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CAPÍTULO III – VIDA ÉTICA

3.4 A PROCURA DE UMA VIDA FELIZ

Uma questão bastante discutida dentro da filosofia, principalmente no âmbito da política, é o conceito de igualdade e justiça. Sabe-se que é de suma importância, para que se possa ter uma vida digna, a vivência da justiça, pois é a partir dela que se estendem os laços sociais, até mesmo alargando os laços da cooperação social. A análise que se faz é, pois, uma tentativa de compreender como ocorre a realização da justiça ricoeuriana em meio à sociedade, principalmente quando ela se torna uma justiça da prática, ou seja, quando ela é instituída no meio social.

Diante da questão da justiça, o objetivo é aprofundar a respeito da situação em que se instala a justiça. A questão fundamental que se apresenta é como que ela se relaciona com a felicidade e o que constitui o fim último a ser buscado. Certamente, o meio social apresenta algumas características que precisam ser analisadas em vista da autorrealização. Todo ser tem, dentro de si, um desejo de ter uma vida digna, no entanto isso só será possível a partir do momento em que houver uma relação com a justiça.

O que constitui a vivência em sociedade são as relações sociais. Nesse sentido, é preciso que a pessoa tenha as suas perspectivas correlacionadas com as demais e que, a partir daí, aconteça aquilo que Ricoeur chama de justiça prática. É de fundamental importância tratar a justiça como uma virtude social principalmente dentro das instituições.

Dentro da sociedade, existem diversas concepções de bem, porém a justiça coloca essas concepções em contato com as suas regras e institui um modelo social para ser vivido. Assim como em Aristóteles se tem o ideal do viver bem, em Ricoeur o viver bem adquire um substrato ainda mais firme, pois, ao tratar da justiça no âmbito da política, consequentemente, deve ter em vista um bem comum. Nesse ínterim, a noção de outro também está inclusa. Diante da discussão filosófica delineada, apresenta-se, também, uma concepção adotada por Ricoeur advinda de John Rawls, filósofo americano, principalmente, a sua concepção de justiça como a primeira a estar inclusa dentro das instituições. Outro ponto importante sobre o qual se faz uma reflexão é a questão do legal, do justo e do bom.

Por fim, trata-se da questão do amor, mantendo a convicção de que ele é fundamental diante da relação social. A justiça passa necessariamente pelo seio do amor, pois, sem o amor, o justo, o legal e o bom parecem não estar plenamente completos. A compatibilização entre justiça e amor é a plenitude de um viver dignamente. Mediante os estudos até aqui realizados, a grande questão é como entender a justiça quando se refere à intenção de que ela possibilite uma boa vivência, inclusive como uma virtude que dê a garantia de uma vida feliz, ou seja, uma vida em que as coisas se realizam de acordo com um ideal proposto.

Ao falar da justiça como virtude, especialmente no âmbito social, compreende-se que ela visa a um bem comum, em que a orientação é unicamente para uma felicidade comum. Essa se torna uma intenção necessária do político, em vista da construção da justiça social que, por sua vez, proporcionará um viver digno a todos. Sendo assim, a justiça intencional, tomada a partir de um âmbito social, concretiza aquilo que as pessoas desejam. Além do mais, os responsáveis devem lutar em vista da realização da felicidade. Assim, ―a categoria de felicidade é a do sentido; a felicidade é a reunião dos bens, uma totalidade que dá lugar e sentido a cada um deles‖ (ABEL, 1996, p. 53). O ideal buscado precisa ser a felicidade, pois só assim se justifica uma busca comum.

Nota-se que a leitura ricoeuriana segue os moldes aristotélicos e toma a ideia de felicidade como ideal político, em que ―a felicidade é uma atividade que se basta a si mesma; o local de seu exercício é a cidade política, assim o homem é um animal político‖ (ARISTÓTELES, 1973, p. 265). O que ocorre é a busca de uma felicidade e seu ponto culminante é a vida na pólis. Para Abel (1996, p. 40), Ricoeur afirma que ―tomar a justiça como virtude, ao lado da prudência, da temperança e da

coragem, é estar entrando em conformidade com o quadro medieval das virtudes cardeais, ou seja, é admitir que a justiça, de fato, guia a ação humana para uma realização que é perfeita‖.

De acordo com Abel (1996), a vida boa possibilitada pela justiça garante às pessoas a vivência digna de tal forma que elas tomam o viver bem como sendo o único fim. Tendo como objetivo principal a vivência da justiça, os acontecimentos tendem a um fim que é o bem viver. Isso é importante porque o bem viver colocado como sentido único não fica somente entre as pessoas, mas também acaba se estendendo às instituições e todo o horizonte, compreendido aqui como social, acaba deixando de lado as injustiças. O bem viver que é o objetivo da justiça já está implícito na noção de outro. Dessa forma, a justiça não se restringe a uma pessoa, estende-se à humanidade inteira. Ergue-se aqui um ponto central: a justiça, quando estendida a outros âmbitos, no caso às instituições, acaba introduzindo uma questão de igualdade, em que viver a justiça é estar em contato com o outro.

Na instituição, com a aplicação da justiça, o objetivo principal que se tem é a igualdade a partir da ética, ou seja, o outro tem um direito e a sua intenção é viver a justiça. A instituição encarna a aplicação da justiça e resguarda uma ulterior conotação, ou seja, a cada um o seu direito. Esta conotação é o ponto extremo da tensão teleológica, que penetra na universalidade da norma e na obrigatoriedade. Conforme Brezzi (2006), nesse momento, o dialogo ricoeuriano se realiza com Kant, o máximo exemplo da deontologia ou filosofia do dever: autonomia da norma, do respeito e da lei. O que se entende, portanto, é que a ética já supõe justiça, e que a nova determinação é o resultado buscado a partir da vivência intencional direcionada para um fim. Na compreensão de Ricoeur (1991b, p. 225), ―a desigualdade resulta de condições culturais e políticas particulares como na amizade entre iguais, ou seja, constitutivas das posições iniciais do si e do outro na dinâmica da solicitude‖. Assim, definida a desigualdade, cabe ressaltar que as pessoas na sociedade estão ligadas às instituições, e a desigualdade também pode apresentar-se nesses âmbitos.

Instituição, no entender ricoeuriano, implica a estrutura do viver junto de uma comunidade histórica, povo, nação, religião. Essa ―estrutura irredutível às relações interpessoais e, no entanto, religada a elas num sentido notável‖ (RICOEUR, 1991b, p. 227). Para Teixeira (2004), Ricoeur descortina uma desvalorização do indivíduo e a sobrevalorização da racionalidade latente da comunidade histórica. Dessa forma, é

por meio da prática que se revela a instituição, e o objetivo dela pode ser definido a partir da comunidade. Nesse sentido, a concepção de vida boa, como objetivo ético, tem sua concretização em meio às instituições e, por tal motivo, a justiça é intrínseca ao viver bem. Esse objetivo faz parte da vida das pessoas e, em consequência, do ideal da cidade, que é caracterizada pelas instituições.

Portanto, sabendo que a vida boa possui essa relação com a justiça, resta às instituições apenas lutar para garantir as condições e os meios para as pessoas poderem realizar seus desejos de uma vida digna. É dever das instituições garantir, a todas as pessoas, os meios necessários à condição da justiça (RICOEUR, 1991b). O indivíduo tem seu ideal voltado para o desejo que encontra no interior da instituição. Do mesmo modo, a pessoa deseja lutar pela justiça, tanto para si quanto para o outro, independentemente de crenças e de outras intenções que possam ofuscar a realização da justiça. Não se pode esquecer que o mal já se encontra ―bem aí‖, infiltrado nas instituições, o que autoriza a contínua necessidade de que as instituições sejam virtuosas. Isso comprova um dos pressupostos deste trabalho: a necessidade de a ética ter de passar pelo crivo da norma.