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1.3. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica: desenvolvimento e

1.3.1. Classificações e sua repercussão na aplicabilidade da teoria

Como é sabido, as classificações são uma forma de sistematização de determinado instituto, permitindo sua compreensão e sua subsunção à realidade de forma mais precisa. A teoria da desconsideração pode ser submetida aos mais variados tipos de classificação, sendo os mais relevantes aqueles que segmentam a teoria em: (a) corrente subjetiva e objetiva; e (b) teoria maior e teoria menor.

A corrente subjetiva, defendida pelo autor alemão Rolf Serick, exige, para que seja autorizada a desconsideração, a existência de um elemento subjetivo, qual seja, o dolo ou abuso de direito no exercício dos direitos sociais por parte das pessoas físicas que compõem a pessoa jurídica.

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O autor J. Lamartine Corrêa de Oliveira partilha parcialmente do entendimento de Comparato ao concluir que a desconsideração da personalidade jurídica seria uma consequência de uma crise de função da pessoa jurídica. SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. 3ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 262-263.

32 Por sua vez, a corrente objetiva, desenvolvida a partir das críticas colocadas por Fabio Konder Comparato32, conforme acima indicado, pugna pela possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica a partir de critérios objetivos. Em outros termos, uma vez configurado o abuso ou a fraude, estaria autorizada a desconsideração, ainda que ausentes elementos de caráter subjetivo.

Restaria configurado o abuso de direito toda vez que dado direito subjetivo fosse utilizado, ainda que dentro das prerrogativas previstas no ordenamento jurídico, de maneira a causar dano a outrem. Conforme esclarece Silvio Rodrigues33: “O abuso de direito ocorre quando o agente, atuando dentro das prerrogativas que o ordenamento jurídico lhe concede, deixa de considerar a finalidade social do direito subjetivo e, ao utilizá-lo desconsideradamente, causa dano a outrem”.

A fraude, por sua vez, é caracterizada pela adoção de condutas com a finalidade de iludir ou ludibriar terceiros, causando-lhe prejuízos ainda que não seja perceptível imediatamente. Assim, trata-se de manobra para causar prejuízo a outra pessoa, por meio da utilização de subterfúgios que escondem a antijuridicidade da conduta praticada.

As hipóteses de fraude contemplam não apenas a utilização de uma pessoa jurídica já constituída, mas também a criação de uma pessoa jurídica com o único objetivo de fraudar a lei ou deixar de cumprir determinada sanção administrativa. O TCU possui rica jurisprudência que indica a existência de constituição de pessoas jurídicas de forma fraudulenta para, por exemplo, participar de certames licitatórios em descumprimento a sanções de inidoneidade para licitar.

Conforme entendimento do TCU, os efeitos da declaração de inidoneidade devem ser aplicados também para as futuras sociedades constituídas pelos mesmos sócios cujo objeto social seja a prestação dos mesmos serviços que deram ensejo à aplicação da sanção. Em um dos precedentes do TCU34, fica claro o posicionamento do órgão nesse sentido:

32 COMPARATO, Fabio Konder. O poder na sociedade anônima. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 1983.

p. 258.

33 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil. 20ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2003, v.4. p. 45.

34 BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1209/2009-Plenário. Relator: Ministro José Jorge.

33 “Penso, porém, que esta Corte de Contas deva, na esteira do precedente trazido pela Secex/RN, estender a inidoneidade para licitar com a Administração Pública Federal às futuras sociedades que forem constituídas com o mesmo objeto social e composta pelo mesmo quadro societário daquelas fraudadoras do certame da UFRN.”

Assim, para além das hipóteses mais comuns de desconsideração da personalidade jurídica por conta do abuso de direito e da fraude de pessoa jurídica já constituída, há que se considerar também, como fato que autorizaria a desconsideração a constituição de pessoa jurídica com abuso de forma e com objetivo de fraudar a imposição de sanções.35

A classificação em subjetiva e objetiva resulta em importantes desdobramentos no direito positivo brasileiro. Apenas para ilustrar, o CDC36 claramente optou pela adoção da teoria objetiva dispensando a existência de elementos de caráter subjetivo para que se autorize a desconsideração da personalidade jurídica. O resultado é a ampliação das possibilidades de aplicação da teoria, reflexo da escolha legislativa de ampliar a tutela ao consumidor:

“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

§ 1° (Vetado).

§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.

35 Vale destacar a existência de Projeto de Lei (Projeto de Lei n.º 7.709/07), em trâmite perante o Senado, que

pretende alterar a lei de licitações e, dentre as mudanças propostas prevê a possibilidade de extensão dos efeitos da sanção de impedimento de contratar com a Administração Pública, licitante que esteja manifestamente atuando em substituição a outra pessoa jurídica (alteração proposta no §2º do artigo 28 da Lei n.º 8.666/93).

36 BRASIL. Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 12 de setembro

34 § 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”

Outra possível classificação da teoria a divide em teoria maior e teoria menor. Nesse contexto, a teoria maior encontra-se amparada em princípios subjetivos. Para que seja possível a desconsideração da personalidade jurídica seria necessária, além da constatação da fraude ou do abuso de direito, a demonstração de má fé dos sócios, ou seja, da intenção de se valer da pessoa jurídica desviando os fins que permitiram sua criação.

Neste ponto, foi criada uma subdivisão da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, fragmentando-a em: (a) teoria maior subjetiva; e (b) teoria maior objetiva. A teoria maior subjetiva pugna pela aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, quando constatado o desvio da finalidade empresarial aliado à insolvência empresarial. A teoria maior objetiva, por sua vez, fruto de estudos de Fábio Konder Comparato, requer como requisito adicional a existência de confusão patrimonial.

A teoria menor autoriza a desconsideração da personalidade jurídica tão somente diante do estado de insolvência da empresa que a impeça de honrar com suas obrigações. Nos termos dessa vertente, o credor não precisa comprovar a existência de má-fé ou de confusão patrimonial.

Assim, a Lei Ambiental37 faz opção pela teoria menor ao permitir a desconsideração da personalidade jurídica dispensando alusão à fraude ou ao abuso de direito: “Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”. No âmbito desse segundo tipo de classificação, a desconsideração prevista no CDC opta também pela teoria menor, amparada na hipossuficiência do consumidor.

Contudo, é possível observar, quando confrontada a previsão constante do CDC com o artigo 50 do CC, que a legislação consumerista abrange um leque maior de situações com um enfoque predominantemente objetivo. O direito brasileiro inclina-se para a adoção da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, segundo a qual a demonstração de ocorrência de desvio de finalidade ou efetiva confusão patrimonial é necessária para a autorização da desconsideração da personalidade jurídica.

37 BRASIL. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 13 de fevereiro

35 O STJ já se manifestou, no âmbito do Recurso Especial n.º 279.273/SP38, no sentido de que a teoria maior seria a regra aplicável em nosso ordenamento jurídico, estando a teoria menor reservada apenas para casos excepcionais nos quais o bem jurídico tutelado justificasse a opção legística pela aplicação da teoria menor como ocorre no caso do direito do consumidor e do direito ambiental.

Especificamente no caso da LDC, objeto deste estudo, a desconsideração está baseada na teoria maior, colocando como requisito para sua aplicabilidade a ocorrência de um ato concreto a ser comprovado. Logo, para que seja possível a desconsideração, é necessário que esteja comprovado o abuso de direito, o excesso de poder, a infração à lei, fato ou ato ilícito, ou violação dos estatutos ou contrato social.

Assim, a positivação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica nos mais diversos normativos reflete as classificações acima mencionadas. A opção legística reflete em grande medida o bem jurídico que se deseja tutelar e, como consequência, a

38“RESPONSABILIDADE CIVIL E DIREITO DO CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. SHOPPING

CENTER DE OSASCO-SP. EXPLOSÃO. CONSUMIDORES. DANOS MATERIAIS E MORAIS. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE ATIVA. PESSOA JURÍDICA. DESCONSIDERAÇÃO. TEORIA MAIOR E TEORIA MENOR. LIMITE DE RESPONSABILIZAÇÃO DOS SÓCIOS. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. REQUISITOS. OBSTÁCULO AO RESSARCIMENTO DE PREJUÍZOS CAUSADOS AOS CONSUMIDORES. Art. 28, § 5º. [...]

- A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração).

- A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial.

- Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica.

- A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. - Recursos especiais não conhecidos.” BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 279.273/SP, da 3ª Turma. Recorrentes: B. Sete Participações S.A., Marcelo Marinho de Andrade Zanotto e Outros. Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Brasília, DF, 4 de dezembro de 2003.

36 amplitude e os requisitos necessários para que seja decretada a desconsideração da personalidade jurídica em cada segmento do direito.

Para além dos dois exemplos citados acima, a análise da inserção da teoria da desconsideração no ordenamento brasileiro faz-se necessária para a verificação dos limites colocados pelo legislador para a aplicabilidade da teoria em cada segmento do direito brasileiro.