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CAPÍTULO I – A LUTA PELO RECONHECIMENTO

1.4 O CONCEITO DE RECONHECIMENTO HEGELIANO

A proposta de Ricoeur (2006) na obra ―Percurso do Reconhecimento‖ não é pequena nem fácil e, para cumpri-la, é preciso passar por várias filosofias e revisitar o pensamento de inúmeros filósofos. Além disso, deve ser compreendida aí a experiência histórica em todas as suas dimensões -- social, política, cultural e espiritual.

Na questão do reconhecimento recíproco, que, no fundo, resume-se a uma luta pelo reconhecimento do si-mesmo pelos outros, Ricoeur concede a Hegel um lugar de destaque em contraposição a Hobbes, uma vez que, ao substituir o medo de uma morte violenta e a luta pela sobrevivência, que caracterizam o estado de natureza pela necessidade de viver em conjunto e pelo desejo e luta pelo reconhecimento, contribuiu para trazer na esfera da filosofia política o tema do reconhecimento (SALDANHA, 2009).

O conceito de reconhecimento nasce no contexto filosófico graças a Hegel, já no princípio de sua filosofia, em Iena, entre 1802 e 1806. Conforme Ricoeur (2003b), o tema do reconhecimento aparece graças ao estudo de Kojève sobre o livro maior de Hegel, ―A Fenomenologia do Espírito‖. O centro dessa obra é a luta pelo

reconhecimento, mas também a luta do senhor e do escravo, que se reconhecem mutuamente compartilhando o pensamento. Diante disso, pergunta-se: Isso não configura já um reducionismo? O resultado da luta por reconhecimento na ―Fenomenologia do Espírito‖ é uma espécie de estoicismo, uma vez que senhor e escravo constatam: ―nós pensamos‖. E, como ambos pensam, são indiferentes, não levam em consideração esse fato, ou seja, permanece, ainda, o escravo e o senhor. Aqui se percebe o porquê da comparação ao estoicismo, pois este conduz ao asceticismo (RICOEURb, 2003).

A dialética do senhor e do escravo é algo indispensável para se chegar à questão do outro e seu reconhecimento em Hegel. Este, como se sabe, pensa o outro no que se refere a passagem, momento necessário para se chegar a si mesmo. Na dialética das consciências, o outro é condição necessária para uma vinda a si mesmo, de modo desenvolvido. Diante disso, pergunta-se: e o outro como tal? Ao que parece, há uma ambiguidade. Se o outro é apenas uma etapa no caminho para se chegar a si mesmo, não se pode afirmar que é pelo reconhecimento do outro que o percurso se torna possível? Hegel apresenta a questão, mas sua solução é pela primazia do mesmo e não do outro, que é sempre pensado como momento de uma inteligibilidade que reúne o mesmo e o outro um discurso universal. Nesse caso, a separação entre o mesmo e o outro será, necessariamente, superada.

Ricoeur (2003b) confessa que segue uma abordagem que promete maior eficácia e desenvolvimento na luta pelo reconhecimento, abordagem diversa daquela delineada, anteriormente, semelhante ao estoicismo. A questão a ser posta é a experiência de ser reconhecido em um intercâmbio que é precisamente o intercambio do dom: ―faço pois um intento cujo êxito desconheço mas estou seguro de que resultará fecundo, para completar e corrigir a ideia finalmente violenta pela ideia não violenta do dom‖ (RICOEUR, 2003b, p. 30). Assim, já legitimando alguns pressupostos do trabalho, o que se observa é que a reversão do processo de reconhecimento pela luta será edificada pelo autor mediante a recuperação da ideia de ―economia do dom, exemplificada pelos gestos de presentear alguém, pela polidez nas relações humanas e pelos ritos festivos. São esses alguns dos modos não violentos de reconhecimento do outro‖ (ROSSATTO, 2006, p. 8, grifo do autor).

Na ―Fenomenologia do Espírito‖16, é importante salientar que, na introdução

ao conjunto da obra, o autor relata que a Fenomenologia do Espírito é já ciência, mas ciência da experiência da consciência. Nesse sentido, a consciência é designada como o meio da experiência (RICOEUR, 1989b). Reconhecer-se só tem valor caso também se reconheça o outro no outro17.

O conceito de reconhecimento em Hegel, conforme análise de Ricoeur (2003b), possui três momentos. O primeiro encontra-se sob a égide do amor -- afetividade, sexualidade, erotismo, amizade e respeito mútuo --. O segundo momento encontra-se no nível jurídico -- relações contratuais, que possuem pouca qualidade humana e assinala a propriedade, do isto é meu - isso é seu, não consistindo um ato de reconhecimento, mas um elemento de desconfiança -- O terceiro nível é o caracterizado pelo vínculo comunitário, ou seja, o Estado, que se encontra além das relações abstratas, jurídicas e contratuais.

Desses três níveis apontados por Hegel, interessam a Ricoeur o primeiro e o último, uma vez que, no jogo ético, sobram comentários e reinterpretações, mas o jurídico não ocupa o espaço todo, tendo em vista que se encontra emaranhado por algo que é pré-jurídico e pós-jurídico. O autor com quem Ricoeur (2003) começa a dialogar, nesse momento, é Honneth, em que encontra a superação do desprezo e da provação mediante o reconhecimento. Assim, está colocada, em conjunto, a ideia de desprezo e a ideia de reconhecimento. Seguindo na esteira de Hegel, Honneth assinala três níveis de reconhecimento, que são: afetivo, jurídico e político. A partir desses três modelos de reconhecimento intersubjetivo, tem-se o inverso, ou seja, eles correspondem a três figuras de negação do reconhecimento: a humilhação, a exclusão e a intolerância.

Para Castillo (2007), o reconhecimento não deve ser simplesmente moral e jurídico, mas também social. Nessa nova versão do reconhecimento como social, uma dimensão psicológica se impõe e que integra na identidade pessoal as

16 Indica-se o texto de Ricoeur intitulado ―Da Intersubjectividade em Hegel e Husserl‖, que oferece ao leitor subsídios para esclarecer a relação entre a fenomenologia do espírito hegeliana e a fenomenologia husserliana. A questão que serve de guia para análise é saber o seguinte: ―poderá a teoria da intersubjectividade de Husserl ocupar o lugar de uma teoria hegeliana do espírito?‖. Para maiores esclarecimento, confira: RICOEUR, P. Do texto à acção: ensaios de hermenêutica II. Porto: Rés-Editora, 1989b.

17 Em Emmanuel Lévinas, por exemplo, esse reconhecimento do outro gera a ética da alteridade e em Ricoeur há uma tentativa de afastar-se dessa necessidade de imersão total, ao menos em seus aspectos de análise histórica e evolutiva, para se deter no âmago da questão: a análise realmente interpretativa do si (GREISCH, 2006).

características da história de cada um. A memória que se toma aqui em conta é emocional, ou seja, contém os bloqueios, as feridas e os sofrimentos que não se registram nos significados da coabitacão e nas regras jurídicas. Para dar uma sugestão mais contextualizada da personalidade, Ricoeur recorre, conforme a autora, ao conceito de identidade narrativa, que se liga, por sua vez, ao conceito de ipseidade e de mesmidade, para designar, posteriormente, a identidade pessoal.

A ipseidade de um ser humano não se reduz à identidade de uma coisa e não designa uma simples permanência no tempo. Além disso, conforme Dastur (2006, p. 451), ―a ipseidade que é o lugar próprio do reconhecimento de si como ser capaz, é também o do desconhecimento, que pode tomar a dupla forma do esquecimento e do perjúrio‖. A identidade pessoal é a identidade de um ser que assume seu informe ao tempo, um ser de memória, que dá prova de sua dívida ao seu passado e também um ser de promessa, que se edifica (se lança), por meio dessa sua identidade, no futuro. A identidade pessoal vivida em primeira pessoa é, pois, uma identidade narrativa (CASTILLO, 2007). Para a autora, cada ser é igual ao outro num nível jurídico, mas também há um desejo de ser e um esforço por existir que permeia a intencionalidade da vida boa e confere sentido à vida ética. Além disso, assinala o destino de um indivíduo e acentua suas convicções mais íntimas.

A problemática do reconhecimento toma, assim, o passo de uma rivalidade entre a ética processual da argumentação e uma sabedoria prática18, que quer

incluir a historicidade dos protagonistas e suas convicções. O que está posto em questão aqui é o caráter de uma prescrição19 que deve superar a fase formal do autorrespeito para incluir, em seguida, a estima de si. Isso irá assinalar um

18

É importante destacar a presença de Alasdair MacIntyre, Depois da virtude (After virtue), nos últimos escritos de Ricoeur, principalmente, a adoção dos conceitos de ―padrões de excelência‖

(standards of excellence) e a ―unidade narrativa de vida‖ (narrative unity of a life) nos escritos relativos à questão da sabedoria prática.

19 Conforme Jardim (2005, p. 10),

―A narração torna-se mediadora entre a descrição e a prescrição, esclarecendo a passagem da dimensão prática para a dimensão moral da ação. Assim, a narratividade é uma manifestação ética. [...] Todavia, é evidente que narrar as acções não é suficiente, embora Ricoeur atribua a maior importância ao livro de John Searl, Speech Acts [...]; há que narrar quem desempenha a ação: o agente, o sujeito da ação. O verbo narra o sujeito, mas mais ainda o narram os complementos circunstanciais que molduram a sua acção. A sintaxe dos fatos (em relação de coordenação ou subordinação entre si) liga os acontecimentos díspares, o imprevisto e o inesperado passam a ter a possibilidade de se integrar num tempo com identidade dinâmica onde a visão de si e dos outros pode confrontar-se, conjugando-se positiva ou negativamente num momento posterior [...]. Note-se que a narração, para Ricoeur, consiste na descrição do caráter e das transformações múltiplas e variadas que este sofre com a atitude pessoal. O futuro e não apenas o presente fica aberto a novas reinterpretações, sempre de caráter hermenêutico-ético‖.

reconhecimento que não pode ser neutro, uma vez que remete às lembranças da memória (CASTILLO, 2007).

É importante frisar que a ideia-chave que está delineada neste estudo se encontra na luta pelo reconhecimento, e que, mediante experiências negativas de desapreço (Missachtung), pode-se descobrir o próprio desejo de reconhecimento. Este nasce da insatisfação ou da desgraça do desprezo.

Nas palavras de Rossatto (2008), Hegel toma como ponto de partida as experiências negativas do desprezo (Missachtung), por meio delas, é possível descobrir o próprio desejo de reconhecimento. Ao contrário de Hobbes, esse desejo não nasce da experiência de medo, mas da insatisfação ou infelicidade humanas. Além disso, não se origina no meio natural, tal como predicava Hobbes, por meio do conceito de estado de natureza, nasce num ambiente de reciprocidade social.

A perspectiva hegeliana do reconhecimento parte da compreensão de Anerkennung e anerkennen. O segundo prefigura uma constatação do reconhecimento no sentido prático, pois seu significado não leva em consideração um conhecer, um ter consciência de, mas apura, reconhece, julga e muitos outros sentidos. Essa terminologia é bastante utilizada na área jurídica (INWOOD, 1997). Ao contrário, o conceito Anerkennung não identifica a pessoa pela característica intelectual, mas é atribuída à pessoa por um valor positivo. Ainda, de acordo com Schnädelbach (2002, p. 61, tradução nossa), ―Em Hegel o elemento prático entra em jogo porque o conhecimento de outra autoconsciência, como igual a própria, põe a consciência autoconsciente diante do problema do reconhecimento do outro como autoconsciência e este reconhecimento é excluído por definição‖ 20.

Na filosofia prática hegeliana, o tema do reconhecimento está sempre presente. Também, o problema levantado estabelece a grande capacidade que se encontra no reconhecimento intersubjetivo.

Mas de fato, porém, a consciência-de-si é a reflexão, a partir do ser do mundo sensível e percebido; é essencialmente o retorno a partir do ser- outro. Como consciência-de-si é movimento; mas quando diferencia de si apenas a si mesma enquanto si mesma, então para ela a diferença imediatamente suprassumida, como um ser-outro. A diferença não é; e a consciência-de-si é apenas a tautologia sem movimento do ―Eu sou Eu‖.

20“In Hegel l‟elemento pratico entra in gioco perché la conoscenza dell‟altra autocoscienza, come

uguale alla propria, pone la concienza autocosciente dinanzi al problema del riconoscimento dell‟oltro come autocoscienza, e questo riconoscimento è escluso per definizione‖ (SCHNÄDELBACH, 2002, p. 61).

Enquanto para ela a diferença não tem também a figura do ser, não é consciência de si (HEGEL, 2002, p. 136).

Na perspectiva do reconhecimento em Hegel não está prefigurada uma preocupação prática, pois o reconhecimento é mais do que simples moralidade -- é autoconsciência. Além disso, a terminologia Anerkennung altera o sentido de autoconsciência, o qual é princípio fundamental do reconhecimento hegeliano. Antes, o sentido de autoconsciência era descrito como recognição, isto é, a pessoa era reconhecida como uma entre tantas, pois, a partir de então, o reconhecimento ocorre pela busca essencial por seu valor (INWOOD, 1997).

Partindo dessa concepção da perspectiva da luta pelo reconhecimento, apresentam-se os aspectos desenvolvidos pelo Anerkennung que suprem essa característica da desconfiança originária, apresentada anteriormente. Primeiramente, é preciso passar pela autorreflexão e pelo direcionamento ao outro; em seguida, pelo aspecto do processo do polo negativo ao positivo e, por último, pela institucionalização do reconhecimento (RICOEUR, 2006).

Diante disso é que se percebe a grande discussão das análises realizadas com base no pensamento hegeliano, no qual se deixa de lado o desconhecimento e a luta pela autoconservação hobbesiano para eleger uma teoria do reconhecimento, que se realiza na correlação entre si e o outro. O conceito de liberdade é central para a compreensão da questão que se está analisando, uma vez que ―faço experiência da liberdade no meio do pensamento, só depois a ativa resolução dos problemas da intersubjetividade e da independência do mundo externo‖ (SCHNÄDELBACH, 2002, p. 63, tradução nossa).21 Ainda, para o mesmo autor, o

conceito de liberdade é a chave para compreender a filosofia prática hegeliana. Conforme Hegel (1995, p. 295, tradução nossa), ―no pensamento eu sou livre porque não sou em um outro, mas permaneço puramente e simplesmente preso a mim mesmo, e o objeto que tenho por essência é, em unidade inseparada, o meu ser-para-mim. O meu movimento em conceito é um movimento entre mim mesmo‖22.

O movimento do reconhecimento em Hegel é atribuído ao duplo sentido encontrado

21―faccio esperienza della liberta nel medio del pensiero, solo dopo l‟attiva risoluzione dei problemi

dell‟intersoggettività e dell‟indipendenza del mondo esterno‖ (SCHNÄDELBACH, 2002, p. 63).

22

―Nel pensiero Io sono libero perché non sono in un altro, ma rimango puramente e semplicemente

presso me stesso, e l‟oggetto che ho per essenza è, in unità inseparata, Il mio essere-per-me. Il mio movimento in concetti è un movimento entro me stesso” (HEGEL, 1995, p. 295).

na essência da consciência-de-si. Existe a perspectiva infinita que é própria de si e a concepção dada, a qual vem de fora. Esse movimento das duas formas que chegam à consciência é que dinamiza a luta pelo reconhecimento.

A perspectiva da consciência que veio fora de si possui duas características: a primeira equivale à perda do que é próprio de si e que é encontrado num outro; a segunda descreve uma consequência da primeira, isto é, a partir do momento em que ela por si mesma assumiu a outro, ela, ao deparar-se com o outro, não lhe reconhece a essência, mas o que dela tem no outro (HEGEL, 2002). Apesar da "abertura" trazida por Hegel, seu pensamento é ponto culminante de um modo de pensar que reduz toda a alteridade em benefício de uma identidade que deve realizar a inteligibilidade em sua totalidade. O autor expõe a questão, mas sua solução é pela primazia do mesmo e não do outro, que é sempre pensado como momento de uma inteligibilidade que reúne o mesmo e o outro em um discurso universal. Nesse caso, a separação entre o mesmo e o outro será, necessariamente, superada.

Dentro dessa discussão do reconhecimento percebe-se a busca do outro, não somente pela subjetividade, que é algo fortemente encontrado em Hobbes, mas também na perspectiva de que há uma intersubjetividade na qual reina não o que de mim há no outro, mas o que do outro eu reconheço. Desse modo, a teoria do reconhecimento hegeliano contribuiu positivamente diante da análise do desconhecimento originário de Hobbes. Além da análise hobbesiana referente ao desconhecimento originário e o entendimento hegeliano do reconhecimento, trata- se, na sequência, da luta pelo reconhecimento na perspectiva ricoeuriana.