica do ato”.

Em relação ao princípio da proporcionalidade, este impede a adoção de atos administrativos revestidos de caráter arbitrário e desproporcionais. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade encontram-se intimamente relacionados, uma vez que a ausência de proporção entre a finalidade da lei e os meios utilizados indica a não observância do princípio da razoabilidade.

Tratando-se de imposição de restrições a determinados direitos, como no caso da determinação da desconsideração da personalidade jurídica, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade legal da restrição eventualmente determinada, como também sua compatibilidade com o princípio da proporcionalidade.

Portanto, o respeito ao devido processo legal implica não somente em oportunizar ao sujeito afetado a apresentação de defesa e a possibilidade de contraditar elementos de prova, como também na utilização de um juízo de necessidade e adequação da medida. Logo, à luz das ponderações que permeiam a cláusula do due process of law, a desconsideração da personalidade jurídica, medida apta a afetar direitos de propriedade de pessoa física, deve ser realizada no âmbito de processo administrativo com fases definidas, no qual o sujeito interessado possa apresentar sua defesa e contraditar todos os elementos de prova. Além disso, a decisão final pela adoção ou rejeição da medida deverá estar pautada num juízo de razoabilidade e proporcionalidade (adequação e necessidade).

Nesse contexto, convém analisar como o incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no novo CPC pode contribuir para o desenvolvimento da matéria em sede administrativa.

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RESENDE, Antonio José Calhau. O princípio da Razoabilidade dos Atos do Poder Público. Revista do

Legislativo. Abril, 2009. Disponível em:

http://www.almg.gov.br/opencms/export/sites/default/consulte/publicacoes_assembleia/periodicas/revistas/ar quivos/pdfs/26/calhau26.pdf. Acesso em 25 de julho de 2015.

95 2.3. A aplicação subsidiária das disposições do Novo CPC ao processo administrativo

À luz das considerações trazidas no primeiro capítulo deste estudo, há uma relativização da divisão rígida entre normas de Direito Privado e aquelas de Direito Público. Classicamente, o Direito Administrativo com origem continental europeia se firmou como um ramo autônomo em contraposição às normas de Direito Privado – com normas de direito comum destinadas a reger a vida da sociedade de uma maneira geral. Nesse sentido, as lições de Sabino Cassese144: “O direito administrativo nasce do reconhecimento da inadequação do direito privado, por conseguinte, como direito derrogatório”.

Quando da emergência do Direito Administrativo, a atuação da Administração Pública possuía um caráter impositivo e autoritário para garantir que o comportamento dos administrados fosse guiado pelo interesse público. Contudo, essa tendência foi sendo aos poucos superada, a medida que a Administração Pública passa a adotar um caráter mais consensual que garante que influências de ordem privada também integrem o exercício da função administrativa.

Além dessa nova postura da Administração Pública, conforme descrito no capítulo precedente, é inegável que a elaboração das normas de direito administrativo sofreram influências do direito privado. Por muitas vezes, na ausência de soluções previstas no direito administrativo, normas do direito privado foram utilizadas para a resolução de problemas de ordem prática. Acerca desse fenômeno, Miguel Seabra Fagundes145 traz importantes exemplos:

“[O] Direito Administrativo, o direito através do qual se dinamizam, por excelência, as relações do binômio Estado- indivíduo, tivesse na origem de suas principais instituições, delas recebendo-as por cissiparidade. A teoria da nulidade dos atos administrativos e a responsabilidade patrimonial do Estado por atos ilícitos servem de exemplo do que vimos de dizer; A teoria dos funcionários de fato que, conquanto, já hoje muito bem formulada ao ângulo do Direito Público, encontra raízes na gestão de negócios do Direito Privado, é outro exemplo. Como outro é ainda o da

144

CASSESE. Sabino. Tendenze e problema del diritto amministrativo, Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, Milão, p. 90, v. 84, 2004.

145 FAGUNDES, Miguel Seabra. Da contribuição do Código Civil para o Direito Administrativo. Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, p. 1, n.º 78, ano 19, out.-dez. 1964.

96 noção da personalidade jurídica dos entes públicos, precedida no tempo, da personalidade moral reconhecida às entidades civis.” A utilização de institutos de direito privado no âmbito da Administração Pública não constitui fato extraordinário e, por consequência, acaba por tornar menos nítida a usual percepção do direito público como derrogação do direito privado146. A clássica diferenciação entre normas de direito privado e direito público tende a tornar-se menor à luz das relações cada vez mais sofisticadas entre Administração Pública e sociedade. Tal interação exige que a Administração Pública se utilize de instrumentos nem sempre previstos pela dogmática de direito administrativo.

É nesse contexto que a nova regulamentação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do novo CPC, pode ser de extrema importância para a regulamentação de tal instrumento também no âmbito do processo administrativo. Vale ainda pontuar que o novo CPC corrobora esta possibilidade ao dispor expressamente, no artigo 15147, a aplicação de suas normas em caráter subsidiário também a procedimentos administrativos.

Ainda que as disposições constantes da regulamentação do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica não se apliquem integralmente ao processo administrativo, em função das peculiaridades estruturais, há algumas disposições que parecem ser passíveis de aplicação em caráter subsidiário também em âmbito administrativo.

Em relação à legitimidade para a realização do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, considerando o princípio da oficialidade inerente ao exercício da função administrativa, parece adequado que, para além da parte interessada e do Ministério

146 Nesse sentido, Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “(...) a Administração Pública vai buscar no direito privado

o instrumento de sua atuação; é nessa área que mais se revela a flexibilidade do direito administrativo, que tem de encontrar os meios mais hábeis para a consecução do interesse público, em consonância com um dos princípios informativos, a saber, o da proporcionalidade de meios e fins (...). Em tais hipóteses, a lei combina normas e princípios de direito público com normas e princípios de direito privado. Ela [a Administração] cria, inova, ajusta normas e institutos. Ela torna menos nítida a distinção entre os dois grandes ramos do direito.” DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Do direito privado da Administração Pública. São Paulo: Atlas, 1989. p. 10.

147 “Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as

disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.” BRASIL. Lei n.º 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 de janeiro de 1973. Seção 1, p. 1.

97 Público, caiba também a Administração Pública dar início ao procedimento para a desconsideração da personalidade jurídica.

Em relação à fase processual, assim como a regulamentação deste instrumento no âmbito civil, parece adequado também permitir que seja possível a desconsideração em qualquer fase do processo administrativo desde que oportunizado o exercício do contraditório e da ampla defesa àquela parte que, potencialmente, será afetada em sua esfera de direitos pela decisão de desconsideração da personalidade jurídica.

Em relação aos aspectos materiais, o novo CPC dita requisitos que devem ser observados na aplicação do instituto em âmbito administrativo. O pedido de desconsideração da personalidade jurídica deve observar os pressupostos previstos em lei, demonstrando os pressupostos legais e fáticos específicos que autorizariam a desconsideração. Após o pedido, a parte interessada poderá além de apresentar suas razões, produzir provas cabíveis dentro de 15 dias. A aplicação subsidiária da regulamentação prevista no novo CPC representa grande avanço na aplicabilidade do instituto também na esfera administrativa.

À luz das considerações trazidas sobre a aplicabilidade da desconsideração da personalidade jurídica, cumpre analisar a evolução deste processo relacionada aos processos administrativos de apuração de infrações econômicas em trâmite perante o CADE.

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CAPÍTULO 3:

AS IMPLICAÇÕES DA PREVISÃO DA

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE

JURÍDICA EM PROCESSOS ADMINISTRATIVOS

EM TRÂMITE PERANTE O CADE

À luz das ponderações sobre a teoria da desconsideração da personalidade jurídica e sobre o processo administrativo, colocadas nos capítulos precedentes, este capítulo analisará com maiores detalhes a aplicabilidade deste instrumento aos processos em trâmite perante o CADE. Neste capítulo também serão analisados os limites da incidência da desconsideração e seus desdobramentos. Assim, faz-se necessário, inicialmente, trazer algumas considerações acerca dos interesses tutelados pelo direito concorrencial, para que se compreenda a opção legística pela inclusão da desconsideração da personalidade jurídica entre os instrumentos à disposição do CADE no desenvolvimento de suas funções.